por Jorge Luiz Souto Maior
O Movimento Passe Livre está em luta, mediante passeatas e
mobilizações, contra o recente aumento das tarifas do transporte
público, preconizando, na verdade, a gratuidade do transporte. As
recentes mobilizações em São Paulo atraíram manifestações contrárias aos
efeitos que as mobilizações geraram sobre o trânsito, saindo-se em
defesa do “direito de ir e vir” das pessoas que se sentiram
“prejudicadas” pelas paralisações. Pessoas que, como se diz, queriam
chegar em suas casas.
É interessante perceber, no entanto, que o direito de ir e vir dessas
pessoas, considerando a realidade do trânsito de São Paulo, já não tem
sido, de fato, respeitado há muito tempo, sobretudo nos denominados
“horários de pico”, cuja definição está cada vez mais ampliada. São
Paulo é a cidade que “não pode parar”, mas que carrega a contradição de
não conseguir andar.
Com as mobilizações, o exercício desse direito, obviamente, fica
ainda mais obstruído, mas há de se perceber que, ao menos do ponto de
vista do percurso pelas vias automotivas, o tal direito de ir e vir já é
bastante limitado e o é exatamente pela ausência de uma política em
torno da essencialidade do transporte público.
As pessoas em seus automóveis (quase sempre uma em cada carro – e
dentre elas, eu) atolam o cenário urbano e inviabilizam, mutuamente, o
seu direito de ir e vir e quando se posicionam contra as mobilizações
(não eu, dentre elas) daqueles que alertam os entes públicos sobre a
relevância do tema, acabam, indiretamente, alimentando a lógica que
suprime o próprio direito defendido.
Na perspectiva das preocupações individualistas, não há reação contra
o caos do trânsito na cidade de São Paulo, que serve, inclusive, como
materialização de crimes de toda ordem, advindos de assaltos ou de
stress.
Os prisioneiros do trânsito são pessoas acomodadas e que buscam
individualmente, quase sempre sem sucesso, a sua solução, um caminho
alternativo, que alimentam a lógica de que o outro carro é seu
concorrente, algo que pode inviabilizar o seu projeto, e que se veem,
inclusive, dispostas a entrar em confronto com o anônimo que esteja na
condução do outro veículo (e a loucura do mundo individualista e egoísta
se concretiza).
Esse “projeto” individual, por evidente, é limitado e ineficaz.
O Movimento Passe Livre tem o mérito, portanto, de nos forçar a
colocar a questão do transporte público em pauta, para que todos tenham,
de fato, o direito de ir e vir.
Nesta linha da visualização social, é importante perceber que, mesmo
considerando todas as dificuldades, facilmente verificáveis nas vias da
cidade, a saída do transporte privado (cada um em seu carro, buscando
caminhos alternativos), ainda é melhor – muito melhor – que o transporte
público, o que nos força a reconhecer que o direito de ir e vir
daqueles que, em virtude do desenvolvimento de um processo excludente
advindo da desequilibrada divisão do trabalho e da especulação
imobiliária, foram deslocados para periferias distantes e que dependem
de transporte público tem sido ainda mais agredido: é fila no ponto; é
ônibus que não para; é fila no trem; é trem que não chega; são ônibus e
trens lotados, nos quais, durante as longas viagens, se intensifica a
supressão da dignidade humana.
Já passou da hora, portanto, de sair de dentro do conforto do carro
(mesmo com o sufoco do trânsito), de deixar de pensar no aconchego do
lar e de começar a olhar para aqueles que dependem de transporte público
neste país, percebendo, assim, que pouco importa querer exercer o
direito de ir e vir se não for possível garanti-lo a todos.
É essencial compreender que o transporte público gratuito é um
direito da cidadania, até como forma de tornar efetivo o direito de ir e
vir, aclamado por aqueles que se sentem agredidos pelas mobilizações do
Passe Livre.
O fato concreto é que trabalhadores (incluindo domésticas,
terceirizados, aposentados, pensionistas e precarizados em geral),
estudantes, desempregados e segmentos excluídos da sociedade não têm
como exercer o seu direito de ir e vir se tiverem que pagar pelo
transporte. Ademais, como dito, o investimento efetivo em transporte
público é a única saída para a reconstrução do espaço urbano e da
própria vida social.
Interessante perceber que a gratuidade do transporte público atende,
inclusive, uma reivindicação recorrente do empresariado brasileiro em
torno da desoneração da folha de pagamento, vez que muitos empregadores
acabam sendo obrigados a suportar esse custo com relação a seus
empregados.
Alguns dizem que a gratuidade do transporte público é uma utopia, que
não vai ocorrer. Esse argumento seria relevante se vivenciássemos uma
sociedade próxima do que se poderia considerar ideal. Mas, como é fácil
perceber, estamos muito longe disso e considerando que tanto o ser
humano quanto à sociedade são projetos inacabados e em constante
construção, sendo que a evolução da humanidade é até mesmo inevitável,
acreditar no advento do passe livre, que é um passo importante e ao
mesmo tempo não só possível como necessário, acaba sendo um alvo
bastante singelo diante das transformações que devem vir – e virão –
para a consagração de uma sociedade efetivamente justa, igualitária e
humana.
Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP
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