No recém-lançado , " Os sentidos do lulismo – reforma gradual e pacto conservador "
(Companhia das Letras), o cientista político e jornalista André Singer
defende a tese de que as políticas sociais e de distribuição de renda do
primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva
criaram um grande bloco de eleitores que impôs uma nova agenda ao País.
Isso teria levado todas as demais forças políticas, inclusive a
oposição, a se realinharem em torno de ações como o Bolsa Família e o
aumento do salário mínimo.
Galeria: Veja imagens que marcaram o governo do ex-presidente Lula
Por um lado isso ajudou a diminuir o fosso social que
separa ricos e pobres no Brasil. Por outro, obrigou Lula a firmar um
pacto com setores mais conservadores da sociedade e a se afastar de
bandeiras históricas da fundação do PT. À conjunção destas posições
naturalmente antagônicas, Singer batizou de lulismo. Além de pesquisar
com rigor científico o fenômeno do lulismo, o autor foi espectador
privilegiado de todo o processo, na condição de porta-voz da Presidência
da República durante o primeiro mandato de Lula.
Em entrevista concedida ao iG
em sua sala na Universidade de São Paulo (USP), Singer disse que o
petismo foi engolido pelo lulismo, que o fenômeno ainda deve durar por
pelo menos mais uma década e pode ser apropriado por outras forças
políticas. Leiz abaixo os principais trechos da entrevista:
iG – Quais as diferenças entre lulismo e petismo?
André Singer
- Originalmente o petismo foi organizado em torno daquilo que eu chamo de espírito do Sion ( colégio paulistano onde o PT foi fundado, em 1980
) que marcou o partido durante os 20 primeiros anos. A marca fundamental
daquele momento é o radicalismo. O PT se assumiu como partido radical
dentro de uma cultura política que sempre foi avessa a isso. O Brasil
tem uma longa tradição de conciliação. Portanto a grande novidade do PT
foi ter assumido uma postura abertamente radical. Existem alguns exemplo
de como esse radicalismo se traduziu em ação: a decisão de não votar no
Tancredo Neves no colégio eleitoral em 1985, nem na Constituinte, em
1988. Mas talvez o exemplo mais radical foi ao recusar o apoio gratuito
que o Ulysses Guimarães ofereceu em nome do PMDB quando Lula tinha
condições de vencer Collor no segundo turno da eleição presidencial de
1989. O petismo trazia até 2002 essa marca e o lulismo surgiu a partir
de uma mudança dessa definição radical no primeiro e segundo mandatos de
Lula, mandatos precedidos por uma campanha com espírito de conciliação
que pode ser visto na Carta ao Povo Brasileiro, que tem compromissos de
fundo com o capital, ou na escolha de uma aliança com o Partido Liberal
que já no nome trazia uma ideologia contrária à do PT e na decisão de
colocar como vice um grande empresário brasileiro. José Alencar acabou
se revelando um homem extraordinário mas sua escolha é cheia de
significados. Aí começa a história do lulismo, que tem a ver com um
pacto que chamo de pacto conservador, já sinalizado na campanha de 2002 e
que, de fato, foi cumprido.
iG – Qual é a novidade neste modelo?
Singer
- Se minha argumentação parasse aqui ela ficaria manca porque não se
trata apenas de um pacto conservador. Na medida em que o mandato foi se
cumprindo houve uma combinação surpreendente deste pacto conservador com
medidas de combate à pobreza e redução da desigualdade. Isso
caracteriza uma política econômica que não é propriamente conservadora. É
uma coisa nova. Essa combinação de elementos contrários é o que eu
chamo de lulismo.
iG – O lulismo engoliu o petismo?
Singer
– Dentro do PT, sim. O que chamo de espírito do Sion continua presente
no PT e não é irrelevante. Ainda existem alas no partido que pensam em
relação à postura original do PT. Não sei quantificar. É uma parcela
significativa do partido, mas que deixou de ser predominante. A direção
do PT foi em direção ao lulismo. O lulismo virou o programa real do
partido.
iG – O lulismo é um monopólio do PT ou pode ser apropriado por outras forças políticas?
Singer
– Não é um monopólio do PT. Em 2006 houve um realinhamento eleitoral e
os realinhamentos têm a característica de impor uma nova agenda. Isso
obrigou a própria oposição a se deslocar em direção a esta nova agenda e
a agenda que está fixada é a de combate à pobreza, tanto que em 2010
Serra propôs dobrar os benefícios do Bolsa Família. E isso não foi só
retórica. Quando se forma uma nova maioria dotada de estabilidade –e
minha hipótese é que isso é uma coisa de longa duração— todas as forças
são obrigadas a de algum modo se rearrumar para fazer frente a esta nova
agenda. Essa apropriação do lulismo é típica do realinhamento.
iG – Se o lulismo é um pacto conservador o que explica a reação contrária de setores da elite brasileira?
Singer
– Pacto necessariamente implica um acordo entre diferentes, entre
forças que têm conflitos. Pacto não significa resolver estes conflitos
mas encontrar um modo de viver com eles. Isso implica tensões,
separações e oscilações dentro dele. Quando se fala em pacto está
reconhecido que existe o conflito. Essa reação tem duas facetas
diferentes. A primeira é que a luta de classes continua existindo e se
expressa na forte divergência que existe sobre a política econômica que
está o tempo todo em jogo. Maior ou menor autonomia do Banco Central?
Maior ou menor taxa de juros? Maior ou menor gasto público? E assim por
diante. Há decisões extremamente relevantes sendo tomadas o tempo todo
que envolvem burguesia e proletariado. Então o conflito central continua
de pé e é arbitrado pelo governo que ora pende para um lado, ora para o
outro. De alguma maneira, com a mudança do PT, este conflito que era
evidente e se expressava no confronto entre esquerda e direita, recuou
para o fundo da cena. Ele ainda existe mas é mais difícil de perceber. O
outro aspecto é que a política de combate à pobreza e redução da
desigualdade provocou uma forte reação da classe média tradicional.
iG – É uma reação ideológica?
Singer
- Isso tem um aspecto ideológico mas também material. Há uma diferença
entre o grande capital, que está olhando para as grandes linhas de
política econômica e pressionando numa ou noutra direção, e o que eu
tenho chamado de base de massa do grande capital que é a classe média
tradicional. Esta parcela está mobilizada por um sentimento de rejeição
às políticas sociais que permitiram a mudança no padrão de vida dos
setores de baixa e baixíssima renda. Tem um aspecto material nisso
porque você pode perceber desde a redução na oferta de mão de obra para
trabalho doméstico até a maior presença de pessoas que antes tinham
baixa renda em lugares como aeroportos, que antes eram exclusivos dessa
classe média tradicional. Isso tem um efeito real na vida deste setor.
Por outro lado, parte destes programas sociais foi feita com dinheiro
dos impostos. Como o imposto é pago em parte pela classe média, o
raciocínio é de que este recurso tem saído do bolso das pessoas que não
têm gostado de ver este movimento de chegada de mais gente nos seus
espaços. Parece ser algo como uma espécie de crença de que é normal que
haja privilégios.
iG – Isso pode levar a confrontos e radicalização?
Singer
– Não sei dizer no plano da sociedade. No plano político, observo que
há uma espécie de blindagem desse conflito que está posto e determina
uma polarização partidária. Apesar dos efeitos do realinhamento que
obrigaram a própria oposição a se deslocar em direção a uma certa
agenda, PT e PSDB continuam representando polos diferentes na política
brasileira. Ainda há uma polarização por causa dessas bases sociais tão
diferentes que estão confrontadas. No entanto, passamos por um período
prolongado de ausência de radicalização política, uma espécie de paz
política. Isso porque o lulismo tem como um de seus componentes não ser
mobilizador. A mobilização produziria radicalização e confronto. Como o
lulismo é um modelo de mudança dentro da ordem, até com um reforço da
ordem, ele não é e não pode ser mobilizador. Isso faz com que o conflito
não tenha uma expressão política partidária, eleitoral, institucional. A
tal ponto que há uma grande frustração da classe média tradicional
porque não há um partido político que expresse essa carga de
hostilidade. Imagino que haja até uma frustração de certa forma contida.
Mas no que depender do modelo lulista isso vai continuar.
iG – Para algumas pessoas, a oposição mais
agressiva ao lulismo está fora dos partidos. O PT, por exemplo, aponta a
imprensa. Há espaço para surgimento de um partido que represente os
setores contrários ao lulismo?
Singer
– Em relação à mídia sempre é preciso lembrar que a garantia absoluta
de liberdade de expressão e de imprensa é uma conquista democrática. Não
existe democracia sem isso e, portanto, quaisquer que sejam as opiniões
que a imprensa tenha, elas precisam ser aceitas dentro funcionamento
normal da democracia. Isto posto é preciso dizer, sem criar fantasmas,
que de fato tem havido uma certa desarticulação da oposição, que não
consegue encontrar um discurso eleitoralmente eficiente para se
relacionar com o lulismo, e neste contexto a imprensa às vezes cumpre o
papel de fazer um tipo de crítica mais constante e às vezes até mais
articulada e definida ao governo. Então poderia se dizer que sim, a
imprensa às vezes cumpre o papel de oposição. Mas não acho que tenha
espaço para um novo partido. Infelizmente o quadro partidário brasileiro
está pouco definido e isso não é bom para a democracia. É uma
indefinição que começou com a aliança entre PSDB e PFL em 1994 e
continua com as alianças que o PT fez com o PL e depois outros partidos
da direita a partir de 2002.
iG – A questão ética e o julgamento do mensalão são ameaças ao lulismo?
Singer
– Provavelmente, dependendo do resultado, o julgamento terá impacto
sobre toda a política brasileira, inclusive sobre o lulismo. Já a
questão ética é uma dimensão de uma certa maneira separada porque ela
tem a ver com o patrimonialismo e atravessa a política brasileira de A a
Z. Quando fui escrever o livro pensei neste problema e concluí que este
é um universo à parte. Não sou a pessoa habilitada para falar nisso
porque na minha pesquisa me concentrei na questão da igualdade até
porque fomos até pouco tempo o país mais desigual do mundo. Estou, na
verdade, tentando justificar uma não resposta.
iG – Quando o modelo do lulismo vai se esgotar?
Singer
– Não há como prever mas a tese é de um realinhamento de longo prazo. O lulismo já tem 10 anos. Talvez mais 10 anos.
iG – O lulismo é uma espécie de camisa de força,
no sentido de que o sistema eleitoral assimilou o modelo e hoje o
replica em todos os locais a instâncias?
Singer
– Se você quiser usar a expressão camisa de força é até correto. Mas
ela precisa ser compreendida como efeito do realinhamento. É isso que eu
chamo de imposição de uma agenda. Não tem como sair dela porque
eleitoralmente se constituiu uma maioria. É por isso que houve essa
migração de políticos do DEM para o PSD. É para ficar numa posição que
não seja antagônica a esta maioria. Se um político antagonizar com a
maioria vai perder logo de cara porque fica com a minoria. Mas dentro
disso que você chamou de camisa de força vejo um aspecto positivo porque
em um país tão desigual quanto o Brasil o fato de ter se formado uma
maioria que obrigue seja quem for o governo a fazer política para
reduzir a desigualdade é muito importante. A gente precisa olhar para o
aspecto grande. Superar este abismo social é o desafio que está posto
para o Brasil. O fato de que todos os competidores que têm aspirações
majoritárias se sintam constrangidos --e você usou a expressão camisa de
força-- a atender essa agenda, eu não acho ruim.
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