Fotografia de Sebastião Salgado |
Segunda-feira pela manhã (22), viajando de Salvador para Conceição do
Coité, ouvia no rádio do carro um desses programas em que as pessoas
telefonam reclamando da precariedade dos serviços públicos. De repente, a
conversa entre o apresentador e um participante terminou descambando
para o problema da violência urbana. Sem muita discussão, como solução
simples e imediata, o apresentador do programa defendeu a redução da
maioridade penal, argumentando que a cada dia aumentam os crimes
praticados por adolescentes e “já que podem votar, devem responder pelos
atos criminosos”.
Em seguida, entrou no ar a unidade móvel para informar as estatísticas
criminais do final de semana (20 e 21 de abril de 2013) na região
metropolitana de Salvador: 11 homicídios, 4 tentativas de homicídios e
54 roubos e furtos de veículos. Dentre as vítimas, segundo o boletim da
SSP-Ba, dois menores: L.E.P da S. e H. de J.B. Ambos com 15 anos de
idade, residentes em áreas pobres da região metropolitana de Salvador,
talvez negros, talvez envolvidos com o tráfico, sem qualquer importância
para a imprensa... apenas dados estatísticos.
Em outros blocos do programa, com muita indignação, atendendo novos
ouvintes, o apresentador criticou a roubalheira que foi (ou está sendo) a
construção, em Salvador, do menor, mais demorado e mais caro metrô do
mundo; a greve dos professores das escolas estaduais; a falta de médicos
em postos de saúde; ruas sem saneamento e esburacadas; a prisão de um
juiz, delegado, servidores e advogados na Paraíba, acusados de esquema
que “fabricavam” multas em processos judiciais; e outras mazelas
próprias do tempo em que estamos vivendo.
No restante da viagem, fiquei a pensar, diante de tantos problemas
sociais e tantas mortes em apenas um final de semana, por que razão
estamos todos como se bestializados com a discussão em torno da redução
da maioridade penal. O assunto tomou conta de programas de péssimo gosto
na TV, em editoriais de jornais, nas escolas e ruas, nas redes sociais,
salões de beleza e barbearias. Na gostosa e saudável anarquia que reina
na Internet, a cada dia um texto novo e novas polêmicas. No fim, muita
emoção, mitos e preconceitos e pouca razão e sensatez.
Retornando ao meu pensar viajante, continuei a me questionar por que a
cada vez que uma pessoa é morta por um adolescente e esta morte é
explorada por setores da imprensa, a discussão acerca da redução da
maioridade penal retorna à pauta nacional? Por que tantos outros menores
são mortos diariamente por este imenso Brasil e essas mortes não
repercutem e nem entram na pauta desta mesma imprensa? Por que
aceitamos, sem qualquer indignação, que 11 pessoas sejam mortas em um
único final de semana na região metropolitana de Salvador, sejam maiores
ou menores de 18 anos? Enfim, por que esta seletividade da notícia e da
repercussão diferenciada para fatos idênticos?
De início, sou levado a pensar, mas afasto imediatamente de mim este
pensamento ignóbil, que só a vida de jovens ricos ou de classe média
interessam ao noticiário nacional e que a vida dos jovens pobres não
teriam o mesmo valor.
Levado pela mesma angústia em busca de resposta, cometo novo deslize em
imaginar que para grande parte da imprensa deste país, sem pudor algum,
se um jovem rico ou de classe média, embriagado, matar alguém com seu
carro ou Jet Ski, o fato será noticiado como um mero acidente e o jovem,
traumatizado, será devidamente apresentado ao delegado por um bom
advogado e o rosto protegido por seu próprio paletó. De outro lado,
divagando mais ainda, imaginei que para esta mesma imprensa, com muita
preocupação social, se um jovem pobre, negro e excluído, para adquirir
pedras de crack, matar um jovem rico ou de classe média, este fato será
noticiado como sendo um crime hediondo e que merece forte reprimenda,
quiçá a pena de morte, sendo o jovem fotografado e filmado, apenas de
cueca, ao lado da arma e pedras de crack.
Retornando ao argumento racional e deixando meus devaneios de lado,
pergunto-me: Parte da imprensa está mesmo se comportando dessa forma?
Qual o interesse desses setores da imprensa em divulgar de forma tão
distorcida? Estamos apenas repetindo clichês sem refletir sobre os
fatos? A imprensa está nos impondo seus próprios conceitos e opiniões?
As ideias que propagamos acerca da redução da maioridade penal e outras
formas oficiais de violência estão sendo por nós elaboradas? Enfim,
pensamos assim mesmo ou estamos sendo bestializados por parte da
imprensa, fanáticos ou fundamentalistas para pensarmos assim?
Por exemplo, para um crente em qualquer divindade ou praticante de
qualquer religião que prega a solidariedade, compaixão e humanismo,
defender a redução da maioridade penal para punir jovens pobres e
historicamente excluídos, ou a pena de morte, não seria um grave pecado,
perante seu Deus e irmãos de crença, aceitar e permitir que uns sejam
apedrejados e outros perdoados pelo mesmo crime?
Em outro exemplo, para um jurista, estudante de direito ou qualquer
membro das carreiras jurídicas, orientados que devem ser pelos
princípios inscritos na Constituição Federal, que estabelece como
objetivo da República a construção de uma sociedade livre justa e
solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana, também
não seria uma forte contradição defender ações, sob argumento de vingar a
morte de um, contra a vida e dignidade de outro?
Enfim, por que alguns de nós estão sendo levados e pensar assim: embora
religiosos, seletivos quanto ao perdão; embora juristas, defendendo a
vingança como forma de justiça.
Não creio que seja apenas pelo poder da imprensa e da ideologia, pois se
assim o fosse não haveria discrepância na forma de pensar, dado o
monopólio da informação no Brasil, ou seja, o Jornal Nacional e
programas de péssimo gosto nascem para todos nas manhãs e noites do
Brasil. Além disso, para combater o ódio e parcialidade da imprensa, os
crentes deveriam se valer de seus princípios religiosos e livros
sagrados, bem com os juristas deveriam se valer dos princípios, das
garantias fundamentais e da Constituição.
Quero crer, por fim, que há muito mais entre o céu e a terra do que
imagina nossa vã filosofia. O sentimento da vingança e o prazer de ver o
sofrimento alheio não podem ser explicados e nem aliviados somente por
princípios religiosos ou normas legais. Esta bestialização tem causas
que remontam ao nosso primitivismo e luta pela sobrevivência. Pensamos,
apenas pensamos, que renunciamos à estes sentimentos em favor da
civilização, mas nosso comportamento tem demonstrado, ao longo da
história da humanidade, que não controlamos eficazmente as “bestas” que
habitam nosso inconsciente.
Assim, talvez Freud estivesse certo ao defender que ao lado da teoria
evolucionista e do heliocentrismo, a sua própria descoberta do
inconsciente figuraria como sendo a terceira ferida narcísica da
humanidade, ou seja, para nossa grande decepção, não nascemos de Adão e
Eva, a terra não é o centro do universo e, segundo Freud, não somos
sequer donos de nossos pensamentos. Assim, neste grande mal estar que se
tornou a civilização, somos todos como Narciso diante de um espelho
quebrado, pois além de não sermos tão belos como pensávamos, não temos
mais o espelho para admirar uma beleza que não existe mais ou que nunca
existiu!
Ora, os crimes cometidos por adolescentes, no universo de todos os
crimes, são insignificantes; os crimes contra a vida praticados por
adolescentes, estatisticamente, também são insignificantes; a prisão não
tem o poder de trazer de volta os mortos e nem de recuperar socialmente
os vivos, apenas satisfaz nosso sentimento de vingança; reduzir a
maioridade penal não tem qualquer relação com a redução da criminalidade
e, ao contrário, estaria desgraçando mais cedo a vida de mais jovens e
alimentando com “pessoal especializado” em penitenciárias o tráfico e o
crime organizado. Enfim, a discussão sobre a redução da maioridade
penal, da forma proposta por quase a totalidade da imprensa brasileira, é
uma discussão sem sentido, infrutífera e terrivelmente bestializante.
Por fim, para enfrentar esta discussão com serenidade e racionalidade,
talvez estejamos precisando de mais psicanálise e mais Freud e menos
Lombroso e Direito Penal. Mais filosofia e menos Direito. Mais
alteridade e menos vingança. Mais proteção e menos punição. Mais
responsabilidade do poder público e menos abandono. Enfim, mais
humanismo e menos bestialidade.
Gerivaldo Neiva,
Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia
(AJD) e Porta-Voz no Brasil do movimento Agentes da Lei Contra a
Proibição (Leap-Brasil)
[1] Os Bestializados de ontem e de
hoje são a face oculta de nosso modernismo: a cidade permaneceu alheia e
atônita, buscando perdidamente seus cidadãos. Francisco Foot Hardman,
apresentando a obra Os Bestializados, de José Murilo de Carvalho.
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