Ativista digitais se mostram pessimistas quanto ao
futuro da internet e afirmam que, enquanto existirem governos, a
espionagem na rede vai continuar
Por Marcelo Hailer
No século XVIII, o filósofo e jurista Jeremy Bentham concebeu a ideia
do panóptico a partir de estudos dos sistemas prisionais. A ideia do
cientista era criar uma prisão circular e, no centro dela, ficaria o
observador central (o panóptico) que, desta maneira, poderia observar
todo o espaço a partir de um único ponto. Posteriormente, Bentham
declarou que o sistema de vigilância poderia ser aplicado em escolas e
no trabalho.
O filósofo francês Michel Foucault, quando inicia os seus estudos a
respeito dos dispositivos normativos, nos anos de 1960, estabelece que o
panóptico de Bentham é o início do paradigma da sociedade disciplinar,
pois, a partir daí, toda a vida social passa a ser vigiada, controlada,
normatizada e punida. Foucault vai dizer que, com a justificativa de que
tudo é para melhorar a sociedade e torná-la mais segura, estes
dispositivos de vigilância acabam por se naturalizar na sociedade e o
mais importante: a sua real função não é mais questionada.
Posteriormente, Gilles Deleuze vai apontar a passagem da Sociedade
Disciplinar à Sociedade do Controle, o que não significa que os
dispositivos disciplinares deixaram de atuar. A partir da metade do
século XX, entramos na era da vigilância, portanto, além das
instituições que visam normatizar o comportamento social, a vida passa a
ser vigiada e controlada, e não apenas o espaço público, mas
fundamentalmente o espaço privado.
A partir do advento da internet no final do século XX somam-se às
Sociedades do Controle e Disciplinar, a Sociedade Informacional, base
para o que vai se chamar de Sociedade em Redes. A velocidade, a
territorialização digitalizada, a troca de dados em segundos e a vida
sendo constituída no ciberespaço. Mas se no espaço orgânico os
dispositivos disciplinares e de controle ditavam o cotidiano, na esfera
digital não será diferente.
Vigiados em rede?
Os primeiros ativistas no final dos anos 1980, com o embrionário
movimento dos Cypherpunks, já atentavam para falta de segurança em torno
dos dados trocados na internet. Esta preocupação com uma suposta
vigilância voluntária sendo construída na rede vai resultar no “Manifesto Cypherpunk”, escrito por Eric Hughes, em 1993, que clama pela liberdade, privacidade e anonimato.
“A privacidade é necessária para termos uma sociedade aberta na era
eletrônica. Privacidade não é o mesmo que segredo. Um assunto privado é
uma coisa que alguém não quer que o mundo inteiro saiba; um assunto
secreto é uma coisa que alguém não quer que ninguém saiba. A privacidade
é o poder de revelar-se seletivamente para o mundo”, diz o trecho que
inicia o “Manifesto Cypherpunk”. Anonimato também é a palavra chave do
movimento. “Nós, os Cypherpunks, nos dedicamos a construir sistemas
anônimos. Nós estamos defendendo a nossa privacidade com criptografia,
com sistemas de encaminhamento de e-mail anônimos, com assinaturas
digitais e com dinheiro eletrônico”, defende o coletivo de ativistas
digitais.
O que seria “defender a nossa privacidade com criptografia”? A
palavra criptografia vem do Grego Kryptós, que significa “escondido” e
de “gráphein”, que significa “escrita”, logo, “escrita-escondida” seria a
tradução literal para criptografia, que, desde que Mark Zuckerberg
anunciou a compra do Whatsapp por 12 bilhões de dólares, foi um tema que
começou a ganhar força nas redes sociais. Isso muito por conta de uma
aplicativo russo, o Telegram, idêntico ao concorrente norte-americano,
mas com uma diferença: a suas mensagens são criptografadas. Esta
informação fez com que em apenas um dia cinco milhões de pessoas
migrassem para o app.
Assim como indica a tradução do grego (palavra-escondida), a
criptografia consiste em sistemas que embaralham a mensagem a partir do
emissor e apenas quando chega em seu receptor ela é decodificada, ou
desembaralhada. Internacionalmente, a criptografia ficou conhecida com a
ascensão do fundador e líder do Wikileaks, Julian Assange, que defende
sua “democratização e popularização”, afirmando que esta é a grande
ferramenta de resistência do século XXI.
As palavras de Assange ganharam ainda mais força com as denúncias de
Edward Snowden, que em maio de 2013 revelou o maior esquema de
vigilância que já se teve notícia, realizado pela NSA (Agência de
Segurança Nacional, em português). E no que consistia o trabalho da
agência onde Snowden trabalhava? Interceptar dados trocados nas redes
sociais com a desculpa de que era um trabalho para prevenir os Estados
Unidos de ataques terroristas, ou seja, a rede transformada num grande
panóptico do século XXI.
Resistência Digital
Para esmiuçar todo esse emaranhado da Sociedade do Controle na era
digital conversamos com os ativistas digitais Antônio Arles e Rodolfo
Avelino e Gustavo G, ambos do Coletivo Actantes.
Os entrevistados possuem opiniões semelhantes no que diz respeito ao
medo que os governos possuem frente à popularização da criptografia. “É
muito mais fácil e barato criptografar do que descriptografar. O uso de
criptografia em massa poderia diminuir a vigilância massiva, fazendo com
que governos e corporações tenham que definir muito bem seus alvos para
que o acesso às informações seja viável”, analisa Arles.
Avelino e G. argumentam que a criptografia possui grande potencial
para diminuir o poder dos governos. “Convivemos hoje em um ambiente
virtual (internet) de controle, onde o principal objetivo destas ações
do lado do Estado é manter seu poder e quebrar a soberania de outros
países e, por outro lado, das grandes corporações de controlar a
experiência de navegação dos usuários de internet para garantia de suas
vantagens comerciais. Para que estas estratégias tenham sucesso é
necessário a quebra da privacidade do usuário. Neste sentido, o software
livre e a criptografia são ferramentas que podem contribuir para que
dados armazenados e, sobretudo, a navegação e a comunicação do usuário
pela rede possam estar protegidos da espionagem de governos e da
vigilância das empresas”, avaliam os ativistas.
Cripto Guerra
Ao mesmo tempo em que a criptografia é publicizada e ganha até uma CriptoRave
na cidade de São Paulo, Estados Unidos e Europa estudam secretamente
protocolos que visam proibir o uso cidadão da técnica de criptografar,
tornando-a uma ferramenta de uso estritamente militar. O mais irônico é
que até hoje bancos dos Estados Unidos presenteiam seus novos clientes
com tais “armas”.
“A criptografia forte é algo temido pelo governo, pois, como muito
bem nos lembra Edward Snowden, se devidamente implementada, é
praticamente impossível quebrá-la. A matemática é a prova de violência,
mesmo o Estado tendo o monopólio da violência e coerção, ele é incapaz
de vencer a matemática. É por essa razão que governos e suas agências de
inteligência sabotam padrões e operam programas clandestinos contra a
criptografia, por exemplo, no black budget – o orçamento de
2013 da NSA – incluía mais de US$ 250 milhões de dólares para financiar
programas com o objetivo de inserir vulnerabilidades nos programas de
criptografia”, denunciam Avelino e Gustavo G.
Arles também concorda que a criptografia dificulta a vigilância. “A
internet é uma rede de controle. Você se torna um alvo quando usa a
rede, pois tem um endereço de sua máquina que é necessário para que você
se conecte. O uso de criptografia torna mais difícil essa vigilância
massiva. Talvez por isso o medo deles”, disse Arles.
“A criptografia forte é também considerada uma arma e regulada pelo
Tratado de Wassenaar. Durante a chamada Cripto Guerras, governos do
mundo todo atacaram os cypherpunks e alguns deles foram investigados e
processados juridicamente como é o caso do estadunidense Phil
Zimmermann, criador do Pretty Good Privacy (PGP), na década de 90. O PGP
é um programa de criptografia ponto a ponto que pode ser usado para
criptografar e-mails e arquivos, pensado para ser utilizado por
ativistas”, criticam Gustavo G e Avelino.
Os ativistas do Actance relatam a perseguição que o criador do PGP
sofreu. “Zimmermann foi investigado por violação no Tratado de Wassenaar
por ‘exportação de munição’. Para evitar a censura do código, publicou
todo o código fonte do programa num livro e, pela liberdade de
expressão, conseguiu exportar para outros países. A partir do livro,
outros ativistas e programadores desenvolveram uma implementação livre
do programa. Três anos depois, o processo contra Zimmermann foi
finalizado sem a sua condenação, dada a repercussão e o grande apoio que
teve mundialmente. Ainda hoje, se você for um desenvolvedor
estadunidense, há países que você não pode exportar criptografia, como o
Irã.”
Porém, ao mesmo tempo em que a criptografia é uma ferramenta de
defesa frente à invasão dos dados alheios, ela também transforma os seus
usuários em potenciais “inimigos vigiados”, como já denunciou Edward
Snowden que, ainda assim, insiste para que as pessoas cada vez mais se
utilizem da ferramenta. Mas, com tamanho controle dos governos e
agências de espionagem, será que os internautas não ficarão acuados em
utilizar a criptografia, pois, como disse o ex-agente NSA, “todos
aqueles usam a criptografia se tornam alvos em potencial de espionagem”?
“Quando um pequeno grupo de usuários usa criptografia é o suficiente
para que os governos e corporações transformem esses poucos usuários em
alvos. É como se você falasse, quando usa a criptografia: estou tentando
esconder algo de você. Com isso, eles têm como priorizar estes alvos.
Já, se o uso de criptografia for massivo e ela for usada para
informações banais vai tornar mais difícil a definição de alvos”, diz
Arles.
Gustavo G. e Avelino lembram de uma estratégia de manifestantes para
fugir do cerco policial para exemplificar o potencial da criptografia
massificada. “Houve certa vez num país do leste europeu que a polícia
passou a prender ativistas que distribuíam panfletos contra o governo.
Para identificá-los, a polícia sabia que geralmente eles utilizavam
mochilas para carregar o material. Ao aumentar a repressão contra esses
ativistas, pessoas comuns se solidarizaram e passaram a usar mochilas
também. E aí não se sabia quem era ativista e quem não era. Hoje, o modus operandi
dessas organizações de inteligência é primeiro passar uma rede de
arrastão nas comunicações eletrônicas e depois filtrar. Se uma das
regras do filtro é a utilização de criptografia, então, torná-la
acessível para todos tornará esse filtro inútil. Dessa forma, utilizar
criptografia forte é uma das poucas coisas que impedirá a vigilância em
massa”, comentam os ativistas a respeito do poder político da
criptografia.
Há alguns movimentos nesse sentido, como o que ocorre hoje com a
Diáspora*. No Brasil eventos de migração para a nova ferramenta de rede
estão sendo organizados sucessivamente, mas, será que elas conseguirão
fazer frente ao Facebook e similares? “Nesse primeiro momento estamos
falando de adesão, ou seja, uma opção individual, quando na verdade a
criptografia deveria ser ativada por padrão e transparente para o
usuário. Para isso acontecer é necessário que grupos como o IETF
(Internet Engineering Task Force) aprovem padrões e protocolos seguros,
por exemplo, mas isso pode não acontecer da forma como gostaríamos pois
há membros da NSA dentro dos grupos de trabalho. É preciso ter um
movimento político internacional pró-privacidade forte e ativo para
impedir que sejam criados e inseridos padrões enfraquecidos e protocolos
com backdoors integrados. Isso não pode mais acontecer ou se repetir,
mas se depender dos representantes dos governos, isso acontecerá
sempre”, avaliam Gustavo G e Avelino.
Na mesma linha dos dois ativistas da Actances, Arles acredita que a
transformação do espaço digital em um ambiente seguro só será possível
com um movimento massivo. “Acredito em uma diáspora das redes. E não
estou me referindo aqui à ferramenta de rede social Diáspora, que é uma
ferramenta que tem como um de seus fundamentos a privacidade do usuário.
O que acredito é que cada vez mais pessoas estarão em redes,
ferramentas diferentes. Isso é uma mistura de análise com vontade. Já
vemos pessoas fugindo de grandes redes e usando ferramentas específicas.
A princípio, é bom, pois dificulta a vigilância”, aponta Arles.
Zuckerberg criptografado?
No momento em que fechávamos esta reportagem o fundador da rede social Facebook, Marck Zuckerberg, se utilizou de seu perfil
para criticar o governo Obama e a sua política de espionagem, e ainda
defendeu uma rede segura e criptografada, dizendo que o governo
norte-americano causou “danos para o futuro de todos”.
“O governo dos Estados Unidos deveria ser o herói da internet, não
uma ameaça. Eles precisam ser mais transparentes sobre o que estão
fazendo, do contrário, as pessoas vão acreditar no pior. Quando nossos
engenheiros trabalham exaustivamente para melhorar a segurança,
imaginamos protegê-lo de criminosos, não do nosso próprio governo”,
critica.
Por fim, Zuckerberg acusa a gestão de Obama de ter colocado a perder
“todo o trabalho desenvolvido pela rede social para proteger os
internautas”. Pessimista, afirma não ter perspectivas de quem uma
reforma na rede possa, de fato, garantir segurança aos usuários frente a
política de espionagem do governo Obama e sugere aos internautas que
comecem a construir uma outra internet, “aquela que considerarem ideal”.
Se até o fundador do Facebook, que foi acusado de ter cedido dados
dos usuários ao governo norte-americano, está pessimista quanto ao
futuro da rede no que diz respeito a vigilância… O que pensar? Devemos
então nos voltar a Foucault e ao Deleuze, quando apontaram as sociedades
do Controle e Disciplinar e aceitar que entramos numa vereda sem volta e
cada vez mais vigilante?
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