Um relato singular e apaixonado sobre o valor afetivo das coisas,
a maneira que ele escapa ao controle de qualquer forma de medição e de
como isso é a chave para compreender e combater o capitalismo atual
Por Bruno Cava, no Quadrado dos Loucos
Na minha escola, era proibido jogar bola no pátio do recreio. As
bolas haviam sido banidas pela direção. Mas a gente dava um jeito.
Costumávamos levar o lanchinho em tapauer, já que as lancheiras eram
“coisa de menina”. Os recipientes plásticos tinham uma dupla função.
Depois de comer, fechávamos a tampa e eles faziam as vezes de bola. Um
dia, fui parar na direção por isso. A diretora me fez duas perguntas.
“É seu?” E depois: “menino, os pais não te ensinaram a dar valor às
coisas?” Perdi a minha bola. Foi o meu primeiro contato explícito com o
valor. Mais de uma década depois, fiz faculdade de engenharia. Uma das
matérias que me encantava, e a única que acabei me destacando, foi
matemática. Cursei obrigatórias e eletivas: cálculo diferencial e
integral, álgebra, estatística, cálculo estocástico e econometria. No
final, contente de avançar no fluxograma do curso, fiquei surpreso
quando um professor me disse: “Agora você pega tudo isso, vai pro
mercado financeiro e fica rico.” Por estranho que pareça, tive uma
sensação parecida como quando fora repreendido na escola.
Dar e tirar valor
Depois do episódio da tapauer, fui educado que as coisas têm um valor
em si mesmas. Um valor objetivo. Esse valor é representado por um
número de unidades da moeda. O valor é medido pelo dinheiro. Embora o
preço da coisa varie, existe um valor médio. É que as oscilações de
oferta e demanda acabam convergindo, ao fim e ao cabo, num valor
intrínseco. O dinheiro, por sua vez, se ganha com trabalho. O trabalho
da gente também tem um valor. Esse valor igualmente varia, mas no final
sucede uma média. Quem define essas médias, o preço das coisas e do
trabalho, é o mercado. A nossa economia funciona pela lógica do mercado,
de maneira que cada um receba o seu. Cada um possa ter acesso aos
valores que faz jus. Para corrigir as distorções, existe o estado. O
estado regula o mercado. O mercado em condições saudáveis exprime o
equilíbrio da circulação dos valores na sociedade. Regular o mercado
significa evitar que os preços desequilibrem o valor intrínseco das
coisas e do trabalho, mantendo a ordem econômica. O dinheiro, portanto,
permite medir simultaneamente o valor das coisas e o valor do nosso
mérito, esforço e qualificação enquanto trabalhadores. A medida do
dinheiro ordena tudo.
Mas uma coisa ficou latejando na minha cabeça desde a escola. Estou
falando de um detalhe na segunda pergunta da diretora, depois que ela
estabeleceu que a propriedade da tapauer era minha (ou dos meus pais).
Ela falou em dar valor às coisas. Opa. Se as coisas têm um valor intrínseco, por que ela me exigiria dara
elas algo? Por que as coisas afinal precisariam de mim, deste menino
desobediente, para ter valor? Tem alguma coisa que não fecha. Talvez o
valor não seja tão objetivo assim.
Volto a pensar no meu tapauer-bola, todo riscado das peladas do
pátio, quase destruído. Qual era o valor daquilo pra mim? O valor do
tapauer era afetivo. Eu estava me lixando pra quantidade de trabalho
médio incorporada nele. Nem exprimia pra mim algum dinheiro que eu
pudesse obter vendendo ou trocando a coisa. O tapauer não representava
uma medida quantitativa. Era pra jogar bola ora! Uma atividade social e
lúdica. Reunia os cupinchas no preciosíssimo tempo livre, entre as aulas
sonolentas; um entreato de liberdade do tempo confinado e disciplinado
pela escola. No tapauer, existia um valor subjetivo, relacional, nem por
isso menos real, um valor todavia não reconhecido pelo poder
constituído. A diretora não podia aceitar o valor afetivo do tapauer.
Esta me educava a dar-lhe um outro tipo de valor. Que não era só valor
de troca (comprometido com a deterioração), mas também valor de uso
(guardar o alimento, sua função socialmente determinada). Mas os meninos recusávamos os valores de troca e de uso que
nos eram cobrados a reconhecer. Nesse processo insurgente, desafiávamos
não só a disciplina da escola, mas também a estrutura social íntima de
nosso mundo. Contestávamos na práxis a lógica do valor. E éramos mais
ricos por isso.
Fetiches e afetos
Quem sabe, o raciocínio valha pra todas as coisas. Todas com uma
dimensão afetiva. As relações que crio com os outros pegam nas coisas.
Sabe disso quem manuseia roupas de entes queridos falecidos, tão
impregnadas de subjetividade. Tudo isso que nos faz sentir de tantos
modos diferentes. Vale inclusive para as relações que crio comigo mesmo
(o que não deixa de ser um outro). O valor medido por dinheiro não
apreende a singularidade do que está em jogo. Aquela tapauer embutia um
mundo inacessível para a métrica padrão. O valor afetivo se compõe de
uma miríade de afetos que compartilhamos ao longo da vida. Com isso, na
verdade, as coisas se abrem. Tornam-se peças de um quebra-cabeças maior,
sem objetividade intrínseca. Os objetos se interconectam aos sujeitos
na experiência. Assim, só pode haver objetos essencialmente parciais,
que anseiam ontologicamente pelo preenchimento afetivo; bem como
sujeitos parciais, que afetam porque não se bastam dentro de si.
No Capital, Marx fala do fetiche da mercadoria. No século
19, a antropologia inventou o conceito de fetiche para comprovar, agora
com vezo científico, a inferioridade dos outros povos. Eram primitivos
porque não conseguiam separar os objetos dos sujeitos. Viam entidades,
potências míticas e qualidades sensíveis entranhadas em todo lugar. Eram
incapazes de enxergar a coisa como coisa, o seu valor interno enquanto
objeto separado do restante. Estavam presos a um mundo fetichizado. Marx
vai dizer que os brancos ocidentais também vivem o seu fetiche.
Conferem às coisas uma qualidade incorpórea que jamais esteve lá
“objetivamente”, e a partir do que se relacionam e organizam a
sociedade. Precisamente, o valor. Tal credo se arraigou tanto nessa
tribo que a maioria o toma por inquestionável. Como se, de fato, as
coisas tivessem um valor objetivo, e a economia não passasse da
movimentação mais ou menos espontânea, mais ou menos organizada, dos
inumeráveis valores sociais. Como se o dinheiro pudesse representar o
lugar, o tempo e o direito de cada qual, segundo a ordem cósmica da
economia capitalista. Como se o mercado fosse dotado do atributo
demiúrgico de atribuir a medida a todas as coisas. O ápice da
naturalização do valor se dá com a propriedade. Isto fica claro quando a
propriedade é de alguma forma problematizada, ao que se seguem o
terror, o pânico, a ira dos proprietários, como se a própria harmonia
universal tivesse sido ameaçada.
O leite que bebo no café da manhã passou por um longo percurso, da
fazenda à fábrica de processamento, à embalagem e controle de qualidade,
ao sistema de distribuição e varejo. Não posso ver o circuito produtivo
por trás do leite que chega prontinho na prateleira. Quando passeio
pelo shopping, tampouco posso saber de onde vêm as roupas na vitrine. Se
foram confeccionadas por bolivianas em regime de trabalho semiescravo
na Zona Norte de São Paulo, por adolescentes púberes em sweatshops na Mauritânia, ou made in China.
Não fui educado pra me preocupar com isso. O que deve importar é a
etiqueta, com que posso avaliar se o produto vale o preço. Mil e uma
operações de trabalho foram abstraídas, e junto dessa abstração uma
montanha de relações entre patrão e empregado, exploratórias, racistas,
sexistas, insalubres, violentas, toda a organização do trabalho. O
problema do valor não está só em quantificar o essencialmente
inquantificável, mas também apagar uma relação social desigual. Apagá-la
convenientemente.
A proposta socialista
Nesse contexto, uma proposta que se vê por aí consiste em
racionalizar a lógica do valor. É medir criteriosamente o quanto vale
cada coisa, seu justo preço. Esse valor pode ser calculado pelo tempo de
trabalho incorporado na coisa, o tempo socialmente necessário para a
sua produção. Segundo essa lógica, o valor do trabalho também pode ser
medido segundo critérios racionais. É preciso desenvolver essa ciência,
que calcule cuidadosamente a equivalência entre as coisas e o trabalho.
Cada ofício numa escala de valorização, um coeficiente xisque você multiplica pelo tempo ípsilon efetivamente
trabalhado, tendo como resultado o seu salário. O preço do leite passa a
embutir os custos envolvidos no conjunto de operações produtivas, da
vaca até a mesa. As roupas igualmente são dotadas de um valor que faça
jus ao trabalho dos envolvidos, sem margem para o sobrepreço.
Remuneram-se, com justiça, os trabalhadores envolvidos, pagam-se as
cotas devidas e cientificamente justificadas, sem gerar lucro para
ninguém. A lógica do valor passa a ser aplicada por uma razão superior,
com critérios científicos, regulando o mercado de modo que não sucedam
desequilíbrios e injustiças. Essa é, grosso modo, a proposta socialista.
Instaurar uma razão planificadora da produção, um estado-plano, que
decida o que produzir, como, onde, quanto e para quê. Foi tentado algo
parecido, em alguns momentos, no socialismo real do Leste Europeu e
URSS. Atribuíam-se metas, cotas, tabelas, padrões, fórmulas, toda uma
matematização para que a economia funcionasse ordenadamente, com base
nos valores de uso. Sem assim concentrar lucro, renda, propriedade, os
males capitalistas, mediante uma cadeia de equivalências estritamente
racional e metódica.
Fico pensando, nessa sociedade, se poderíamos jogar bola com o
tapauer na escola. É bem provável que eu teria sido repreendido da mesma
maneira. Talvez a diretora alterasse a primeira pergunta. Em vez do “É seu?”, diria, em tom moral, “Você sabe que foi o Povo quem fez isso?”. Ou, mais sinistra: “Você sabe que isso é do Estado?”.
A segunda pergunta permaneceria igual, sugerindo que não dei o mesmo
valor que o Povo ou o Estado dão. Tenho a suspeita que o socialismo real
fracassou não pela falta de concorrência ou motivação produtiva, essas
bobajadas que contam pra gente, como se no mundo capitalista os peixes
grandes não colaborassem promiscuamente entre si, forjando o ideal de
competividade apenas para a base, para que as pessoas passassem a
digladiar-se tolamente umas contras as outras, na arena de trabalho, em
vez de se aliarem todas contra os patrões e o sistema injusto. É
possível ponderar que o socialismo real tenha fracassado por continuar
considerando o valor como objetivo, no que não difere muito do velho
capitalismo. Ainda que esse valor objetivo seja chamado “valor de uso”.
Busca-se erigir uma sociedade unitária, disciplinada, harmônica,
comportada. Porém, fechada a novos usos, aos atributos sensíveis, às
dinâmicas afetivas e às potências míticas, a tudo isso que a vida é
mais, além das tabelas e fórmulas matemáticas, além da lógica do valor.
Esses socialistas seguiram Marx ao pé da letra. Mas ao combater o
fetiche negativo da mercadoria, mataram o fetiche positivo. Alienaram-se
da magia da vida. Perderam de vista o excesso de desejo e imaginação
que faz as pessoas plenamente livres. Numa palavra, o imensurável. O
que não tem nem pode ter medida.
O capitalismo afetivo
O próprio capitalismo se adaptou para captar o valor afetivo. Os
capitalistas não fizeram isso porque sejam bonzinhos, mas porque é mais
eficiente e lucrativo fazê-lo. Não consigo afastar a ideia que foi assim
que o capitalismo real superou o socialismo real. A sociedade
socialista proibia múltiplos usos e liberdades. Retificava todos
conforme a reta razão da ciência e do estado. Aplicava uma moral de bom
cidadão socialista, uma moral pouco permeável em qualquer lugar que se
olhasse. Já a sociedade capitalista, mais maleável e transigente,
integrava os excedentes e desvios em sua própria dinâmica. Se uma se
preocupava em negar o desejo e proibir o excesso, a outra preferia
governá-los.
Querem ouvir rock´n roll e dançar moonwalk? ótimo,
venderemos todo o tipo de música. Querem agitar a vida sexual? ótimo,
eis uma cultura pornô, sex shops, michês e prostitutas de luxo. Querem
conhecer a natureza selvagem, entrar em contato com o cosmos, defender o
verde da floresta contra as forças malignas do progresso? Ecoturismo,
esoterismo, ecologismo! Querem a revolução? venderemos camisetas de Che
Guevara… Pouco importa o quê, it´s business stupid.
Lá pelos anos 1960 e 1970, o capitalismo sofreu uma grande
transformação. O novo espírito do capitalismo funciona a partir do valor
afetivo. Sua métrica muda completamente. Opera a partir do
imensurável. Os cabeças do novo capitalismo reconhecem não existir razão
intrínseca nas coisas ou no trabalho, do que se poderia atribuir um
valor objetivo. O valor não tem mais como ser medido, por exemplo, pelo
tempo de trabalho incorporado nele, por qualquer outra aritmética
meramente quantificadora. O valor afetivo rigorosamente não tem preço,
não pode ser submetido à velha lógica dos valores de troca e de uso.
Nesse cenário, não seria irracional uma propaganda televisiva mostrar
meninos saudáveis e alegres jogando futebol com tapauers no pátio da
escola. Claro, nessa hipótese, seriam tapauers diferenciados,
recipientes adaptados ao multiuso, com um design especial para famílias
descoladas. E é esse componente afetivo que predominará na definição do
preço, e não admiraria se esses tapauers modernos custarem bem mais
caro. A atribuição de valor a um tênis pouco tem a ver com o circuito
produtivo de confecção e distribuição. Tem muito mais a ver com a marca,
a eficácia da publicidade, as imagens e os afetos que os publicitários
consigam coalhar como parte integrante do produto. Minha escola estava
mesmo desatualizada. O próprio capitalismo já aprendeu a dar valor
afetivo às coisas.
Isto não significa que o valor desapareça como fetiche hoje. Mas
perde qualquer ambição de representar objetivamente as coisas e o
trabalho. A medida perde a fixidez, se torna um limiar. A economia
política clássica e a neoclássica entram em crise. É o canto do cisne
das pretensões liberais clássicas, a aparição do neoliberalismo. O
neoliberalismo exprime o tipo de governo de quando o capitalismo desiste
da lógica quantitativa do valor. Esse novo modo de governar se regula
pelas finanças. Não que as finanças sejam algo novo no capitalismo. Na
realidade, a relação de débito e crédito vem desde o neolítico
precedendo a própria existência da moeda, e o sistema bancário existe
pelo menos desde os cavaleiros templários, no século 12. No entanto,
agora, o sistema financeiro se reveste de absoluta primazia. É ele quem
passa a mediar o valor. Menos como uma cúpula superpoderosa nalgum lugar
específico, do que como uma mediação interna a todas as operações
econômicas. O crédito, o investimento e os juros compõem
inextricavelmente o funcionamento econômico. A vida é financeirizada.
Comunismo da desmedida
As finanças são o único modo de conviver com a ruptura da medida. As
bolsas de valores flutuam junto com as incertezas, as nebulosas, as
ondas de choque e as vertigens da nova economia. Bilhões se criam
aparentemente do nada, outros bilhões evaporam, fábulas mudam de mãos a
altíssimas velocidades. O valor se dissolve como fluxo. E flui sem parar
sobre as fronteiras nacionais e regionais. Nesse modo de governar, não
se pretende mais gerenciar a equivalência para manter o equilíbrio do
todo econômico. Agora, o desafio é governar a não-equivalência,
assumindo a turbulência inerente do mundo da produção. Porque não tem
mais receita. Não tem outro jeito de continuar sustentando a
desigualdade e a injustiça. Então é caso de governar a instabilidade
mesma, garantir o valor em condições de vazamentos alucinados de
produtividade. E assim desconjurar a turbulência e controlar o seu
assanhamento político: o tumulto. A governabilidade depende da
capacidade de administrar uma crise tornada permanente. O neoliberalismo
vem junto do hard power contra a disseminação global do
tumulto. Por outro lado, as pretensões racionais e racionalizantes do
socialismo e das esquerdas se mostram nostálgicas, obsoletas. Hoje, as
forças produtivas se acham muito mais sofisticadas, e não existe marcha
ré na história. Em vez do plano homogêneo que o dinheiro pode medir e o
mercado organizar, como nos sonhos fordistas do pós-guerra; sucedem
inúmeros planos entrecruzados, heterogêneos, incompossíveis. Muitas
esquerdas sonham com um futuro passado.
No rodamoinho financeiro e suas bolhas, se torna indispensável uma
outra matemática. Outra natureza da medida, outras premissas e outras
variáveis, que levem em conta a imensurabilidade, a irreversibilidade, a
heterogênese, a homeorrese. A história da matemática marcha ombro a
ombro com o desenvolvimento financeiro. A econometria se esforça para
compreender mercados multidimensionais, lógicas não-lineares, fractais,
movimentos brownianos, processos de Wiener, teoria do caos, cadeias de
Markov, cálculo estocástico. Não é por acaso. E também não foi por acaso
que meu professor (curiosamente, ele se chamava Milioni) disse que eu
poderia ficar rico com a econometria. Eu costumava estudar matemática
pra entender coisas como o conjunto de Mandelbrot ou o paradoxo das
paralelas, não me ocorrera que poderia servir para trabalhar para o
sistema financeiro. Deja vu. Era novamente o menino fazendo um uso
inútil, desperdiçando as coisas com seus amiguinhos não-enquadrados.
Comecei a pensar, então, se não era possível resistir do mesmo modo
clandestino e subversivo quando éramos crianças. Organizar com os
cupinchas, na alegria e desobediência, uma práxis. Quer dizer, jogar
futebol matematicamente, além da imposição do valor pelo sistema
financeiro e o neoliberalismo. Nem tanto renegar o poder de abstração e o
efeito de liquefação das finanças, mas roubar-lhe o fogo, numa ação
coletiva dentro e contra o próprio sistema.
Hoje vejo como essa pergunta não se orienta por algo a fazer. A
revolução e o comunismo não são algo ainda a ser feito. Projetá-los num
futuro bloqueado é tão impotente quanto identificá-los num passado
frustrado. É que essa desmedida já está sendo realizada
coletivamente por muitos grupos, dispersos, imanentes, com maior ou
menor grau de ânimo rebelde. Organizam-se produtivamente a partir do
valor afetivo: maximizam afetos ativos e bons encontros, minimizam os
passivos e ruins. Resistem quando necessário. Reexistem sempre. Do menos
fazem o mais: na favela, no devir índio, na internet bárbara. Recusam a
imposição do valor, noutras palavras, o puro mando da forma de governo
contemporânea. Pautam-se mais pelo compartilhamento que pelas trocas,
pela cooperação do que concorrência, pela paridade e camaradagem em vez
da verticalização. Reafirmam-se no singular. Conceitualmente, podem ser a
multidão de que fala Negri, as máquinas nômades de Deleuze e Guattari, o
povo antropófago por vir, a classe selvagem sem nome. Essas
experiências reafirmam o propósito de viver além do valor. Anseiam por
um viver bem. Propugnam por uma espécie de comunismo pós-moderno e
heterodoxo. Vivem na pele, com o que se relacionam ao infinito, uma
insuficiência intensiva e qualitativa.
Mas aqui não cabe, esquematicamente, opor o quantitativo ao
qualitativo, o produto ao processo, o extensivo ao intensivo, a
normalidade vazia à superabundância de uma vida vivida com coragem e
generosidade. Queremos o pátio para nós e não aceitaremos mais as
injunções da diretora. Queremos a matemática avançada, o cálculo
estocástico, o sistema financeiro como um todo, todos seus recursos e
artimanhas.
É reapropriar tanto a riqueza social, quanto o poder líquido
de mobilizá-la em suas infinitas escalas e níveis.
Queremos autonomia
para produzir sem valor.
Queremos tudo, porque é tudo nosso.
Quero a
bola de volta.
—-
* Devo doses cavalares deste ensaio ao livro O casaco de Marx (Peter Stallybrass, trad. Tomaz Tadeu, Autêntica), além dos 3 livros do Capital e dosGrundrisse, de Marx, e toda a crítica à teoria do valor elaborada por Antonio Negri e os autonomistas operaístas, como Christian Marazzi, Carlo Vercellone, Andrea Fumagalli, Giuseppe Cocco e Gigi Roggero.
** Agradeço ainda à diretora da escola e ao professor de econometria.
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