Seguindo
o procedimento-padrão de encarcerar primeiro para depois analisar as
condições do acusado e do próprio delito, a prisão provisória
transformou-se em um instrumento para castigar os mais pobres, sejam
eles culpados ou inocentes
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por Patrícia Benvenuti, Cristiano Navarro |
Em junho de 2012, João foi a uma panificadora no bairro da Freguesia do
Ó, na zona norte de São Paulo, comprar uma pizza. Na ocasião, foi
acusado por funcionários da loja de tentar furtar uma garrafa de vinho.
Os responsáveis pela loja chamaram a Polícia Militar, mas antes
resolveram fazer “justiça” por eles mesmos. Deram uma surra em João
dentro do próprio estabelecimento comercial. Com a chegada dos
policiais, em vez de proteção, João recebeu dos soldados mais porradas,
além de agressões verbais e ameaças. “Ameaçaram me levar para uma
pedreira e me matar.”
Após passar pela Delegacia, João foi levado ao Centro de Detenção
Provisória (CDP-I) de Pinheiros, onde foi conduzido ao Regime de
Observação, o chamado RO, uma cela destinada aos presos recém-chegados à
unidade. Ali, João passou seus primeiros quinze dias. Sem direito a
banho de sol. Onde cabiam vinte pessoas, havia setenta. Depois de sair
do RO, a situação continuou difícil. Para dormir era preciso encontrar
um lugar entre os presos que superlotavam a cela. A comida, péssima, era
até difícil de engolir.
Enquanto esperava pelo julgamento, João só tinha notícias do andamento
de seu processo por meio de sua ex-companheira e de agentes da Pastoral
Carcerária. Em setembro de 2012, quatro meses depois de sua prisão, João
foi finalmente julgado e absolvido.
Negro, natural de Maringá (PR), João é técnico em radiologia. Queria
ter cursado uma faculdade, mas suas condições econômicas nunca
permitiram. Dependente químico, João atualmente passa por um atendimento
em um Centro de Atenção Psicossocial e tem planos de voltar a estudar.
Sobre os quatro meses em que foi mantido preso, à espera de um
julgamento que o absolveria, conclui: “Acho um absurdo. Só isso”.
***
A história de João ilustra algumas questões relacionadas à prisão
provisória, um tema ainda obscuro para grande parte da sociedade
brasileira. Os presos provisórios são aqueles mantidos em cárcere sem
que tenha havido um julgamento definitivo. Esses presos enfrentam os
mesmos problemas que se tornaram rotina no sistema prisional de todo o
país. Algumas das denúncias mais constantes são superlotação, más
condições de saúde e higiene, falta de assistência jurídica adequada e
violência do Estado.
Entretanto, o que mais chama a atenção é o número de presos
provisórios, que chega a um terço da população carcerária. Segundo o
Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em dezembro de 2012, dos
513 mil presos brasileiros, 195 mil eram provisórios. No estado de São
Paulo, dos 190 mil presos, 62 mil são provisórios.
Origens
A utilização da prisão provisória no país é antiga. Segundo Alessandra
Teixeira, advogada e pesquisadora da Unesp-Marília, o Código de Processo
Penal editado no início do século XIX já previa a utilização desse
instrumento. Porém, os registros oficiais do período indicam poucos
casos de prisões provisórias. O que enchia as cadeias era outro
fenômeno, a chamada prisão correcional. Apesar de não estar previsto na
lei, esse tipo de detenção era largamente utilizado para delitos como
furtos e desordens públicas. “A prisão correcional, como o próprio nome
diz, tem um sentido correcionalista e se voltava a controlar
determinados segmentos sociais”, explica Alessandra. “A pessoa podia
ficar quanto tempo determinasse o arbítrio da autoridade policial.”
Ao longo do tempo, as prisões correcionais se fundiram com as “prisões
para averiguação”, em que indivíduos eram detidos sem qualquer base
legal por um tempo determinado pela autoridade policial. Esse tipo de
prisão perdurou até meados dos anos 1970 e só foi totalmente abolido na
década seguinte, com a ascensão do movimento de democratização.
As informações sobre as prisões correcionais mostram um perfil de
presos similar aos dos provisórios de hoje, como a baixa gravidade dos
crimes. “Tanto em um caso como no outro, você não tem uma criminalidade
necessariamente perigosa. Dá a entender um controle bastante segmentado e
a partir de crimes que não necessariamente têm mais gravidade social,
mas que são cometidos quase como meios de vida”, ressalta a
pesquisadora.
Uso abusivo
Nos últimos dois anos, proporcionalmente, o número de presos
provisórios teve um crescimento maior do que o total da população
carcerária no Brasil, a quarta maior do mundo. O procedimento-padrão
tornou-se encarcerar primeiro para depois analisar as condições do
acusado e do próprio delito. A consequência disso é o aprisionamento
desnecessário.
A prisão provisória foi o ponto de partida para o projeto Tecer
Justiça: Repensando a Prisão Provisória. Com apoio da Open Society
Foundations e de uma rede de entidades,1 a equipe formada
pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e pela Pastoral
Carcerária prestou por um ano e meio atendimento aos presos provisórios
do CDP-I de Pinheiros e às presas provisórias da Penitenciária Feminina
de Sant’Ana, e realizou o levantamento de informações sobre o perfil das
pessoas atendidas e sobre seus processos, mediante convênio firmado com
a Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Entre junho de 2010 e dezembro de 2011, a equipe do Tecer Justiça
acessou 1.537 pessoas, aplicou 1.161 questionários, realizou 1.050
pedidos jurídicos e levantou dados de 348 processos para intervir pela
obtenção da liberdade provisória. Os dados levantados pela pesquisa
desenharam o perfil de presas e presos provisórios acessados nessas
unidades.
O Tecer Justiça partia da hipótese de que o acesso ao defensor, logo
após a prisão, e às informações processuais levaria ao aumento do número
de concessões de liberdade e à consequente redução da população presa
em caráter provisório. Ao final do projeto, veio a constatação: o
simples aumento do número de defensores bem como o acesso à informação
são somente alguns elementos na complexa cadeia de fatores que conduzem
ao acesso à justiça. Barreiras institucionais e estruturas
socioeconômicas cumprem um papel definitivo no acesso à justiça que
somente a garantia do direito de defesa não é suficiente para superar.
Segundo o advogado Ramon Arnus Koelle, que atuou no projeto, foi
possível constatar um desvirtuamento do uso da prisão provisória hoje.
Ele lembra que esse instrumento jurídico, considerado de exceção,
deveria ser utilizado somente em casos como possibilidade de fuga do
acusado, alteração de provas ou atentado contra testemunhas. O que se
observa, no entanto, é bem diferente. “Hoje ela [a prisão provisória] é
usada como um mecanismo para dar uma resposta imediata a um suposto
delito para o qual você não tem a apuração ainda”, afirma.
Visões da Justiça
Para o defensor público e integrante do Núcleo Especializado de
Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Bruno Shimizu, o
uso abusivo da prisão provisória é a principal causa do atual inchaço
nas cadeias. “Para qualquer crime, qualquer denúncia, qualquer inquérito
policial, em qualquer procedimento, o juiz tem aplicado a prisão
provisória de forma absolutamente indiscriminada”, assegura.
O promotor de Justiça Criminal da Capital, Alfonso Presti, não vê a
situação assim. Ele garante que a detenção só é solicitada em casos de
necessidade, justificada, por exemplo, pela periculosidade do indivíduo
ou do crime cometido. “O prisma que se faz é o da necessidade. Aqui não
se permeia nada de raiva social”, afirma. Presti explica ainda que a
prisão provisória costuma ser solicitada apenas para os casos em que se
vislumbra, ao final do processo, uma condenação. Entretanto, admite que
falhas ocorrem. “Não raras vezes se mantém custodiado alguém que ao
final não receberá uma pena privativa de liberdade ou, ainda que receba,
permanecerá em liberdade cumprindo essa pena. Mas aí é uma deficiência
cognitiva do sistema de percepção penal no Brasil”, justifica.
O presidente do Conselho Executivo da Associação dos Juízes pela
Democracia (AJD), José Henrique Rodrigues Torres, frisa a importância do
princípio da presunção da inocência, que deve orientar todas as ações
judiciais. “O juiz deve observar, primeiro, o princípio de presunção da
inocência, que é constitucional, e, portanto, as prisões provisórias têm
de ser deferidas apenas e tão somente diante de concretas e absolutas
situações de necessidade. O juiz não está ali para prender o sujeito
para proteger a sociedade − ao contrário, ele existe exatamente para
garantir o estado de liberdade”, diz. Para o magistrado, a “banalização”
da prisão provisória reflete a concepção dos operadores a respeito do
sistema de justiça. “Criou-se essa concepção de que o direito penal é
instrumentalizado para proteger a sociedade, garantir a ordem e a
segurança pública, e acaba se tornando infelizmente um sistema de
controle social muito forte.”
Presti concorda que a postura do Judiciário é dura, mas alega que é
resultado de pressões da sociedade. Para o promotor, a Justiça é “uma
caixa de ressonância da sociedade e é assim que tem de ser vista,
compelindo o poder público e a administração executiva a políticas
criminais mais eficazes”.
Punir os pobres
Os dados apresentados no relatório do Tecer Justiça mostram o perfil
dos presos como sendo em sua maioria jovens, negros ou pardos e de baixa
escolaridade. Para o coordenador jurídico da Pastoral Carcerária José
de Jesus Filho, o perfil dos presos permite concluir que “a prisão
provisória não interessa tanto à segurança do processo, e sim ao
controle de determinada camada da população”.
Para o defensor público Bruno Shimizu, há uma relação clara entre a
prisão provisória e seu alvo preferencial. Cerca de 90% dos casos,
segundo o defensor público, foram desencadeados por furtos, roubos e
tráfico de drogas – delitos mais cometidos pela população de baixa
renda. Shimizu lembra que os juízes costumam negar pedidos de liberdade
baseados em argumentos como falta de endereço fixo ou de vínculo
empregatício. “Isso demonstra que a prisão provisória é o modo que o
tribunal e os juízes encontraram para criminalizar a pobreza.”
Segundo o juiz Rodrigues Torres, ao insistir na “gravidade” de tais
crimes, os magistrados corroboram a seletividade do sistema. A principal
causa disso, para ele, é a ideologia de “segurança nacional” ainda
dominante entre os juízes, “que vigorou no tempo da ditadura e hoje foi
convertida em uma ideologia de segurança urbana”.
Em 2011, com o objetivo de reduzir a população carcerária, entrou em
vigor a Lei n. 12.403, que modifica o Código de Processo Penal e cria
alternativas à prisão provisória, como a prisão domiciliar, o
monitoramento eletrônico e o pagamento de fiança. A nova lei, que
poderia reverter o quadro, não teve esse efeito. Na visão de Shimizu, em
vez de aplicar todas as medidas, os juízes costumam escolher
majoritariamente a fiança como possibilidade de o acusado responder ao
processo em liberdade, o que tem aprofundado ainda mais a desigualdade
dentro do sistema.
Sem defesa
Uma possibilidade apontada para reverter o uso excessivo da prisão
provisória é aumentar a rapidez do atendimento jurídico ao acusado. A
maioria dos provisórios depende dos serviços da Defensoria Pública do
Estado, que presta assessoria jurídica gratuita a quem não pode
contratar um advogado. O trabalho dos defensores, porém, enfrenta uma
série de dificuldades. Uma delas é a quantidade limitada de quadros para
a gigantesca massa de processos. O estado de São Paulo possui ao todo
610 profissionais, dos quais 187 defensores atuam na área criminal. Para
ter uma ideia, quando trabalhava em uma vara criminal, Shimizu possuía
2,5 mil processos sob sua responsabilidade.
Não há, por exemplo, defensores públicos para atuar no momento das
prisões. Assim, o primeiro contato entre defensor e acusado costuma
ocorrer cerca de três meses depois do encarceramento, minutos antes da
primeira audiência de instrução perante o juiz.
O problema não atinge só a Defensoria de São Paulo. Segundo o Mapa da
Defensoria Pública, existem apenas 5.054 defensores públicos estaduais.
Das 2.680 comarcas brasileiras, apenas 754 contam com pelo menos um
defensor.
Para Koelle, a presença de defensores públicos no momento da prisão
seria essencial não apenas para garantir aos presos o acesso à
informação, mas também para coibir a violência cometida por agentes do
Estado contra os acusados. “Se ele [policial] sabe que só dali a um mês
[o preso] vai se encontrar com um defensor público ou com alguma
autoridade do Judiciário, ele tem carta branca para espancar aquela
pessoa, porque em um mês os hematomas desaparecem.” Tratados
internacionais também apontam mecanismos para evitar tais situações de
violência, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu
artigo 7º prevê que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser
conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade
autorizada por lei a exercer funções judiciais”.
***
Pobre, negro, travesti, cadeirante, deficiente auditivo e portador do
vírus HIV, aos 40 anos Rodrigo perdeu o movimento das pernas e a audição
em razão de uma doença degenerativa. Desde então, vive em uma cadeira
de rodas e comunica-se apenas por meio da escrita.
Apesar da saúde debilitada, Rodrigo já foi diversas vezes preso e solto
por tráfico de pequeno porte. Na primeira, ele foi flagrado por
policiais militares em outubro de 2010, no bairro da Vila Buarque, em
São Paulo, com 3,7 gramas de cocaína escondidos dentro da atadura de sua
perna. Apesar de à época ser réu primário, a Justiça lhe negou o
direito de aguardar o curso do processo em liberdade. Encarcerado em uma
cela sem luminosidade ou ventilação na enfermaria do CDP-I de
Pinheiros, para que pudesse tomar “banho de sol” Rodrigo necessitava de
um funcionário que, com boa vontade, empurrasse sua cadeira.
A equipe do projeto Tecer Justiça entrou com recurso de habeas corpusno
Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), procurando mostrar que a
prisão de Rodrigo oferecia alto risco à sua saúde, revelava-se uma
maneira cruel de punição e violava a própria dignidade da pessoa humana.
A petição destacava a posição de irracionalidade da política penal de
aprisionamento sistemático de pessoas acusadas de pequeno tráfico e
muitas vezes primárias.
Rodrigo, já condenado em primeira instância à pena de um ano e onze
meses de reclusão em regime inicial fechado e ao pagamento de multa por
tráfico de entorpecentes, teve reconhecido pelo TJ-SP o direito de
aguardar o julgamento do recurso de apelação em liberdade. Meses depois
da soltura, foi preso novamente, solto por um pedido da Defensoria
Pública do Estado e em seguida preso mais uma vez, sempre por pequeno
porte de drogas.
***
Considerado um crime hediondo e encarado por governos, operadores do
direito e setores mais conservadores como um “vilão” da sociedade, o
tráfico de drogas é hoje um dos crimes que mais contribuem para o
aumento da população prisional. Segundo dados do Depen, 23% dos homens
presos tiveram a prisão motivada por crime relacionado a drogas.
Em 2006, entrou em vigor a Lei n. 11.343, chamada Lei de Drogas, que
aumentou as sanções para o tráfico. Entre as mudanças está a ampliação
da pena mínima prevista para o crime, de três para cinco anos, e da pena
pecuniária, cuja determinação passou do intervalo entre cinquenta e 360
dias-multa para o de quinhentos a 1.500 dias-multa.
O promotor Alfonso Presti costuma se referir à droga como “a mãe de
todos os crimes”, dando a entender que ela seria responsável por uma
série de delitos cometidos atualmente. Para ele, aumentar o período de
encarceramento do traficante, como propõe a lei, portanto, poderia
ajudar a quebrar os “elos” dessa cadeia.
O juiz Torres Rodrigues, porém, questiona a eficácia da política de
combate às drogas. “Gastamos milhões e milhões, prendemos milhares e
milhares, e isso resultou em nada”, lamenta. Um dos principais erros do
Judiciário sobre o tema das drogas, para ele, é manter a prisão
provisória de todos os acusados por tráfico. De acordo com o juiz, a
suposta gravidade do delito não legitima a prisão. “Não se justifica
manter alguém provisoriamente preso simplesmente porque está havendo uma
investigação sobre tráfico.”
Uma das principais conclusões da pesquisa “Prisão Provisória e Lei de
Drogas”, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
(NEV-USP), baseada na análise de processos e em entrevistas com juízes,
promotores, defensores e policiais, foi que a prisão provisória é
utilizada como método punitivo. “Mais do que um dispositivo legal, [a
prisão provisória] virou uma forma de exceção de punir suspeitos”,
explica a pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus.
O projeto Tecer Justiça deparou com uma posição maciça de juízes e
promotores contra a concessão de liberdade em casos relacionados a
drogas, mesmo quando se trata de porte de pequena quantidade. Em geral, a
pessoa acusada por crimes de drogas aguarda presa sua sentença que,
quase sempre, resulta em pena de prisão em regime inicial fechado.
Usuários ou pequenos traficantes?
A Lei de Drogas passou a determinar também que o usuário de drogas não
fosse mais punido com a privação de liberdade. A expectativa era de que
isso reduzisse os índices de encarceramento, o que não ocorreu. Em 2006,
havia no país cerca de 41 mil pessoas presas por tráfico. Em 2012, o
númerotriplicou para 131 mil. Em São Paulo, no mesmo período, o número
de homens presos passou de 17 mil para 54 mil. Já a população carcerária
feminina presa por drogas aumentou de 4.758 em 2006 para 13.964 em
2012. Em São Paulo, passou de 1.092 para 4.344. O crescimento do
encarceramento feminino por drogas supera a média geral.
Apesar de a lei antidrogas não prever a prisão do usuário, a
diferenciação não depende da quantidade encontrada com o acusado no
flagrante, mas sim da presunção dos agentes de segurança pública
(policiais, delegados, promotores e juízes). O defensor público Bruno
Shimizu garante que, na prática, o fator decisivo é a condição
socioeconômica. “Se a pessoa tem dinheiro para comprar, é usuária; se
não tem, é traficante. É um argumento totalmente preconceituoso, que
passa pela cor da pele, pelo lugar onde a pessoa mora e como está
vestida”, elucida. “Todo o nosso sistema criminal é seletivo e acarreta
uma exclusão social. É um formato de controle social que acaba punindo e
criminalizando a pobreza”, completa o juiz Rodrigues Torres.
***
Eram três pequenos invólucros de crack que resultaram em onze meses e
oito dias de espera em prisão provisória. Desde aquela madrugada de
abril de 2009, em que foi presa em flagrante, na região central de São
Paulo, até o momento de sua sentença, a jovem, negra, desempregada e
solteira, declarou ser usuária de crack. Mesmo assim, o Ministério
Público estadual pediu sua condenação sob o enquadramento de tráfico de
drogas.
A demora na realização do exame químico-toxicológico e da audiência
transformaram a vida de Maíra na Penitenciária Feminina de Sant’Ana em
uma espera angustiante. Por fim, os próprios policiais que fizeram a
prisão depuseram afirmando que a droga servia apenas para o consumo da
ré e, assim, com base nos exames e nos depoimentos, a Justiça atendeu à
alegação da defesa aplicando uma pena de três meses de prestação de
serviços à comunidade por uso de drogas.
***
Situação semelhante viveu Solange. Presa portando uma pequena
quantidade de crack, ela foi solta em dezembro de 2010, depois de
dezoito meses encarcerada sem nenhuma sentença. Sua primeira audiência
ocorreu somente oito meses após a prisão. Apesar de alegar ser
dependente química, apenas na segunda audiência, quando já havia
cumprido onze meses de prisão provisória, a juíza resolveu pedir o exame
toxicológico.
No entanto, a perícia só foi marcada para seis meses depois. E, no dia
agendado, foi desmarcada. Um mês mais tarde, a juíza determinou que
Solange aguardasse o julgamento em liberdade. Em maio de 2011, depois de
todas as reviravoltas, ela foi condenada à pena de quatro anos, seis
meses e 13 dias de reclusão e ao pagamento de multa pelo crime de
tráfico de drogas.
***
O estado de São Paulo oferece 864 vagas para presas provisórias, no
entanto, 1.689 mulheres encontram-se nessa situação. Os crimes ligados
ao comércio de drogas ilícitas são hoje a principal porta de entrada
para as mulheres no sistema penitenciário. Na última década, a prisão de
mulheres por envolvimento com o tráfico mais do que triplicou. De 2000 a
2010, a população carcerária feminina no Brasil aumentou em 261%,
crescendo de cerca de 10 mil para quase 36 mil.
Em outros estados do Brasil, especialmente os de fronteira, a proporção
de mulheres presas por crimes relacionados a drogas é ainda maior. No
Mato Grosso do Sul, em junho de 2012, 78% das mulheres (em comparação
com 34,7% dos homens) estavam encarceradas por envolvimento com crimes
da Lei deDrogas. Em Roraima, esse índice chega a impressionantes 90%.
O tráfico de drogas em outros estados possui características muito
distintas daquelas encontradas em São Paulo. No entanto, a mulher
recorrentemente é utilizada para trabalhos de alto risco (como carregar
drogas entre estados ou internacionalmente) e de pouca graduação na
estrutura hierárquica das organizações criminosas. Essa é uma
característica das mulheres aprisionadas por crimes relacionados a
drogas, tanto brasileiras como estrangeiras.
Sônia Drigo, advogada criminalista e integrante do Grupo de Estudos e
Trabalho Mulheres Encarceradas, explica que em geral as mulheres ocupam
postos baixos no comércio de drogas e são condenadas por “tráfico
privilegiado”, situação em que, se a pessoa é ré primária, não se dedica
à atividade criminosa nem integra organização criminosa, ou seja, não
faz do tráfico um meio de vida, a pena poderia ser reduzida e a prisão
substituída por pena alternativa. “Você não conhece uma líder de
quadrilha. Jamais conheci uma mulher que fosse como um Fernandinho
Beira-Mar ou como algum homem que se torna conhecido no Brasil todo”,
comenta.
Chefes
Segundo dados levantados pelo projeto Tecer Justiça junto à
Penitenciária de Sant’Ana, 61,1% das mulheres que participaram da
pesquisa afirmaram estar em alguma atividade profissional no momento
imediatamente anterior à prisão. Além disso, o trabalho está ligado ao
sustento da família também na maior parte dos casos. No entanto, apenas
3,8% das atendidas possuíam algum tipo de trabalho formal antes da
prisão, o que mostra a precariedade dos meios disponíveis para garantir
esse sustento.
A advogada criminalista afirma que geralmente o envolvimento das
mulheres ocorre “na busca de uma satisfação financeira imediata para
cuidar dos filhos, do núcleo familiar. Se você fizer uma pesquisa, vai
ver que a maioria dos filhos das presas não tem pai declarado, e elas
são as chefes de família”.
Em comparação entre as duas unidades prisionais visitadas pelo projeto,
é possível constatar uma maior dependência de filhos de pessoas presas
entre a população carcerária feminina do que a masculina. Das mulheres
atendidas pelo projeto Tecer Justiça, 81,2% têm filhos. Essas mães
moravam com os filhos em 56,2% dos casos – a coabitação é duas vezes
maior em relação aos homens que são pais. Entre os homens, 53% relataram
ter filhos, mas 76,3% não moram com eles. Ainda sobre as mães presas, a
pesquisa anotou que 64,2% das mulheres não têm companheiro (são
solteiras, divorciadas/separadas ou viúvas) e 42% têm três filhos ou
mais.
Patrícia Benvenuti
Jornalista
Cristiano Navarro Jornalista, é diretor do documentário "Á sombra de um delírio verde". Ilustração: Andre Cypriano 1 Sou da Paz, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (DDD), Conectas Direitos Humanos, Núceo de Estudos da Violência, Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Justiça Global. * Esta reportagem foi produzida com o apoio do Instituto Terra Trabalho e Cidadania dentro do projeto Tecer Justiça. |
Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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domingo, 30 de junho de 2013
Provisoriamente condenados...até que se prove o contrário
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