Para John Locke, pai do liberalismo,
Estado não deve promover solidariedade, mas garantir segurança e
propriedade. Predomínio desta concepção ameaça, hoje, a própria
democracia
Por Rafael Azzi
Na história da humanidade, muitos filósofos se interrogaram sobre a
relação entre a natureza humana e a constituição da sociedade.
Aristóteles, por exemplo, acreditava que o homem é um animal político.
Para ele, a organização dos indivíduos em núcleos sociais mostra-se um
processo tão natural quanto o é para as formigas na natureza. Assim, por
extensão, o homem apenas se realiza plenamente por meio da atividade
política e da participação ativa nas decisões do Estado.
De acordo com o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau,
a natureza humana é das mais adaptáveis. O homem possui uma espécie de
natureza indeterminada, moldável e maleável. Entretanto, o filósofo
reconhece que existe um sentimento básico na natureza humana,
compartilhado por outros primatas superiores: a compaixão. Para ele, o
homem não é um animal racional, e sim um animal sensível, empático. A
recente descoberta científica dos neurônios-espelho parece ter, de
alguma forma, corroborado essa ideia.
O problema para Rousseau é que, devido à maleabilidade de sua
essência, rapidamente o ser humano se adapta às condições da sociedade. O
teórico francês argumenta que o egoísmo e o individualismo são
construções modernas estimuladas pela constituição da sociedade
burguesa; que, por sua vez, baseia-se na propriedade privada e nas ações
justificadas pela percepção do lucro individual. Assim, esta não seria a
verdadeira natureza humana, mas uma distorção provocada pela
exacerbação de determinados valores sociais.
A partir da perspectiva rousseauniana, a principal função do
Estado seria a de, através de políticas públicas com ênfase em educação,
por exemplo, favorecer a emancipação política do cidadão para que ele
possa resgatar sua empatia natural. Nesse sentido, pode-se afirmar que
as noções de cidadão e de cidadania, como se conhece na atualidade, são
decorrentes dessa leitura. Conceitualmente, cidadão configura alguém que
atua na esfera pública ou política, com empatia para com o próximo e
para com a coletividade.
De alguma forma, as ideias de Rousseau auxiliaram a construção da nossa sociedade moderna. Entretanto, o pensamento de John Locke
sobre a natureza humana e o papel do Estado é o que mais encontra
repercussão no mundo contemporâneo. Sua influência sobre a Constituição
dos EUA é tão expressiva que, por vezes, é considerado como um “pai
fundador” honorário. Suas teorias formam as bases do pensamento liberal e
auxiliaram na construção da ideologia do capitalismo.
Para Locke, existem três direitos considerados naturais: a vida, a
liberdade e a propriedade. Em um estado de natureza, cada indivíduo
busca preservar tais direitos e, quando se sente prejudicado, atua como
juiz, júri e executor dessas leis naturais. Rapidamente, essa situação
desencadeia uma guerra coletiva, de todos contra todos. Na perspectiva
lockeana, o Estado surge então para evitar o caos e a desorganização.
Assim, o indivíduo concorda em abrir mão de uma parcela de sua
liberdade para que o Estado possa fornecer segurança e impedir uma
situação conflituosa. Nesse sentido, o Estado não é considerado como
algo natural ou um instrumento para desenvolvimento da empatia humana.
Ao contrário, ele é considerado de forma negativa, que limita a
liberdade humana, um mal necessário. Umas das consequências dessa visão é
a desvalorização da atividade política. A relação entre o Estado e o
indivíduo é pensada somente como uma relação de troca, uma interação
comercial. O cidadão cede parte de sua liberdade; e, em troca, o Estado
defende seus direitos, sua propriedade privada e seus negócios.
Em sua reflexão sobre a propriedade privada, Locke afirma que ela tem
sua origem no trabalho sobre o bem comum. Através do trabalho, o homem
torna-se dono por direito “natural” daquilo que antes era comum, de
todos. Esse tipo de argumentação forneceu, por exemplo, a justificava
para a tomada das terras dos povos nativos pelos colonizadores
americanos. As comunidades de povos nativos possuíam outro tipo de
relação com a terra considerada de uso comum, desconhecendo o conceito
de propriedade privada. Na interpretação dos colonos, tal fato permitia a
invasão e a tomada das terras indígenas. Talvez esse ponto de vista
também explique por que aqui, no Brasil, líderes extrativistas e índios
com uma concepção coletiva e conservacionista do uso da terra são mortos
a todo o momento por grileiros e fazendeiros.
Além disso, nesse sentido, a apropriação e a exploração da natureza
tornam-se ações não apenas possíveis, mas constituintes do objetivo
“natural” do homem. A relação de posse e a exploração da natureza nascem
dessa concepção. Diversas empresas, como a Monsanto – que, por exemplo,
solicitou e conseguiu a patente do cultivo convencional de brócolis –
seguem esse paradigma, buscando o lucro pela privatização do que é de
uso comum.
Analisar os escritos de Locke sobre indivíduos pobres também pode
auxiliar a entender a sua contribuição no estabelecimento de um tipo de
visão política contemporânea. Para o filósofo inglês, os desfavorecidos
necessitam ser controlados e disciplinados. Como solução para a questão
da miséria, Locke defende o estabelecimento de um conjunto especial de
leis que vão da coerção à punição para os mais pobres. Este tipo de
pensamento parece salientar que os mais pobres nunca serão totalmente
incorporados à sociedade, a não ser como força de trabalho a ser
devidamente explorada.
A ideia de “Estado mínimo” se mostra, da mesma forma, um
desdobramento das noções apresentadas por Locke. De acordo com os
teóricos do Estado mínimo, a única função do Estado é defender os
direitos individuais e a propriedade privada. O problema com tal ponto
de vista é que a função do Estado, de dar segurança à propriedade
privada, pode rapidamente se tornar hipertrofiada. O Estado, então,
passa a atuar como um braço armado dos negócios. Essa é a tese defendida
por um major-general do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos
chamado Smedley Butler, um dos marines mais condecorados da história americana. Em seu texto War is a Racket (de
1935), o major afirma que todas as guerras dos EUA, no período em que
ele atuou, foram motivadas simplesmente pela defesa dos interesses
comerciais de empresas, indústrias e banqueiros.
Considerar o Estado simplesmente como promotor da segurança pode
também fomentar políticas militaristas, repressivas e agressivas dentro
da própria sociedade. Temas complexos que poderiam ser tratados como
assuntos de saúde pública ou de educação passam exclusivamente para a
pauta da segurança pública. Tal quadro permite que o Estado liberal se
transforme em um Estado policial. Essa perspectiva desfaz a possível
contradição que reside no fato de um dos países economicamente mais
liberais do mundo apresentar uma das maiores taxas de presos por
habitante, além de produzir o maior esquema de espionagem de civis já
visto.
Sob esta mesma ótica, é possível analisar, por exemplo, o modo como
foi conduzido o recente processo de pacificação das comunidades da
cidade do Rio de Janeiro. A ocupação policial das favelas e a instalação
das “Unidades de Polícia Pacificadora” (UPPs) são um projeto que se
integra aos grandes empreendimentos urbanos voltados para a Copa do
Mundo e para as Olimpíadas e a valorização do mercado imobiliário
carioca. A presença do Estado nestas localidades parece se circunscrever
a uma estratégia de rígido controle do território, não visando a ações
ou políticas efetivas de promoção de direitos básicos como saúde,
educação ou saneamento, mas a garantir a proteção do capital. Enquanto
dentro das comunidades são frequentes as denúncias de abusos e violência
por parte da Polícia Militar – a única parcela do Estado que
efetivamente ali está presente – nos bairros próximos aumenta a
especulação imobiliária.
Assim, a concepção sobre o homem se mostra um reflexo da perspectiva
sobre a função do Estado. De acordo com as ideias desenvolvidas por
Locke, os indivíduos convivem como inimigos em potencial, que se unem
apenas pelo interesse egoísta. Dessa forma, um Estado construído sobre
essas bases logo caminha para o caminho da repressão, da militarização e
do policiamento ostensivo. É possível que este seja o momento de
repensar a interação entre os indivíduos e o Estado, de maneira que o
estímulo ao diálogo conduza à esfera da cooperação entre as pessoas,
pondo em prática, finalmente, a natureza empática do ser humano, até
então adormecida.
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