HENRIQUE RATTNER
O Fórum Social Mundial responde afirmativamente: “Um outro mundo é possível”!
In Memoriam
Como definir esses dois conceitos? Utopista é considerado um sujeito
que propõe, para eliminar a pobreza e enfrentar os problemas sociais e
políticos que afligem a sociedade, soluções imaginadas e consideradas
dificilmente realizáveis. A palavra “utopia” tem suas raízes
linguísticas no grego clássico, em que a sílaba “u” significa a negação e
a “topus”, o local ou espaço geográfico e social. Utopia, assim
definida, seria algo não existente, sem lugar concreto e o utopista, o
homem (ou mulher) que procura criar condições ou propor ações,
geralmente políticas, para transformar a utopia em realidade, sem se dar
conta do contexto histórico e das restrições impostas pelas relações de
poder, adversas à mudança social. O conceito utopia é usado com um
certo sentido pejorativo para desqualificar as idéias não conformistas
ou de transformação dos que questionam as mazelas da realidade.
Mas, já no século XV, o filósofo e estadista inglês Thomas More
descreveu seu modelo de um estado político ideal como Utopia e pagou sua
ousadia com longos anos de cárcere e, finalmente, com sua execução no
cadafalso.
A dystopia nos remete a situações de conflitos, desordem, crises,
guerras enfim, as calamidades que afligem a humanidade, desde seus
primórdios. É na época do Renascimento, em tempos de grandes
transformações sociais e conflitos, entre os príncipes feudais e os
reis, que aparece também a obra de Thomas Campanella (1568-1639),
filósofo italiano, intitulada “Cidade do Sol”, considerada precursora de
idéias comunistas e que lhe valeu 27 anos de cárcere.
A utopia como visão de um futuro melhor aparece na mesma época na
doutrina dos anabatistas, uma seita cristã cujos membros faziam parte da
ala mais radical da Reforma que sacudiu as instituições políticas da
Europa central. Seus seguidores (milenaristas) acreditaram na vinda do
Messias que reinaria por um milênio e aderiram em massa ao seu chefe
espiritual Thomas Muenzer, que foi hostilizado pelo reformista
conservador, Martinho Lutero. Dezenas de milhares de camponeses travaram
batalhas sangrentas contra os senhores feudais e os bispos da Igreja
católica. Tal como os Hussitas na Tchéchia, os anabatistas surgiram no
momento histórico de grandes transformações e conflitos que opuseram os
príncipes protestantes e o rei da Suécia ao imperador católico da
Áustria–Hungria e que devastaram toda a Europa central. Instigado por
Muenzer que convocou os camponeses, a “realizar o impossível”, o
movimento de massas camponesas assumiu características revolucionárias,
inéditas na História. O milenarismo considerava a revolução como um
valor em si, não como um meio para alcançar determinado objetivo dado e
fixo, a não ser uma aspiração para um mundo melhor. Três séculos mais
tarde, Mikhail Bakunin, pai do anarquismo, afirmaria que “o prazer de
destruir é um prazer criativo”.
O século XVIII, o dos déspotas esclarecidos, viu também o
aparecimento de novas idéias e interpretações sobre os fenômenos sociais
e naturais, divulgados pelos enciclopedistas – Condorcet, d’Alembert e
Diderot e os filósofos inovadores e críticos J.J. Rousseau e E.Voltaire.
Suas críticas sociais e filosóficas prepararam o terreno para a
Revolução Francesa (1789) e as transformações políticas e culturais que a
seguiram. As mudanças econômicas provocadas pela Revolução Industrial e
a expansão do comércio com as colônias de além mar impulsionaram a
emergência de uma nova classe social – o proletariado industrial –
composto pelos camponeses que foram expulsos de suas terras,
encurralados nas cidades e explorados de forma desumana. Enquanto a
burguesia comercial e industrial prosperou e enriqueceu, a miséria, as
doenças e o brutal e desumano regime de trabalho foram o destino do
proletariado. Tanto a França quanto a Inglaterra expandiram seus
impérios coloniais, exportando produtos manufaturados e importando
matérias primas e especiarias. Mas, enquanto a França empobreceu em
consequência das guerras napoleônicas, a situação dos trabalhadores
tornou-se insuportável e despertou os protestos de homens mais ousados e
esclarecidos que pregaram a resistência e ações revolucionárias,
precursoras de lutas sociais que impactaram profundamente o cenário
político, ainda que suas tentativas de levantar as massas fracassaram.
Entre os mais destacados, citamos Babeuf F.E. (1760-1797), que
conspirou com um pequeno grupo de seguidores contra o Diretório que
governava após a derrubada da monarquia e que o condenou à morte pela
guilhotina, da qual escapou suicidando-se. Outro revolucionário de
idéias extremistas foi Louis Blanc (1811-1882), que participou
ativamente na queda da monarquia em 1848; tornou-se membro da Assembléia
Nacional, após exilar-se em 1870.
O escritor e economista, Louis Auguste Blanqui, defendeu idéias
socialistas e revolucionárias pelas quais passou longos anos na cadeia.
Três homens, considerados os “grandes utopistas” influenciaram
profundamente o pensamento e as ações políticas da época, pelas quais
são considerados os precursores “clássicos” que pregaram mudanças na
organização social e nas relações entre os homens, mais justas e
respeitando a dignidade humana.
Charles Fourier (1772) idealizou um estado ideal – a comunidade de
“Falanges”, termo inspirado na formação de combate de Alexandre Magno, e
que iriam transformar as relações sociais, econômicas e políticas,
sobretudo a situação dos trabalhadores e sua miséria, nos primeiros anos
da Revolução Francesa sob o governo do Diretório (1789-1795). Seu
contemporâneo foi o conde Claude Henri Saint Simon (1760-1825) que
fundou uma doutrina social preconizando que cada um ganhasse de acordo
com suas capacidades e sua contribuição efetiva ao bem estar social. Na
Inglaterra, o reformista Robert Owen (1771-1858), criou as primeiras
cooperativas de produção e consumo. Outro reformador francês, Pierre
Joseph Proudhon (1809-1865) também foi considerado precursor do
socialismo, e suas propostas de cooperativas inspiram organizações de
economia solidária até os nossos dias.
Os três primeiros conclamaram para a luta contra as tendências
perversas da acumulação de riquezas desenfreada, por um lado, e o
empobrecimento, a exploração e degradação dos trabalhadores, propondo
uma ordem social na qual todos trabalham e ganham de acordo com suas
necessidades. Os três sonharam suas utopias no antigo estilo
intelectual, a partir de um ponto de vista indeterminista, típico da era
das Luzes. Socialismo para eles é a expressão da verdade, da razão e da
justiça absolutas que devem ser “descobertas” para conquistar o mundo e
o poder. Já a mentalidade socialista, mais fundamentada que a idéia
liberal, representa uma redefinição da utopia, em termos da realidade
sendo magistralmente exposta por Friedrich Engels, na obra “Die
Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft” (O desenvolvimento do socialismo da utopia para ciência).
Naquela época, o tratamento proporcionado aos trabalhadores pelos
donos das fábricas, é ilustrado por depoimentos de médicos ingleses que
defenderam uma jornada de trabalho de 18-24 horas diárias! Outro médico,
em depoimento à Câmara dos Lordes, afirmou que crianças poderiam
aguentar um turno de 20 horas diárias. O trabalho infantil foi
considerado normal e a alimentação dos jovens aprendizes foi idêntica à
servida aos porcos. Também, na França, os mesmos maus tratos e a baixa
remuneração , insuficiente para a subsistência, eram fatos comuns nos
centros industriais emergentes. Não existiam, naquela época,
organizações em defesa dos direitos trabalhistas e os trabalhadores não
tinham representação que os protegesse e, por isso, foram explorados sem
piedade ou compaixão.
Mesmo nos anos da Revolução Francesa, os direitos dos trabalhadores
não foram respeitados enquanto a burguesia acumulou fabulosas riquezas,
sem parar.
Foram essas condições, no início do século XIX, que tornaram a
questão social em fonte de movimentos de protesto e estimularam os
utopistas a procurar caminhos e soluções para a emancipação da classe
operária. Suas idéias e propostas, visando a transformação do sistema
capitalista careciam de conhecimentos sobre a dinâmica e da evolução do
capitalismo. Acreditaram em mudanças a partir da aceitação de novas
relações sociais pelos poderosos da época, movidos por sentimentos
humanitários e de compaixão com a miséria da classe trabalhadora. A
esperança por reformas sociais determinou as visões utopistas, muito
distantes das relações de poder na sociedade capitalista emergente. Por
um lado, poderosas monarquias e os senhores feudais, aliados ao poder
onipresente da Igreja e, por outro lado, trabalhadores em situação de
miséria e desorganizados, os utopistas acreditaram poder mudar essa
situação apelando à boa vontade da classe dominante. Tanto Owen quanto
Fourier procuraram dar o exemplo de convívio humano e solidário,
investindo seus próprios recursos na criação de comunidades em que os
trabalhadores seguiriam os princípios solidários e justos preconizados
pelos fundadores.
Somente a próxima geração de pensadores críticos, sobretudo Karl Marx
(1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) perceberam e pregaram que
entre a propriedade e a pobreza, o capital e o trabalho, as relações
seriam de confrontação e de luta de classes. A superação desse conflito e
a conseqüente emancipação da classe operária permitiriam a criação de
uma sociedade mais justa e igualitária, abrindo uma nova perspectiva
para a humanidade. Após inúmeras revoltas dos trabalhadores e sua
repressão sangrenta, surgiram as primeiras obras baseadas na concepção
materialista e dialética da História. Em 1844, foi publicado o estudo de
Engels sobre “A situação da classe operária na Inglaterra” e, em 1848,
foi publicado o “Manifesto Comunista” elaborado por Marx e Engels, com
tremendo impacto nas sociedades capitalistas da época. As obras
posteriores de Marx e Engels, bem como os escritos de M. Bakunin e P.
Kropotkin impulsionaram a formação de movimentos trabalhistas em vários
países da Europa que se uniram pouco tempo depois para criar a primeira
Internacional dos proletários.
Tensões e conflitos internos, particularmente entre Marx e Bakunin,
levaram à dissolução da Internacional, nos anos oitenta. Mas, a expansão
capitalista levou ao fortalecimento dos partidos dos trabalhadores na
Europa ocidental e central e, logo depois, surgiu a 2a Internacional, de
orientação social democrata e reformista que ganhou milhões de adeptos
nos países capitalistas. Um dos temas mais calorosamente debatidos –
Reforma ou Revolução – discussão em que participaram teóricos alemães
(K. Kautsky, E. Bernstein, F. Mehring), francês (J. Jaurés), austríacos
(Otto Bauer, Friedrich Adler, Karl Renner) e russos e poloneses (Rosa
Luxemburg, Plekhanov e V. I. Lenin) foi radicalmente resolvido pela
eclosão da Primeira Guerra mundial, quando cada um dos partidos
social-democratas convocou seus membros à defesa de sua pátria, contra
os inimigos externos. A dissolução da Internacional durante a guerra de
1914-1918, abriu o caminho para a formação, por um grupo de
revolucionários reunidos durante o conflito por duas vezes na Suíça, em
Zimmerwald e Kienthal, que preconizaram a derrubada armada dos regimes
capitalistas e absolutistas, apelando à solidariedade de todos os
trabalhadores. “Proletários de todos os países, uni-vos” foi a palavra
de ordem daqueles que ousaram desafiar os regimes existentes e proclamar
o advento do socialismo pela instalação de governos compostos por
representantes dos trabalhadores, soldados e camponeses.
A revolução russa de 1917 foi a primeira tentativa de tomada de poder
bem sucedida apesar das intervenções militares apoiadas pelas potências
ocidentais. Assim, foi criada a URSS – a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas que mudou o cenário político mundial e perdurou
até 1989. Tentativas semelhantes de levantes armados na Alemanha e na
Hungria fracassaram, o que deixou a União Soviética, após a derrota de
seu exército vermelho em sua invasão da Polônia, completamente isolada.
Os marxistas revolucionários tinham previsto que a revolução, seguida
de transformações econômicas, sociais e políticas, iria ocorrer
primeiro nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas industrialmente
onde o processo de concentração de capital e a centralização do poder
iriam acirrar a luta de classes. Não conseguiram antecipar que o regime
capitalista fosse capaz de superar a depressão econômica e o desemprego
em massa de 1929-1935, em boa parte devido ao processo de rearmamento em
preparação da segunda guerra mundial e a mobilização de dezenas de
milhões de jovens para servirem nos respectivos exércitos.
Apesar da destruição dos sistemas produtivos nos países europeus,
particularmente na Alemanha e na URSS, e a hecatombe de mais de
cinqüenta milhões de vítimas entre mortos e feridos, o pós-guerra viu a
reconstrução capitalista, impulsionada pelo Plano Marshall e apesar de
grandes avanços em número de votos dos partidos comunistas nas eleições
dos países da Europa ocidental, sobretudo na França e na Itália.
O mundo ficou dividido pela “guerra fria” e o muro de Berlim entre as duas superpotências.
A reconstrução da economia capitalista na Europa levou à criação, em
vários países, do Estado de Bem Estar Social, com a cooptação dos
dirigentes da “esquerda” e o enfraquecimento dos partidos trabalhistas,
atraídos pelo consumo de massa e salários mais altos que dispensariam a
luta de classes.
Por outro lado, a revelação dos bárbaros crimes cometidos pelo regime
stalinista na ex-URSS, os “Gulags”, a perseguição e muitas vezes a
execução sumária de oposicionistas, inclusive das lideranças históricas
da revolução e do exército vermelho enfraqueceu os partidos comunistas
em todos os países e deixou desorientados aqueles que ainda sonharam com
uma mudança social radical e a transformação das relações sociais para
um mundo mais justo e igualitário.
A partir dos anos oitenta, a doutrina neoliberal e sua proclamação do
mercado como o “deus ex-machina” do desenvolvimento parecia impor-se
como ideologia dominante, sobretudo após o desmoronamento da URSS e a
conquista de autonomia dos países ex-satélites. As elites dominantes e
seus intelectuais “orgânicos” proclamaram o “fim da História”. da luta
de classes e a marcha irresistível do regime capitalista para a
hegemonia mundial.
As crises financeiras recorrentes de 1982, 1990 e 1999 atingiram
sobretudo os países periféricos e “emergentes”, diferentemente da crise
financeira que eclodiu em 2008 nos Estados Unidos e propagou-se como um
“tsunami” para todos os cantos do mundo, com conseqüências ainda não
totalmente previsíveis. Quebra de bancos e de empresas, queda de
investimentos e desemprego em massa, resultam em perda de ativos de
trilhões de US$ em todas as economias e ameaçam a segurança e o bem
estar de toda a humanidade.
Seria o desmoronamento da URSS dominada pela oligarquia stalinista e
seu regime totalitário, evidência suficiente da superioridade do sistema
capitalista?
A exploração desumana dos trabalhadores, no século XIX, base da
acumulação primitiva, as crises econômicas e financeiras recorrentes até
os nossos dias, a repressão sangrenta dos povos colonizados na África,
Ásia e América Latina e as duas grandes guerras (1914-1918) e
(1939-1945) que causaram dezenas de milhões de mortos e mutilados,
destruíram inúmeras cidades e seus sistemas produtivos não podem ser
ignorados por historiadores supostamente imparciais, fazendo a apologia
do sistema capitalista.
Mas, a revolução mais ampla e profunda, ainda inspirada nas idéias de
Marx e que iria alterar profundamente as relações políticas e militares
do mundo, foi inegavelmente, a chinesa (1949) sob a liderança de Mao
Tse Tung. Conduzindo suas tropas constituídas por camponeses, durante
mais de duas décadas, pelo imenso território chinês, enfrentando os
“generais – senhores da guerra”, as tropas enfraquecidas e ineficazes do
governo central e os invasores japoneses, conquistou o poder, causando a
fuga dos soldados de Tchang Kai Chek para a ilha de Formosa,
posteriormente batizada de Taiwan.
Apesar dos eventuais excessos da Revolução Cultural, a China,
adotando políticas econômicas baseadas em planos qüinqüenais,
transformou-se em menos de três décadas, de um país dos mais pobres do
globo, em uma das primeiras potências industriais e militares, superando
seu atraso secular em matéria de pesquisa e desenvolvimento científico e
tecnológico e superando os principais países desenvolvidos, com exceção
dos EUA, em capacidade produtiva e potencial militar. As políticas,
industrial, comercial e agrícola, implantadas com base em um
planejamento central com altíssimas taxas de poupança e investimentos,
propiciaram ao país não somente um crescimento do PIB superior a 10% ao
ano, mas também a absorção e integração ao mercado de mais de 300
milhões de camponeses, antes miseráveis e analfabetos, como produtores e
consumidores, mais do que todos os países em desenvolvimento no
conjunto, na mesma época.
Após duzentos anos de história de lutas, revoluções e reações
violentas, persiste a interrogação: a dystopia – o sistema caótico e
injusto do mercado capitalista, poderá ser transformado no mundo de
homens livres, solidários e cooperando para o bem estar de todos, com
base nos direitos humanos que incluem a segurança social, o direito ao
trabalho, à educação, a proteção contra o desemprego enfim, o direito de
criar organizações autônomas e autogestionárias?
*
Professor titular aposentado da Escola de Administração de Empresas da
Fundação Getúlio Vargas (São Paulo) e da Faculdade de Economia e
Administração da USP; autor de, entre outros, “O resgate da Utopia: cultura, política e sociedade” (São Paulo: Palas Athena, 2005). Publicado na REA, nº 96, maio de 2009, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/096/96rattner
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