Desde
meados do governo Lula, as conquistas econômicas e seus reflexos na
sociedade geraram um clima de otimismo que não foi quebrado nem mesmo
pelo baixo crescimento dos últimos anos. Emprego e renda em alta ajudam a
explicar a popularidade da gestão petista, mas, afinal, as
transformações realizadas foram profundas?
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por Luís Brasilino |
As mudanças na economia brasileira a partir do início do governo Lula,
como o crescimento do PIB e o aumento da participação dos serviços,
representaram o que, na prática, para a população? Para o sociólogo Ruy
Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP), a situação é
contraditória: apesar dos efeitos positivos da elevação do emprego e da
formalização, “a reprodução das bases do atual modelo de desenvolvimento
impõe enormes obstáculos para a satisfação das inúmeras necessidades da
classe trabalhadora brasileira”. Autor do livro A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista(Boitempo,
2012), ele discute na entrevista a seguir as transformações do mercado
de trabalho brasileiro nos últimos anos, a participação dos sindicatos e
a base política de sustentação do governo federal.
DIPLOMATIQUE– O que é o precariado brasileiro?
RUY BRAGA– O precariado é o proletariado precarizado,
ou seja, um grupo formado por trabalhadores que, pelo fato de não
possuírem qualificações especiais, entram e saem muito rapidamente do
mercado de trabalho. Além disso, devemos acrescentar os trabalhadores
jovens à procura do primeiro emprego, indivíduos que estão na
informalidade e desejam alcançar o emprego formal, e trabalhadores
submetidos ao manejo predatório do trabalho. O precariado é composto por
aquele setor da classe trabalhadora pressionado tanto pela
intensificação da exploração econômica quanto pela ameaça da exclusão
social. Eu retirei do conceito de proletariado precarizado os setores
qualificados da classe trabalhadora, os grupos pauperizados e o chamado
lumpemproletariado por entender que aquilo que caracteriza a reprodução
contraditória das relações de produção capitalistas no Brasil é menos a
existência de uma massa de indivíduos rejeitados pelo mercado de
trabalho por invalidez, velhice ou que praticam ações ilícitas para
sobreviver, e mais a ampliação dessa massa formada por trabalhadores
jovens, desqualificados ou semiqualificados, sub-remunerados e inseridos
em condições degradantes de trabalho.
DIPLOMATIQUE – Na prática, quais são as características desse trabalho precário?
BRAGA– A ideia de trabalho precário faz referência
basicamente a duas dimensões. Uma é a contratual, ou seja, se há
ausência de contrato, se o trabalho é temporário... Não é isso que eu
enfatizo. Destaco a remuneração e as condições de trabalho. Analisando
os anos 2000 no Brasil, apesar do aumento da formalização, percebe-se
uma multiplicação das ocupações que pagam até 1,5 salário mínimo, em
torno de R$ 1 mil. Pelo lado das condições de trabalho, tivemos um
aumento do número de acidentes de trabalho, que passou de um patamar de
400 mil em 2002 para pouco mais de 700 mil atualmente. Ao mesmo tempo,
houve um aumento da flexibilização do trabalho, com destaque para a
flexibilidade de horários e de funções. Com o fortalecimento da
estratégia empresarial de utilizar cada dia mais a terceirização da
força do trabalho, aumentou a taxa de rotatividade dos trabalhadores. Ao
longo de toda a década de 2000, intensificou-se aquele entra e sai de
trabalhadores no mercado de trabalho tão característico de regimes
fabris despóticos. Assim, associado à formalização do emprego, algo
evidentemente positivo em termos de proteção trabalhista, percebemos nos
anos 2000 um flagrante aumento da precarização das condições de
trabalho no país.
DIPLOMATIQUE– Qual é a porcentagem desse setor na classe trabalhadora brasileira?
BRAGA– Seguramente estamos falando da maioria da
população trabalhadora. Os dados oficiais do Censo nos dão uma ideia das
dimensões desse grupo: em média, durante os dois governos Lula, foram
criados anualmente 2,1 milhões de empregos formais. No entanto, 94%
desse total, isto é, 2 milhões de postos pagavam até 1,5 salário mínimo.
Exatamente a faixa salarial que acantona o precariado.
DIPLOMATIQUE– O trabalho doméstico entra nesse grupo?
BRAGA– Sem dúvida. O trabalho doméstico é uma das
principais indicações da natureza resiliente da informalidade laboral
brasileira. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, entre
1999 e 2009 o número desses trabalhadores saltou de 5,5 milhões para
7,2 milhões. Mesmo que tenha havido um pequeno aumento da formalização,
na cidade de São Paulo, em 2009, apenas 38% das empregadas tinham
carteira de trabalho. Em todo o país, a formalização mal alcança os 30%.
Ao mesmo tempo, os dados apontam para um envelhecimento dessa força de
trabalho. Isso indica que os filhos e filhas dos trabalhadores
domésticos estão se deslocando para outros setores, principalmente o de
serviços. A fatia mais escolarizada das filhas das trabalhadoras
domésticas tem buscado no telemarketing uma jornada de trabalho menor e
mais previsível, capaz de garantir a elas o acesso à faculdade noturna. O
grande problema dessa história é que as condições estruturais do
mercado de trabalho no Brasil impedem que essa trabalhadora, filha de
empregada doméstica, ascenda salarialmente, porque praticamente todos os
postos que são criados pagam mais ou menos o mesmo que o telemarketing.
DIPLOMATIQUE– Mas é um fator positivo que essa nova geração esteja deixando o trabalho doméstico, não?
BRAGA– É claro. Nosso problema é que, apesar dos
avanços decorrentes da formalização do emprego – que são muito
positivos, tanto em termos de proteção social quanto das possibilidades
abertas para a mobilização coletiva –, a reprodução das bases do atual
modelo de desenvolvimento impõe enormes obstáculos para a satisfação das
inúmeras necessidades da classe trabalhadora brasileira.
DIPLOMATIQUE– E esses avanços são fruto de ações deliberadas do governo ou do desenvolvimento próprio do capitalismo?
BRAGA– Em minha opinião,trata-se de uma combinação
desses dois fatores. Há políticas públicas, principalmente federais –
como os aumentos do salário mínimo acima da inflação, o programa Bolsa
Família, o crédito consignado etc. –, que explicam parcialmente esses
avanços. Além disso, destacaria duas variáveis. A primeira é que a
estrutura social do país deu uma guinada na direção dos serviços. Na
última década, o Brasil consolidou um modelo de desenvolvimento
pós-fordista e financeirizado no qual o setor de serviços se destaca. E o
assalariamento nesse setor é muito mais barato do que na indústria, por
exemplo. É um modelo de desenvolvimento que acolhe milhões de pessoas,
sobretudo mulheres, jovens e trabalhadores não brancos. Naturalmente,
isso é positivo. Além disso, é preciso lembrar que a dinâmica da
financeirização da economia obriga o Estado a arrecadar mais a fim de
continuar remunerando os credores da dívida pública. E é mais simples
tributar a economia formal. Portanto, diria que há uma convergência de
diferentes fatores que reforçaram a absorção pelo mercado formal desses
milhões de trabalhadores.
DIPLOMATIQUE– Como você analisa a participação dos
sindicatos nesse processo, especialmente considerando os seguidos
aumentos reais de salário que vêm sendo obtidos mesmo depois da crise em
2008?
BRAGA– Em um país com o histórico de descontrole
inflacionário como é o caso do Brasil, reajustes salariais são
frequentes nas pautas sindicais. Não se trata de uma novidade. O que é
importante destacar em relação ao atual momento do sindicalismo no país é
exatamente sua fusão com o aparelho de Estado. Nos últimos anos, houve
uma integração da elite da burocracia sindical aos postos de
assessoramento do governo e aos fundos de pensão, com um claro efeito de
alinhamento das pautas das principais centrais sindicais brasileiras
com a agenda governista. O próprio movimento sindical se financeirizou. O
que isso significa? Que temos um sindicalismo muito mais alinhado ao
Estado, que recebe mais recursos financeiros e que se transformou em um
dos principais pilares do investimento capitalista no país. Por quê?
Porque os fundos controlados por sindicalistas se encontram presentes
nos principais negócios brasileiros, ou seja, a poupança do trabalhador
está financiando a fusão das empresas, os investimentos em
infraestrutura, as obras da Copa, a prospecção de petróleo... Qual é o
efeito disso sobre o sindicalismo? A fusão da pauta sindical com um
projeto de governo. Porém, isso cria tensões na base, uma vez que o
regime de acumulação continua se reproduzindo de maneira despótica,
endurecendo as condições de trabalho. Entrevistei uma trabalhadora de
telemarketing, com oito anos na função, o que é bastante tempo em um
setor como esse. Ela contava que as trabalhadoras entram no
telemarketing, pegam um cartão de crédito, dão entrada em uma televisão
de tela plana, compram roupas de marca... enfim, se endividam. E têm de
se matar no telemarketing vendendo cartão de crédito para pagar as
dívidas que elas próprias fizeram no cartão. É interessante perceber
como esse jogo vai se desenrolando. Essa trabalhadora percebe os limites
desse modelo de desenvolvimento porque ela experimenta os dois lados: o
do consumo e o do endividamento, que a obrigam a bater metas e ficar
dependente de um regime de trabalho intenso, controlado e despótico. Em
minha opinião, a consciência desses limites está se tornando mais clara.
Prova disso é que, depois de 2008, tivemos um aumento ano após ano no
número de greves no país, o que coloca o atual momento no mesmo patamar
da atividade grevista do final dos anos 1990.
DIPLOMATIQUE– São essas as contradições que formam a subjetividade do precariado?
BRAGA– Por meio de um estudo de caso da indústria
paulistana do call center, identifiquei a vivificação de algo que é
muito usual no capitalismo semiperiférico: uma estrutura social que, em
vez produzir o consentimento à exploração econômica apoiado em
concessões materiais aos trabalhadores, promove a inquietação social.
Por quê? Porque, se por um lado promoveu um relativo progresso material,
de outro, o capitalismo na semiperiferia se especializou em reproduzir
as bases materiais do trabalho barato. E este tende a ser precarizado.
Ou seja, os trabalhadores experimentam um progresso real quando
transitam, por exemplo, do campo para a cidade ou do pauperismo para o
mercado formal, porém, imediatamente essa conquista material mostra seus
limites, e esses trabalhadores, que acabaram de viver uma experiência
progressista, percebem que estão inseridos em condições de trabalho
degradantes ou se veem endividados. Eles desejam o progresso, mas as
promessas do modelo de desenvolvimento raramente são cumpridas.
DIPLOMATIQUE– Pela posição do Brasil na divisão internacional do trabalho...
BRAGA– Nos últimos dez anos, a estrutura social
brasileira se especializou em lucrar no setor financeiro, na indústria
da construção civil, na mineração, na indústria do petróleo e no
agronegócio. São todos setores onde há uma concentração de trabalho não
qualificado ou semiqualificado, o que acaba promovendo uma multiplicação
de postos de trabalho que pagam mal.
DIPLOMATIQUE– E o setor de serviços?
BRAGA– O problema é identificar quais são os motores
do atual modelo de acumulação. O setor de serviços sem dúvida é um
deles. No entanto, nos últimos dez anos, a acumulação de capital no
Brasil ocorreu, sobretudo, nos bancos, na mineração, no petróleo, no
agronegócio e na construção civil. São setores rentáveis, até porque têm
condições de ampliar extensivamente a base de sua exploração por meio
da incorporação de novas áreas. Mas quem efetivamente absorveu os
trabalhadores foi o setor de serviços. No entanto, isso não quer dizer
que ele seja o setor mais lucrativo.
DIPLOMATIQUE– Quais são as consequências políticas desse processo? Como explicar a atual hegemonia lulista?
BRAGA– Eu busquei fazer uma síntese das teses de André
Singer e de Chico de Oliveira. O Chico afirma que essa hegemonia é
fundamentalmente sustentada na absorção da elite sindical pelos fundos
de pensão e pelo governo. E o André diz que o lulismo se apoia no
consentimento de amplos setores empobrecidos da população, isto é, o
subproletariado, às políticas públicas. Por meio do conceito de
hegemonia em Gramsci, fui capaz de observar a combinação do
consentimento passivo das bases, seduzidas pelas políticas públicas, com
o consentimento ativo das direções do movimento sindical ao projeto de
governo. No livro, argumentei que a atual hegemonia lulista resulta da
articulação desses tipos distintos de consentimento. Mas, veja bem, em
relação às bases, o adjetivo passivo qualifica o substantivo
consentimento, e não a ação política dos trabalhadores. Em minha
opinião, o precariado continua politicamente ativo, faz suas greves,
porém, como não tem um projeto autônomo de poder, ele aderiu ao projeto
construído pela burocracia lulista. Já o consentimento ativo das
direções é muito claro. Há de fato uma fusão do movimento social ao
aparelho de Estado e aos fundos de pensão. Isso se dá em diferentes
esferas, desde o movimento sindical até o movimento sem terra e agora
mais recentemente com o movimento sem teto, que começa a administrar
investimentos em habitação popular por meio do programa “Minha Casa,
Minha Vida, Entidades”. Essa hegemonia é mais estável do que foi a
hegemonia populista. A fusão dos setores populares do movimento social
com o aparelho de Estado e os fundos de pensão é mais aguda do que a
adesão do movimento sindical aos governos Vargas, João Goulart etc.
Contudo, isso não quer dizer que não haja conflito. Percebo sinais de
certa fadiga do atual modelo de regulação nas paralisações que
ocorreram, por exemplo, nas obras do PAC (Belo Monte, Jirau, Santo
Antônio, Suape, Coperj etc.), nas greves bancárias dos últimos anos, na
greve dos Correios, dos professores do ensino fundamental, nas obras da
Copa e também em outras mobilizações mais localizadas, paroquiais, como a
greve da construção civil em Belém e em Fortaleza, além das
paralisações na indústria automobilística.
DIPLOMATIQUE– Os pacotes anunciados pelo governo neste
ano para retomar o crescimento econômico podem amenizar essa fadiga? A
base dela é econômica?
BRAGA– Uma parte importante dessa questão está
relacionada ao crescimento econômico. Veja o exemplo da greve nacional
bancária, liderada por entidades lulistas, basicamente, contra o Banco
do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Ou seja, uma greve contra o
governo. Nos Correios temos a mesma dinâmica. Obras do PAC, idem. Isso
aponta para onde? Muitos sindicalistas creditam isso a uma relativa
inexperiência de Dilma em negociar. Acho isso um tremendo equívoco. Não
que ela seja inexperiente em negociações com sindicalistas, o problema é
que o governo Dilma olha para os dados da economia, prevê crescer 2,7%,
1%, e isso reduz sua capacidade de oferecer concessões. Lula previa
crescer 7,5%, e podia dar reajustes. Não é o caso agora, com uma média
de 1,5% de crescimento. É menos da metade da média do governo Lula e,
desse modo, ela tem menos da metade da margem de manobra em uma mesa de
negociação. Isso tem impactos políticos porque os trabalhadores ficarão
mais inquietos. E então aumenta a fadiga do modo de regulação. Porém, se
a economia crescer conforme a previsão do governo e o mercado de
trabalho continuar aquecido, é possível antever uma eleição tranquila
para a Dilma em 2014.
Tudo depende do comportamento da economia este
ano.
Luís Brasilino
Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil. |
Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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segunda-feira, 3 de junho de 2013
A economia e seus impactos na população
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