Em 1976, Gérson, ex-jogador da seleção de futebol tricampeã mundial,
conhecido como “canhotinha de ouro”, estrelou um comercial de cigarros.
No vídeo, o meia-armador é apresentado como o “cérebro” do time campeão
mundial no México e, perguntado pelo narrador da propaganda, o porquê de
escolher o cigarro Vila Rica, responde: “Por que pagar mais caro se o
Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar
vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”.
Mais tarde, Gérson se disse arrependido por ter associado a sua imagem
ao anúncio, uma vez que qualquer comportamento pouco ético ou antiético
passou a ser conhecido como Lei de Gérson. Quase quatro décadas se
passaram, mas a expressão continua mais viva do que nunca. Vejamos,
então.
No verão escaldante que vive a cidade do Rio de Janeiro, duas
repórteres da rádio CBN resolveram ir à praia de Copacabana com o
objetivo de comparar os preços cobrados pelos vendedores ambulantes e
barraqueiros para o turista e para quem mora na cidade. Os itens
pesquisados foram: aluguel de barraca e cadeira; filtro solar fator 60;
bronzeador; camarão; biquíni; empada, biscoito Globo (biscoito polvilho,
uma tradição das praias cariocas); mate e água. Na média, o turista
que visita a Cidade Maravilhosa tem que desembolsar 46% a mais do que o
carioca da gema para comprar os mesmos produtos.
Eis o relato da repórter “estrangeira”: “Em inglês, me fazendo de
turista o tempo todo, perguntei ao barraqueiro quanto custava para
alugar um guarda-sol e uma cadeira. A resposta foi tão rápida e firme,
que qualquer estrangeiro não desconfiaria. Barraca a R$ 15 e cadeira por
R$ 10. Negócio fechado”.
Agora, o relato da repórter “carioca”: “Cinco minutos depois, cheguei
à mesma barraca e perguntei quanto custava para alugar uma cadeira e um
guarda-sol. O mesmo barraqueiro informou: R$ 10 o guarda-sol e R$ 7 a
cadeira. Eu tentei negociar, disse que consumiria na barraca e, então,
consegui fechar por R$ 15”.
Cariocas bem humorados criaram uma moeda fictícia, chamada “surreal”,
usada para pagar a conta de restaurantes que cobram até R 100, 00 por
um prato de estrogonofe de frango ou uma singela lata de cerveja que
chega a custar, em ambulantes espalhados pela cidade, a bagatela de R$
6,00, ou cerca de 300% acima do valor cobrado nos supermercados.
A lei da oferta e da procura e a busca do lucro desenfreado,
características inerentes do sistema de produção capitalista, ajudam a
entender o que acontece nas praias cariocas, mas não são suficientes
para explicar o fenômeno. É a pura malandragem, na pior acepção do
termo. É a Lei de Gérson agindo novamente, é querer passar os outros
para trás, é levar vantagem em tudo, custe o que custar (aos que se
dispõem a pagar o que é cobrado…), é a cara de pau, a ganância. Haja
óleo de peroba.
A sociedade brasileira está contaminada por esse “modo de vida”. O
padrão de comportamento vem lá de cima, dos altos escalões da
administração pública, que desrespeitam constantemente as fronteiras
entre espaço público e privado, entre interesses coletivos e
particulares, que corrompem e são corrompidos, que superfaturam ou
subfaturam contratos de acordo com a conveniência do momento. Pensa o
cidadão aqui embaixo: se os “homens” fazem o que fazem e nada acontece,
por que eu devo agir eticamente, de acordo com valores caros a
sociedades democráticas? Superfaturar o custo de obras públicas, o preço
cobrado pela latinha de cerveja ou a barraca de praia alugada para o
turista “otário” são ações da mesma natureza, a boa e velha malandragem.
Poder-se-ia até discutir o seu caráter criminoso em termos legais, no
entanto, se as avaliarmos em termos de valores como decência,
honestidade, civilidade, democracia, todas elas são deploráveis e
condenáveis na mesma medida.
Colocar o dedo na ferida não é fácil, tanto pra quem coloca quanto
pra quem sente a dor, mas é fundamental uma dose de humildade, o que é
raro. O colunista do jornal O Globo, Ancelmo Góis, publica,
eventualmente, notícias de alguém que foi roubado num restaurante em
Paris ou Londres e conclui dizendo que “deve ser terrível… você sabe”. O
colunista usa a tática irônica do “morde e assopra”: o título expõe as
mazelas brasileiras, porque assaltos de todo tipo são corriqueiros por
aqui, mas revela que também em cidades “civilizadas” o “mar não está
para peixe”. A mensagem é a seguinte: problemas existem em todos os
lugares, ninguém é melhor que ninguém. Este cinismo contamina a todos,
como o comprova o Ministro dos Esportes, Aldo Rebelo que, ao comentar a
violência urbana no país que sediará a próxima Copa do Mundo de futebol,
respondeu que a única vez em que sofreu um assalto em sua vida foi, que
azar, na Cidade Luz, Paris. A dificuldade em aceitar críticas de um
homem público traz consigo um tom de empáfia, arrogante, prepotente, de
péssimas lembranças, quando se ouvia a frase “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
Será que devemos partilhar desta lógica do “roto falando do
esfarrapado”? Será que devemos nos contentar com um padrão moral de
quinta categoria, já que aqui, em Paris, Londres ou Nova Iorque
encontramos os mesmos problemas? Será que as respostas aos problemas são
as mesmas? E por que compararmos incessantemente o que acontece em
nosso quintal com o que acontece no quintal alheio? Por que não medirmos
nossa moralidade a partir dos nossos critérios? Por que não conseguimos
nos desvencilhar destas comparações ridículas com o exterior, tentando
desqualificar, a partir de alguns exemplos de violência urbana (notem:
nunca há mortos e feridos, ao contrário daqui) a qualidade de vida de
sociedades socialmente mais justas? Por que a sociedade brasileira não
mede suas ações a partir de sua régua moral? Não seria uma prova de
despeito, inveja? Se franceses, ingleses e norte-americanos vivem mal,
problema deles. Cuidemos dos nossos.
A Lei de Gérson, diferente da maior parte das leis brasileiras, que
não pegam, pegou. E por quê? Porque não depende de imposições legais, é
parte do direito consuetudinário, direito não escrito fundado nos usos e
costumes, incorporado ao cotidiano assim como o feijão com arroz. O
mais triste é ver que o malandro pé de chinelo não entende que sua ação
só legitima as “malfeitorias” dos de cima. É o barraqueiro da praia ou o
ambulante da latinha de cerveja que tem que usar os sistemas públicos
de saúde e transporte, sucateados, com deficiência de profissionais
qualificados e infraestrutura caindo aos pedaços. Sucateados, diga-se de
passagem, além da costumeira ineficiência da gestão do bem público, e
pra rimar, por conta da malandragem.
Até quando a sociedade brasileira vai sofrer da Síndrome de Gabriela? Eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, vou ser sempre assim… Gabriela… Sempre Gabriela.
*
MARCELO GRUMAN é Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ,
Antropólogo e Especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura.
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