Pesquisa vasculha território obscuro da internet: as comunidades
que clamam por violência policial, linchamentos, mortes dos
“esquerdistas” e novo golpe militar
Por Patrícia Cornils, entrevistando Fábio Malini | Imagem: Vitor Teixeira
No dia 5 de março o Laboratório de Estudos sobre Imagem e
Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo,
publicou um mapa de redes de admiradores das Polícias Militares no
Facebook. São páginas dedicadas a defender o uso de violência contra o
que chamam de “bandidos”, “vagabundos”, “assaltantes”, fazer apologia a
linchamentos e ao assassinato, defender policiais, publicar fotos de
pessoas “justiçadas” ou mortas violentamente, vender equipamentos
bélicos e combater os direitos humanos.
Para centenas de milhares de seguidores dessas páginas, a
violência é a única mediadora das relações sociais, a paz só existe se a
sociedade se armar e fizer justiça com as próprias mãos, a obediência
seria o valor supremo da democracia. Dentro dessa lógica, a relação com
os movimentos populares só poderia ser feita através da força policial.
Qualquer ato que escape à ordem ou qualquer luta por direitos é lido
como um desacato à sociedade disciplinada. Um exemplo: no sábado, dia 8
de março, a página “Faca na Caveira” publicou um texto sobre o Dia
Internacional das Mulheres no qual manda as feministas “se foderem”. Em
uma hora, recebeu 300 likes. Até a tarde de domingo, 1473 pessoas haviam
curtido o texto.
Abaixo o professor Fábio Malini explica como fez a pesquisa e
analisa o discurso compartilhado por esses internautas. “O que estamos
vendo é só a cultura do medo midiático passando a ter os seus próprios
veículos”, diz ele. Explore as redes neste link.
Como você chegou a esse desenho das redes? O que ele representa?
É um procedimento simples em termos de pesquisa. O pesquisador cria
uma fanpage no Facebook e passa a dar “like” num conjunto de fanpages
ligada à propagação da violência. Em seguida, usamos uma ferramenta que
identifica quais os sites que essas fanpages curtem. E, entre elas,
quais estão conectadas entre si. Se há conexão entre uma página com
outra, haverá uma linha. Se “Faca na Caveira” curte “Fardado e
Armados˜há um laço, uma linha que as interliga. Quando fazemos isso para
todas as fanpages, conseguimos identificar quais são as fanpages da
violência (bolinhas, nós) mais conectadas e populares. Isso gera um
grafo, que é uma representação gráfica de uma rede interativa. Quanto
maior é o nó, mais seguida é a página para aquela turma. No grafo,
“Polícia Unida Jamais será vencida” é a página mais seguida pela rede.
Não significa que ela tem mais fãs. Significa que ela é mais relevante
para essa rede da violência. Mas a ferramenta de análise me permite ver
mais: quem são as páginas mais populares no Facebook, o que elas
publicam, o universo vocabular dos comentários, a tipologia de imagens
que circula etc.
O que você queria ver quando pesquisou esse tema? E o que achou de mais interessante?
Pesquisei durante apenas uma semana para testar o método de extração
de dados. Descobri que o Labic, laboratório que coordeno, pode ajudar na
construção da cultura de paz nesse país, desvelando os ditos dessas
redes, que estão aí, lotadas de fãs e públicas no Facebook. Assustei-me
em saber a ecologia midiática da repressão no Facebook, em função da
agenda que esses sites estabelecem.
Primeiro há um horror ao pensamento de esquerda no país. Isso aparece
com inúmeros textos e imagens que satirizam qualquer política de
direitos humanos ou ligadas aos movimentos sociais. Essas páginas
funcionam como revides à popularização de temas como a desmilitarização
da Polícia Militar ou textos de valorização dos direitos humanos.
Atualmente, muitas dessas páginas se articulam em função da “Marcha pela
Intervenção Militar”. Um de seus maiores ídolos é o deputado Jair
Bolsonaro.
Após os protestos no Brasil, a estrutura de atenção dos veículos de
comunicação de massa se pulverizou, muito tráfego da televisão está
escoando para a internet, o que faz a internet brasileira se tornar
ainda mais “multicanal”, com a valorização de experiências como Mídia
Ninja, Rio na Rua, A Nova Democracia, Outras Palavras, Revista Fórum,
Anonymous, Black Blocs. São páginas muito populares. Mas não estão
sozinhas. Há uma guerra em rede. E o pensamento do “bandido bom, bandido
morto” hoje se conformou em votos. Esse pensamento foi capaz de
construir redes sociais em torno dele.
A despolitização, a corrupção, os abusos de poder, a impunidade,
estão na raiz da força alcançada por essas redes da violência e da
justiça com as próprias mãos. E não tenho dúvida: essas redes, fortes,
vão conseguir ampliar seu lastro eleitoral. Vão ajudar na eleição de
vários políticos “linha dura”. Em parte, o crescimento dessas redes se
explica também em função de forças da esquerda que passaram a
criminalizar os movimentos de rua e ficaram omissas a um conjunto de
violações de direitos humanos. O silêncio, nas redes, é resignação. O
que estamos vendo é só a cultura do medo midiática passando a ter os
seus próprios veículos de comunicação na rede.
Você escreveu que “é bom conhecer e começar a minerar todos os conteúdos que são publicadas nelas.” Por que?
Porque é preciso compreender a política dessas redes e seus temas
prioritários. Instituir um debate por lá e não apenas ficar no nosso
mundo. É preciso dialogar afirmando que uma sociedade justa é a que
produz a paz, e não uma sociedade que só obedece ordens. Estamos numa
fase de mídia em que se calar para não dar mais “ibope” é uma estratégia
que não funciona. É a fala franca, o dito corajoso, que é capaz de
alterar (ou pelo menos chacoalhar) o discurso repressor.
É interessante, ao coletarmos e minerarmos os dados, notar que muitas
dessas páginas articulam um discurso de Ode à Repressão com um outro
pensamento: o religioso, cujo Deus perdoa os justiceiros. Isso se
explica porque ambos são pensamentos em que o dogma, a obediência,
constituem valores amplamente difundidos. Para essas redes, a defesa
moral de uma paz, de um cuidado de si, viria da capacidade de os
indivíduos manterem o estado das coisas sem qualquer questionamento,
qualquer desobediência.
No lugar da Política enfrentar essas redes, para torná-las
minoritárias e rechaçadas, o que vemos? Governantes que passam a
construir seus discursos e práticas em função dessa cultura
militarizada, dando vazão a projetos que associam movimentos sociais a
terrorismo. Daí há uma inversão de valores: a obediência torna-se o
valor supremo de uma democracia. E a política acaba constituindo-se
naquilo que vemos nas ruas: o único agente do Estado em relação com os
movimentos é a polícia.
O grafo mostra as relações entre os diversos nós dessa rede. Mas e
se a gente quiser saber o que essas redes conversam? As PMs estão no
centro de vários debates importantes hoje: o tema da desmilitarização. A
repressão às manifestações. O assassinato de jovens pobres, pretos,
periféricos. Esses nós conversam sobre essas coisas? Em que termos?
Sim, esses nós se republicam. Tal como páginas ativistas se
republicam, tais como páginas de esporte se republicam. Todo ente na
internet está constituindo numa rede para formar uma perspectiva comum.
As ferramentas para coletar essas informaçoes públicas estão muito
simplificadas e na mão de todos. Na tenho dúvida que as abordagens
científicas das Humanidades serão cada vez mais centrais, pois a partir
de agora o campo das Humanidades lidará com milhões de dados. É uma nova
natureza que estamos vendo emergir com a circulação de tantos textos,
imagens, comportamentos etc.
Você escreveu que “os posts das páginas, em geral, demonstram o
processo de construção da identidade policial embasada no conceito de
segurança, em que a paz se alcança não mediante a justiça, mas mediante a
ordem, a louvação de armamentos e a morte do outro.” Pode dar exemplos
de como isso aparece? E por que isso é grave? Afinal, na visão dos
defensores e admiradores da polícia, as posições que defendem dariam
mais “paz” à sociedade.
Sábado, 8 de março, foi o Dia Internacional da Mulher. Uma das
páginas, a Faca na Caveira, deu parabéns às mulheres guerreiras. Mas
mandaram as feministas se foderem. O post teve 300 likes em menos de
meia hora e na tarde de domingo tinha 1473 likes. A paz só será
alcançada com ordem e obediência, dizem. No fundo, essas redes
revelam-se como repressoras de qualquer subjetividade inventiva. Por
isso, são homofóbicas e profundamente etnocêntricas de classes. É uma
espécie de decalque do que pensa a classe média conectada no Brasil, que
postula que boné de “aba reta” em shopping é coisa da bandidagem.
Em Vitória, onde resido, em dezembro de 2013, centenas de jovens que
curtiam uma roda de funk nas proximidade de um shopping tiveram que
entrar nesse recinto para fugir da repressão da polícia, que criminaliza
essa cultura musical. Imediatamente foi um “corre-corre” no centro
comercial. Os jovens foram todos colocados sentados, sem camisa, no
centro da Praça de Alimentação. Em seguida, foram expulsos em fila
indiana pela polícia, sob os aplausos da população. Depois, ao se
investigar o fato, nenhum deles tinha qualquer indício de estar
cometendo crime. Essa cultura do aplauso está na rede e é forte. É um
ódio à invenção, à diferença, à multiplicidade. É por isso que a morte é
o elemento subjetivo que comove essa rede. Mostrar possíveis criminosos
mortos, no chão, com face, tórax ou qualquer outro parte do corpo
destruída pelos tiros, é um modo de reforçar a negação da vida.
Essas redes conversam com outras redes não dedicadas
especificamente à questão das PMs? Vi, por exemplo, que tem um “Dilma
Rousseff Não”, um “Caos na Saúde Pública” e um “Movimento Contra
Corrupção”. Que ligações as pessoas ali estabelecem entre esses temas?
Sim, são páginas que se colocam no campo da direita mais reacionária
do país. Mas isso também é um índice da transmutação do conservadorismo
no Brasil. Infelizmente, o controle da corrupção se tornou um fracasso.
Essa condição fracassada alimenta a despolitização. E a despolitização é
o combustível para essas páginas. Mas a despolitização não é apenas um
processo produzidos pelos “repressores”, mas por sucessivos governos
mergulhados em escândalos e que são tecidos por relações políticas
absolutamente cínicas em nome de alguma governabilidade.
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