Ou como o PT perdeu o bonde da história
Terça-feira , dia 25 de Setembro , Francisco de Oliveira se reuniu com Leda Paulani, Luiz
Weneck Vianna e Paulo Arantes para um debate sobre o livro Crítica à razão dualista,
considerado um dos principais livros sociologia brasileira. O evento
faz parte de um ciclo de debates, no Rio de Janeiro e em São Paulo por
ocasião do quadragenário do livro.
Dez anos atras, quando o livro completou seus 30 anos Leda Paulani dedicou um ensaio ao livro, que publicamos na íntegra abaixo:
Os trinta anos da “Crítica à razão dualista”, ou…
Que saudade do subdesenvolvimento!
Que saudade do subdesenvolvimento!
Por Leda Maria Paulani.*
A Crítica à razão dualista,
de Francisco de Oliveira, publicada pela primeira vez como ensaio em
1972 e transformada em livro em 1973, é um clássico da reflexão sobre o
Brasil. E não se trata de um automatismo de linguagem. Estamos diante
de um clássico não apenas pela infinidade de vezes em que a Crítica
foi citada e comentada nestas suas três décadas de vida ou por conta da
fortuna crítica que gerou (menos rica, aliás, do que merecia…).
Tampouco se lhe coloca o rótulo apenas por ter se tornado referência
obrigatória a quem quer que pretenda refletir sobre a natureza do
capitalismo que por aqui germina. A Crítica é um clássico principalmente por sua indiscutível e dolorosa atualidade.
Depois de
ter demonstrado, por a + b, que a especificidade do capitalismo
periférico brasileiro estava justamente em que a desigualdade e a
exclusão haviam se transformado em elementos vitais de sua dinâmica,
Chico1 encerra seu famoso texto com as seguintes palavras:
“Nenhum determinismo ideológico pode aventurar-se a prever o futuro, mas
parece muito evidente que ele está marcado pelos signos opostos do apartheid
ou da revolução social.” A enormidade da afirmação, que desconjuntava
cepalinos e conservadores, aqueles porque tinham a convicção arraigada
de que bastava “consertar” a parte estragada do sistema que tudo
entraria nos eixos, estes porque se apavoravam com a perspectiva da
alternativa colocada por Chico (que ele chamava de “revolução”
certamente por épater la bourgeoisie), foi de uma precisão assustadora.
Trinta anos depois, como não sobreveio a revolução social, a figura dantesca do apartheid está em cada palmo de terra e em cada esquina de nossas cidades:
… grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa e lavando-sujando vidros de carros, ambulantes por todos os lugares – os leitos das tradicionais e bancárias e banqueiras ruas 15 e Boa Vista em São Paulo transformaram-se em tapetes de quinquilharias – o entorno do formoso e iluminadíssimo Teatro Municipal de São Paulo (…) exibe o teatro de uma sociedade derrotada, um bazar multiforme onde a cópia pobre do bem de consumo de alto nível é horrivelmente kitsch, milhares de vendedores de coca-cola, guaraná, cerveja, água mineral, nas portas dos estádios duas vezes por semana…
A horrível
mas fiel descrição é da lavra do próprio Chico que, para esta reedição
de seu clássico pela Boitempo, escreveu um ensaio formidável, “O
ornitorrinco”, no qual deu-se ao trabalho não de mostrar suas inegáveis
qualidades de vidente, o que não é preciso, mas de elaborar a necessária
atualização de sua Crítica, engordada por mais três décadas do mesmo jogo perverso.
“O
ornitorrinco” foi o nome que Chico deu ao Brasil capitalista de hoje.
Animal de difícil classificação, combinação esdrúxula de características
de mamífero, de ave e de réptil, o ornitorrinco pareceu a Chico a forma
mais adequada para qualificar a espécie de capitalismo que se gerou no
país. Modernidade e atraso, como sempre, mas desta vez sem remissão e
levados ao paroxismo.
Mas… e o governo Lula?
Não teria chegado
finalmente o momento, por adversas que fossem as ditas condições
objetivas, do resgate do espírito republicano necessário a uma
refundação da sociedade? Não estaria aí a centelha que despertaria o
Brasil de sua secular letargia? Ainda mais com os trabalhadores sendo em
princípio proprietários de grandes fundos de inversão e de
investimento, não teria afinal chegado a hora de levar a efeito, e desta
vez sem épater la bourgeoisie, a dita “revolução social”? Chico chega lá.
No início de seu “Ornitorrinco”, Chico relembra a forma específica do subdesenvolvimento brasileiro que ele indicara na Crítica:
a funcionalidade, para o processo de acumulação, da agricultura de
subsistência e, mais tarde, do inchaço das cidades, a idêntica
funcionalidade da irresolução da questão da terra e do estatuto da força
de trabalho e, por fim, a debilidade do financiamento interno da
acumulação de capital, gerando dependência externa crescente. Relembra
também suas colocações sobre o papel da burguesia nacional na manutenção
dessa situação. Na Crítica, Chico argumentara que a
singularidade desse subdesenvolvimento trazia em si a possibilidade de
sua superação, desde que a burguesia nacional compartilhasse com as
classes subordinadas o projeto emancipatório, basicamente, reforma
agrária e crescimento da organização dos trabalhadores. Tomadas essas
providências, a inserção do país na divisão internacional do trabalho
permitiria a queima de etapas, possibilitada pelo padrão tecnológico
então vigente, de acumulação por soluço.
O próprio
Chico, porém, já constatava ali, desoladamente, que a burguesia nacional
virara as costas a essa possibilidade, preferindo, em vez disso,
aliar-se ao capital internacional, que já invadia fortemente seu reduto
de classe, escolha essa que o golpe de 1964 apenas
ratificara.
Daí classificar o subdesenvolvimento não nos marcos das
teorias evolucionistas, caracterizadas pela finalidade e pela ausência
de consciência, mas considerá-lo como fenômeno passível de ser descrito
weberianamente (uma ação com sentido), e marxianamente (a articulação
das formas econômicas inclui a política como elemento estruturante).
Isso posto, o
que foi feito desse subdesenvolvimento três décadas depois? Chico
lamenta, mas informa seu passamento e reza-lhe a missa de réquiem.
Desperdiçada a possibilidade anteriormente aberta, o acúmulo de mais
quatro décadas de acumulação com concentração de renda e aumento da
desigualdade e da exclusão e com a continuidade e exacerbamento da
dependência financeira externa combinou-se com o advento da terceira
revolução industrial, comandada, além de tudo, pelos imperativos da
acumulação financeira, hoje predominantes em nível mundial. No paradigma
molecular-digital, como Chico o denomina, o progresso técnico é
incremental, impossibilitando a queima de etapas e o respiro de um the day after,
quando já não se precisaria mais de elevadas taxas de investimento.
Por conta disso, ele traz unidas ciência e tecnologia e está trancado
nas patentes, não sendo, portanto, universalizável. Finalmente, ele é
descartável e efêmero, exigindo um esforço de investimento que está
sempre aquém das forças internas de acumulação dos países periféricos.
Nesse
contexto, o que resta a esses países a título de “desenvolvimento
tecnológico” são apenas os bens de consumo, o descartável que eles podem
(e devem) copiar. Além disso, graças à divisibilidade das formas que
produz, e que Chico sintomaticamente credita ao “salto mortal que a
terceira revolução industrial faz na direção da plenitude do trabalho
abstrato”, o novo padrão é capaz, nas suas palavras, de “descer aos
infernos da má distribuição de renda”, fazendo chegar aos estratos mais
baixos todas as formas dos produtos da revolução molecular-digital. A
empregada doméstica, sem as mínimas condições de ter um padrão de vida
decente, na maior parte das vezes sem registro e sem direitos e sem
jornada de trabalho definida, mas proprietária de um celular, traduz à
perfeição o que Chico está querendo dizer.
E é assim, por caminhos inusitados, que, com quarenta anos de atraso, configura-se o acerto das teses que Chico destruíra na Crítica.
A má distribuição da renda e da riqueza, resultantes fundamentalmente
da permanência do estatuto rebaixado da força de trabalho e da
irresolução da questão da terra, que foi funcional à expansão
capitalista ao longo de pelo menos cinco décadas (de 1930 a 1980),
porque sustentou uma forma de acumulação que a financiou, vai se
revelando mais e mais incompatível com as exigências impostas pelo novo
padrão molecular-digital, dominado pelos imperativos da acumulação
financeira. Por mais que se tente correr contra o relógio e “acertar o
passo do país” com esse novo padrão, os resultados são sempre pífios,
não só pela efemeridade e descartabilidade que o caracteriza, mas
principalmente porque, construídas dessa forma, as bases internas da
acumulação são-lhe absolutamente insuficientes. Resumindo, se antes, a
possibilidade estava aberta e só não era realizada por uma “escolha” das
elites internas, agora ela não existe mais.
Mas que
alternativas existiriam então para os países periféricos? Se é que o
termo faz algum sentido (e ele é meu e não do Chico, que nada tem que
ver com a “viagem” realizada neste parágrafo), restaria a possibilidade,
de um, por assim dizer, “desenvolvimento verdadeiramente alternativo”,
de feitio democrático e popular. Ele seria pautado, em primeiro lugar,
por uma redistribuição radical da renda, por meio de mecanismos como a
renda básica de cidadania3, que poderá vir a ocupar, dado o
contexto do mundo do trabalho hoje imperante, o papel que ocupou, e
ainda ocupa no centro do sistema, a assim chamada rede de proteção
social, tecida, contudo, sobre os marcos da relação salarial. Ele seria
igualmente pautado por uma redistribuição da riqueza, que envolveria
não só uma verdadeira reforma agrária, como a progressividade efetiva
dos impostos sobre patrimônio, transferência e herança. Por fim, ele
exigiria uma radicalização dos mecanismos de democracia direta, única
forma de garantir a transparência e o controle social dos recursos
públicos.
Mas quem
seria capaz de operar tamanha reviravolta? Que forças políticas seriam
capazes de implementar um programa dessa natureza? Quem sabe um partido
político nascido e ceifado nas lutas pela democratização, pela
republicanização e pela soberania do país. Um partido de esquerda,
parido não das vanguardas intelectuais e políticas, mas da luta de
classes, construído de baixo para cima. Então estamos feitos! O PT é
esse partido, talvez único no mundo. E ele ganhou as eleições
presidenciais e o governo federal em 2002.
Mas,
lamentavelmente, a história parece que não vai ter um final feliz.
Contrapostos a tais expectativas, os seis primeiros meses do governo
Lula foram desoladores. E não só pela política econômica, mais realista
que o rei. Com todo o cacife político que angariou no processo
eleitoral, a despeito das concessões feitas, o governo do PT poderia ter
começado de modo agressivo no sentido do que aqui chamamos
“desenvolvimento alternativo”. Mas optou, ao contrário, por começar pela
reforma da Previdência, para adaptar o país à modernidade dos fundos de
pensão, muito funcionais aos imperativos da acumulação financeira, mas
que são já de triste história nos países do centro, graças à seqüência
de bancarrotas e de promessas de benefícios não cumpridas. E fez isso,
além do mais, satanizando os servidores públicos, atribuindo-lhes
indiretamente a culpa maior pelo descalabro social do país. Como se
explica isso?
Mestre Chico
tem a resposta e a apresenta no “Ornitorrinco”. Para ele está em
formação no país uma nova classe social, aparentada daquilo que Robert
Reich chama de “analistas simbólicos”. Essa nova classe reuniria, de um
lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo
duro do PSDB, e, de outro, operários transformados em operadores de
fundos de Previdência, núcleo duro do PT. A identidade dos dois casos,
afirma Chico, “reside no controle do acesso aos fundos públicos, no
conhecimento do mapa da mina”. E Chico mapeia essa nova classe,
valendo-se do que há de melhor na literatura sobre o tema.
Marxianamente, ela tem um lugar e uma função claros na reprodução do
sistema: como “experts da medida” e “agentes da medida”, eles estão no
sistema financeiro e em suas mediações estatais e detêm o controle do
acesso aos fundos públicos. Thompsonianamente, eles têm uma
experiência de classe, que é a experiência das elites, e, logo, não se
trata mais de trabalhadores, ainda que não se possa confundi-los com a
burguesia. Gramscianamente, a classe se formou a partir de um novo
consenso sobre mercado e Estado, o que explica não só o fascínio e a
opção, agora explícitos, por um caminho do tipo “terceira via”, como a
pragmática e recente convergência entre o PT e o PSDB. Finalmente,
socorrendo-se mais uma vez de Marx, Chico lembra que a referida classe
formou-se justamente na luta pela apropriação do lugar onde se forma
parte do lucro, ou seja, os fundos públicos.
Sendo assim,
mesmo com a histórica vitória do PT nas eleições presidenciais de 2002,
o ornitorrinco deverá ter fértil e longa vida, aprofundando e
magnificando o apartheid social que Chico previra há trinta
anos. É claro que ele pode estar completamente errado e, conhecendo-o,
acredito que ele sinceramente torce por isso. Mas ele tem acertado
tanto…
*Publicado originalmente na Revista Margem Esquerda #2 (pp.198-203)
***
Leda Paulani é
economista e doutora em Economia pelo IPE-USP, é professora do
Departamento de Economia da FEA-USP e da pós-graduação em Economia do
IPE-USP. Além de colaboradora da Revista Margem Esquerda, tem artigos publicados em revistas acadêmicas nacionais e estrangeiras e é integra o conselho editorial de publicações como a Revista de Economia Política.
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