"A dignidade do indivíduo é um bem que deve ser tutelado pela coletividade e pelo Estado".
Leonardo Sakamoto
Um trabalhador havia conseguido, em primeira instância, uma
decisão na Justiça do Trabalho para que o fazendeiro e juiz Marcelo
Testa Baldochi lhe pagasse R$ 7 mil, como indenização por danos morais.
Ele havia sido resgatado por um grupo de fiscalização do governo federal
de condições análogas às de escravo no interior do Maranhão em 2007.
O caso Baldochi ficou famoso e rodou o país por razões óbvias, afinal
de contas não é todo dia que se vê um juiz envolvido em uma situação
assim.
A Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho no Maranhão votou
contra a indenização e o acórdão saiu no último dia 13 de setembro
(processo número 0143200-45.2009.5.16.0013).
Sem entrar no mérito das confusões que os desembargadores fizeram
sobre o que é trabalho escravo contemporâneo – o que fica evidente para
quem lê o acórdão – gostaria de destacar um tema específico que vai além
do crime em questão. Ou seja, a visão que alguns de nossos magistrados
do Trabalho têm do que sejam direitos dos trabalhadores.
Segue um trecho retirado da decisão do Tribunal (em itálico):
“Em relação às condições de moradia, ditas aviltantes, sem
banheiro e tratamento de água e esgoto adequadas, mister que façamos
algumas reflexões. Vejamos. É patente que a maior parte da população
mundial, mormente dos países periféricos, como é o caso do Brasil,
vivencia uma realidade social de privação, seja como morador das
periferias nas grandes cidades, seja como habitante da zona rural.
Não raro, tomamos conhecimento de que, em pleno século XXI,
grandes cidades brasileiras não dispõem de condições ideais de
saneamento básico, tais como tratamento de água e esgoto, realidade essa
que não muito diferente da que se espera encontrar em locais que estão
incrustados no meio do mato, distantes mais de 32 km do povoado mais
próximo.
Sem irmos longe, faço o seguinte questionamento: quantos de nós
confiamos no tratamento de água recebido pelas empresas de
abastecimento, que servem nossas residências e nossos locais de
trabalho? Se formos pensar sob esse prisma, todos nós estamos submetidos
a situações degradantes e passíveis de reparação por dano moral.
Todo trabalho desenvolvido, seja como operário da construção
civil, seja como catador de lixo, seja como gari, seja como trabalhador
rural, lidando com o cultivo da terra, na agricultura ou mesmo na
pecuária, cada trabalhador cumpre um papel relevante para o
desenvolvimento econômico da sociedade, se submetendo às condições
próprias do exercício da função desempenhada, de acordo com a realidade e
o contexto em que se desenvolve.
Não se pode querer aplicar à realidade de um trabalhador rural,
do nordeste brasileiro, um ambiente de trabalho diverso do que fora
apresentado na situação em análise. É surreal pretender aplicar ao
local, onde são realizadas as frentes de trabalho rural, estrutura e
ambiente de trabalho próprios dos grandes centros urbanos, que atendem
às necessidades das atividades ali desenvolvidas.
Contudo, cabe anotar que, não pretendo fazer apologia das
condições retratadas nos presentes autos, nem tampouco entendo que tais
condições sejam as ideais. Apenas busco uma reflexão acerca das
diferenças existentes entre as condições ditas ideais e aquelas que
verificamos na realidade, no nosso dia-a-dia, ou que, pelo menos, faz
parte do cotidiano daqueles que vivem e trabalham na zona rural.
A prova maior de que as condições usufruídas pelo trabalhador nas
dependências da reclamada não são diferentes ou alheias ao seu
cotidiano, é o fato de que o mesmo não vislumbrou qualquer óbice em
retornar ao mesmo local, para exercício da mesma atividade e sob as
mesmas condições, em menos de 2 meses após seu regresso à cidade de
origem.
Atribuir à reclamada a obrigação de indenizar o reclamante pelas
condições retratadas, seria o mesmo que admitir que todos nós seríamos
obrigados a indenizar uns aos outros, pelas situações que são próprias,
inerentes ao contexto social, cultural e econômico em que vivemos.”
Grosso modo, é o seguinte: a vida do cabra era uma titica antes de ir
pra fazenda. Lá, as condições não eram ideais. Depois, quando foi
embora, acabou por voltar para a mesma situação. Portanto, que culpa o
fazendeiro tem?
Seria piada, se não fosse um tapa do Estado na cara de uma pessoa que já tinha sido despida de seus direitos e de sua dignidade.
Eu posso viver dentro do pântano, comendo estrume e bebendo xixi de
cabra. Na hora em que passo a trabalhar para alguém, alojado em sua
propriedade, ele tem a obrigação de garantir condições dignas para mim. E
mesmo que um trabalhador concorde com condições precárias ou indignas,
mesmo que peça para trabalhar apenas por comida, o empregador não pode
sujeitá-lo a elas. De acordo com tratados e convenções internacionais do
qual o Brasil é signatário, o consentimento sobre a própria exploração é
irrelevante.
A dignidade do indivíduo é um bem que deve ser tutelado
pela coletividade e pelo Estado.
Ninguém ignora que o trabalho no campo e na cidade possuem suas
peculiaridades, mas a lei garante que o primeiro e o segundo contam com
os mesmos direitos. Perante a Constituição, não existe cidadãos de
primeira e segunda classes. A prática, é claro, tem sido diferente por
casos como esse.
E se há propriedades rurais que conseguem operar dentro da lei,
oferecendo água potável e banheiros aos seus empregados, mesmo com
frentes de trabalho distantes da sede da fazenda, por que outras não?
Pois fica inviável economicamente? Que raios de empreendimentos são
esses que só existem por conta da superexploração de trabalhadores?
Senti uma certa vergonha por conta da comparação descabida com as
“empresas de abastecimento”. Afinal de contas, estamos falando de
pessoas que estavam sob condições precárias de acesso à água.
Se formos
pensar sob esse prisma, não precisamos de Justiça do Trabalho.
Mas os
desembargadores são livres para expressarem sua opinião da maneira que
quiserem.
E nós de torcer por uma revisão da decisão em uma instância
superior.
Por fim, quem define as “condições próprias do exercício da função
desempenhada”, citadas na decisão? Porque elas não são dadas pelo
Sobrenatural, não surgem de geração espontânea, mas têm sido impostas de
cima para baixo, de patrões para empregados ao longo de décadas,
batizadas com os nomes esdrúxulos de “tradição”, “cultura” e “hábito”.
Perguntem aos trabalhadores se eles concordam com isso. Que tipo tacanha
de contrato entre capital e trabalho é esse?
“Sempre foi assim” porque alguém quis que fosse. Alguém
economicamente e politicamente mais forte e que contou – e, pelo visto,
continua contando – com interpretações favoráveis da lei por parte de
setores do Estado.
Observação incluída em 17/09: A decisão da Primeira Turma do Tribunal
Regional do Trabalho no Maranhão (TRT-16) não foi unânime, mas sim por
maioria. O desembargador Luiz Cosmo, relator da matéria, foi voto
vencido. Ele havia reconhecido tanto a ocorrência de trabalho análogo ao
de escravo quanto a existência do dano moral pleiteado.
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