A
vida nas cidades brasileiras piorou muito a partir dos
últimos anos da
década passada. Considerando que a
herança histórica já não era leve, o
que aconteceu para
torná-la pior?
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Quem acompanha de perto a realidade das cidades brasileiras não
estranhou as manifestações que impactaram o país em meados de junho de
2013.1 Talvez a condição de jovens, predominantemente de
classe média, da maioria dos manifestantes exija uma explicação um pouco
mais elaborada, já que foi antecedida pelos movimentos fortemente
apoiados nas redes sociais. Mas no Brasil é impossível dissociar as
principais razões, objetivas e subjetivas desses protestos, da condição
das cidades. Essa mesma cidade que é ignorada por uma esquerda que não
consegue ver ali a luta de classes e por uma direita que aposta tudo na
especulação imobiliária e no assalto ao orçamento público. Para
completar, falta apenas lembrar que há uma lógica entre legislação
urbana, serviços públicos urbanos (terceirizados ou não), obras de
infraestrutura e financiamento das campanhas eleitorais.
As cidades são o principal local onde se dá a reprodução da força de
trabalho. Nem toda melhoria das condições de vida é acessível com
melhores salários ou com melhor distribuição de renda. Boas condições de
vida dependem, frequentemente, de políticas públicas urbanas –
transporte, moradia, saneamento, educação, saúde, lazer, iluminação
pública, coleta de lixo, segurança. Ou seja, a cidade não fornece apenas
o lugar, o suporte ou o chão para essa reprodução social. Suas
características e até mesmo a forma como se realizam fazem a diferença.
Mas a cidade também não é apenas reprodução da força de trabalho. Ela é
um produto ou, em outras palavras, um grande negócio, especialmente
para os capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros,
juros e rendas. Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre
aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam
apenas extrair ganhos.
A cidade constitui um grande patrimônio construído histórica e
socialmente, mas sua apropriação é desigual e o nome do negócio é renda
imobiliária ou localização, pois ela tem um preço devido a seus
atributos. Isso tem a ver também com a disputa pelos fundos públicos e
sua distribuição (localização) no espaço.2
Como integrantes de um país da periferia do capitalismo, em que pesem as novas nomenclaturas definidas pelo mainstream,
as cidades brasileiras carregam uma herança pesada. A desigualdade
social, uma das maiores da América Latina, e a escravidão vigente até
pouco mais de um século atrás são características que se somam a um
Estado patrimonialista e à universalização da “política do favor”. De
que forma essas características aparecem nas cidades? Como não é o caso
de fazermos uma leitura extensa, pois este texto é apenas um ponto de
partida, vamos priorizar o fato de que grande parte de nossas cidades é
construída pelos próprios moradores em áreas invadidas – muitas delas
ambientalmente frágeis – ou adquiridas de loteadores ilegais. Para a
construção desses bairros não contribuem arquitetos ou engenheiros,
tampouco há observância de legislação urbanística ou de quaisquer outras
leis, até mesmo para a resolução dos (frequentes) conflitos, para a
qual não contribuem advogados, cortes, juízes ou tribunais. Trata-se de
uma força de trabalho que não cabe no mercado residencial privado legal,
que por sua vez (e por isso mesmo) é altamente especulativo. Trata-se,
portanto, de uma força de trabalho barata, segregada e excluída da
cidade legal. Assim como vivemos a industrialização dos baixos salários,
podemos dizer que vivemos a urbanização dos baixos salários. A melhoria
desses bairros é fonte inesgotável do velho clientelismo político:
trocam-se por votos a pavimentação de uma rua, a iluminação pública, uma
unidade de saúde, uma linha de ônibus etc.
A cidade formal, destinada a ser simulacro de algumas imagens-retalhos
do “Primeiro Mundo”, é a outra face da moeda. Uma não existe sem a
outra. Os exemplos virão quando tratarmos do momento atual.
Foi sobre essa base extremamente desigual que se deu, no início dos
anos 1980, o ajuste fiscal. O Brasil vinha há quarenta anos num
crescimento acima dos 7% ao ano. As migalhas desse banquete traziam
algum conforto para a população migrante, que chegava aos milhares nas
cidades, em especial nas principais metrópoles. Com a globalização e o
ajuste fiscal, a tragédia urbana se aprofundou.
A contar a partir dos anos 1980, o impacto das décadas seguintes de
baixo crescimento, alto desemprego e recuo das políticas públicas e
sociais determinadas pelo receituário neoliberal pode ser medido por
muitos indicadores, mas vamos fazê-lo aqui pelo aumento da violência
urbana. A taxa de homicídios cresceu 259% no Brasil entre 1980 e 2010. A
principal vítima dos homicídios é o jovem negro e pobre, morador da
periferia metropolitana.3
Com a globalização, o território brasileiro passa por notável
transformação. Mudam as dinâmicas demográfica, urbana e ambiental, além
das social e econômica. A exportação de commodities – grãos,
carnes, celulose, etanol, minérios – ganha o centro da política
econômica e sua produção reorienta os processos demográficos. A
urbanização se interioriza. O tsunami dos capitais globais e nacionais
passou antes pelo campo, subordinando o que encontrou pela frente:
terras indígenas ou de quilombolas, florestas amplamente derrubadas, o
MST, criminalizado, e lideranças, inclusive religiosas, assassinadas.
Contraditoriamente, foi nesse período que floresceu uma nova política
urbana, em torno da qual se organizaram movimentos sociais,
pesquisadores, arquitetos, urbanistas, advogados, engenheiros,
assistentes sociais, parlamentares, prefeitos, ONGs etc. Construiu-se a
Plataforma de Reforma Urbana, e muitas prefeituras de “novo tipo” (ou
democrático-populares) adotaram novas práticas urbanas. Além de incluir a
participação social – orçamento participativo, por exemplo –,
priorizou-se a urbanização da cidade ilegal ou informal, que era
invisível até então para o urbanismo e as administrações públicas. Esse
movimento logrou criar um novo quadro jurídico e institucional ligado às
cidades – política fundiária, habitação, saneamento, mobilidade,
resíduos sólidos –, além de novas instituições, como o Ministério das
Cidades (2003), o Conselho das Cidades (2004) e as conferências
nacionais das Cidades (2003, 2005 e 2007). O Estatuto da Cidade,
festejado no mundo todo como exemplar, foi aprovado no Congresso após
treze anos de luta popular, em 2001.
Por mais paradoxal que possa parecer, apesar de todo esse avanço
institucional, quando o governo Lula retomou em 2009 os investimentos em
habitação e saneamento numa escala significativa, após quase trinta
anos de estagnação nesse sentido, as cidades se orientaram em uma
direção desastrosa.
As primeiras medidas de combate à fome e à pobreza constituíram um
círculo virtuoso de fortalecimento do mercado interno. Os principais
programas sociais do governo Lula, continuados pelo de Dilma Rousseff,
foram o Bolsa Família, o Crédito Consignado, o Programa Universidade
para Todos (ProUni), o Programa de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf) e o Programa Luz para Todos. Garantiu-se também um
aumento real do salário mínimo (de cerca de 55%, entre 2003 e 2011,
conforme o Dieese). Os classificados em “condição de pobreza” diminuíram
sua representação de 37,2% para 7,2% nesse mesmo período. Além disso, o
crescimento tanto da economia quanto das taxas de emprego trouxe
esperança de dias melhores.4
Em 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), voltado para o investimento em obras de
infraestrutura econômica e social. O modelo visava à desoneração fiscal
de produtos industriais e buscava alavancar o emprego na indústria da
construção. Após a crise de 2008, essa orientação foi aprofundada. Em
2009, foram lançados o PAC II e o programa habitacional Minha Casa,
Minha Vida, desenhado por empresários da construção e do mercado
imobiliário em parceria com o governo federal. Teve então início um boom
imobiliário de enormes proporções nas grandes cidades. Enquanto em 2009
o PIB brasileiro e da construção civil foram negativos, contrariando a
tendência anterior, em 2010 o crescimento nacional foi de 7,5% e o da
construção civil, de 11,7%.5 Em seis regiões metropolitanas, o
desemprego, que atingia 12,8% em 2003, caiu para 5,8% em 2012. A taxa
de desemprego da construção civil no período diminuiu de 9,8% para 2,7%.6
O investimento de capitais privados no mercado residencial cresceu 45
vezes, passando de R$ 1,8 bilhão em 2002 para R$ 79,9 bilhões em 2011,7 e os subsídios governamentais (em escala inédita no país) cresceram de R$ 784.727 para mais de R$ 5,3 bilhões em 2011.8
O coração da agenda da reforma urbana, a reforma fundiária/imobiliária,
foi esquecido. Os movimentos sociais ligados à causa se acomodaram no
espaço institucional em que muitas das lideranças foram alocadas. Sem
tradição de controle sobre o uso do solo, as prefeituras viram a
multiplicação de torres e veículos privados como progresso e
desenvolvimento. Certa classe média viu suas possibilidades de galgar à
casa própria aumentarem, especialmente graças às medidas de
financiamento estendido e à institucionalização do seguro incluídas no
Minha Casa, Minha Vida.
Com exceção da oferta de emprego na indústria da construção, para a
maioria sobrou o pior dos mundos. Em São Paulo, o preço dos imóveis
aumentou 153% entre 2009 e 2012. No Rio de Janeiro, o aumento foi de
184%. A terra urbana permaneceu refém dos interesses do capital
imobiliário e, para tanto, as leis foram flexibilizadas ou modificadas,
diante de urbanistas perplexos.9 A disputa por terras entre o
capital imobiliário e a força de trabalho na semiperiferia levou a
fronteira da expansão urbana para ainda mais longe: os pobres foram para
a periferia da periferia.10 Novas áreas de proteção
ambiental acabam sendo invadidas pelos sem alternativas, pois a política
habitacional está longe do núcleo central do déficit.11 Os
despejos violentos foram retomados, mesmo contra qualquer leitura da
nova legislação conquistada por um Judiciário extremamente conservador.12
Favelas bem localizadas na malha urbana sofrem incêndios, sobre os
quais pesam suspeitas alimentadas por evidências constrangedoras.13
Os megaeventos – como a Copa e as Olimpíadas – acrescentam ainda mais
lenha nessa fogueira. Os capitais se assanham na pilhagem dos fundos
públicos, deixando inúmeros elefantes brancos para trás. Mas é com a
condição dos transportes que as cidades acabam cobrando a maior dose de
sacrifícios por parte de seus moradores. E embora a piora de mobilidade
seja geral – isto é, atinge a todos –, é das camadas de rendas mais
baixas que ela vai cobrar o maior preço.
O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2 horas e 42 minutos em
2007. Para um terço da população, esse tempo é de mais de três horas.14
A desoneração dos automóveis somada à ruína do transporte coletivo
fizeram dobrar o número de carros nas cidades. Em 2001, havia em doze
metrópoles brasileiras 11,5 milhões de automóveis e 4,5 milhões de
motos; em 2011, 20,5 milhões e 18,3 milhões, respectivamente. Os
congestionamentos em São Paulo, onde circulam diariamente 5,2 milhões de
automóveis, chegam a atingir 295 quilômetros das vias.
O governo brasileiro deixou de recolher impostos no valor de R$ 26
bilhões desde o final de 2008 (nesse mesmo período, foram criados 27.753
empregos), e US$ 14 bilhões (quase o mesmo montante dos subsídios)
foram enviados ao exterior. Há mais subsídios para a circulação de
automóveis (incluindo combustível e outros itens) do que para o
transporte coletivo.15
A prioridade ao transporte individual é complementada pelas obras de
infraestrutura dedicadas à circulação de automóveis. Verdadeiros
assaltos aos cofres públicos, os investimentos em viadutos, pontes e
túneis, além de ampliação de avenidas, não guardam qualquer ligação com a
racionalidade da mobilidade urbana, mas sim com a expansão do mercado
imobiliário, além, obviamente, do financiamento de campanhas.
O forte impacto da poluição do ar na saúde da população de São Paulo,
com consequente diminuição da expectativa de vida, tem sido estudado
pelo médico Paulo Saldiva, pesquisador da Universidade de São Paulo
(USP) e do Instituto Saúde e Sustentabilidade. O comprometimento da
saúde mental (depressão, ansiedade mórbida, comportamento compulsivo)
tem sido estudado pela psiquiatra Laura Helena Andrade, também
pesquisadora da USP. É da vida, do tempo perdido, mas também da morte,
literalmente, que estamos tratando.
Concluindo: para fazer frente a esse quadro, aqui apenas resumido,
temos no Brasil leis, planos, conhecimento técnico, experiência,
propostas maduras e testadas nas áreas de transporte, saneamento,
drenagem, resíduos sólidos, habitação... Mas, além disso, o primeiro
item necessário à política urbana hoje é a reforma política, em especial
o financiamento de campanhas eleitorais. Então, que viva a moçada que
ganhou as ruas. Se fizermos um bom trabalho pedagógico, teremos uma nova
geração com uma nova energia para lutar contra a barbárie.
Ermínia Maricato
Professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAU-USP) e professora visitante da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Formulou a proposta do
Ministério das Cidades, no qual foi ministra adjunta (2003-2005).
Ilustração: Jota K. Este artigo faz parte do livro Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, a ser lançado em agosto. A publicação (Boitempo e Carta Maior) terá 112 páginas e vai custar R$ 10 [e-book: R$ 5]. 1 Ver, da autora, artigos anteriores que tratam do assunto em: . 2 Essas ideias, aqui toscamente rascunhadas, estão baseadas em bibliografia de autores que se ocuparam da leitura marxiana da questão urbana: Henri Lefebvre, David Harvey, Christian Topalov, Jean Lojkine, Alain Lipietz, Manuel Castells, Sergio Ferro e Nilton Vargas (esses dois últimos no Brasil), entre outros. 3 Cf. Julio Jacobo Waiselfisz, “2012 | A cor dos homicídios no Brasil”, Mapa da Violência. Disponível em: . 4 Marcio Pochmann, Nova classe média? Trabalho na pirâmide social brasileira, São Paulo, Boitempo, 2012. 5 Cf. a página da internet da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). Disponível em: . 6 Idem. 7 Cf. as páginas na internet da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip) e do Banco Central do Brasil. Disponíveis, respectivamente, em: e . 8 Cf. Teotônio Costa Rezende, “O papel do financiamento imobiliário no desenvolvimento sustentável do mercado imobiliário brasileiro”, palestra apresentada no Sindicato da Habitação (Secovi), São Paulo, 1º dez. 2012. 9 Ver Ana Fernandes, “Salvador, uma cidade perplexa”, Carta Maior, 21 set. 2012. Disponível em: ; e Jurema Rugani, “Participação social, a Copa, a cidade: como ficamos?”, Carta Maior, 24 ago. 2012. Disponível em: . 10 Ver Leticia Sigolo, “Sentidos do desenvolvimento urbano: Estado e mercado no boom imobiliário do ABCD” (título provisório), doutorado em andamento, FAU-USP. 11 Ver Luciana Ferrara, “Autoconstrução das redes de infraestrutura nos mananciais: transformação da natureza na luta pela cidade”, tese de doutorado, FAU-USP, 2013. 12 A respeito das remoções forçadas, ver o material de pesquisa coletado pelo grupo Observatório de Remoções, da FAU-USP. Disponível em: . Ver ainda o blog da urbanista e professora de arquitetura Raquel Rolnik: . 13 Sobre incêndios em favelas, ver João F. Finazzi, “Não acredite em combustão espontânea”, Carta Maior, 11 set. 2012. Disponível em: . 14 Cf. Companhia do Metropolitano de São Paulo – Metrô, Pesquisa origem e destino 2007. Disponível em: . 15 Ver Marcos Pimentel Bicalho, “O pesadelo da imobilidade urbana: até quando?”, Carta Maior, 4 jul. 2012. Disponível em: . |
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Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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domingo, 25 de agosto de 2013
É a questão urbana, estúpido!
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