Reconhecer
o próximo é parte essencial para a própria percepção de si, já que o
"eu" só existe no contato com o outro, em um processo em que cada um
se torna interdependente
Por Rodrigo Santos Manzano *
O individualismo, ironicamente, levou
a um processo de massificação, fazendo dos seres humanos meros números
Desejos egoístas e a preocupação cada vez menor com o
bem-estar alheio são marcas de nosso atual momento histórico, um dos mais
complexos para as relações interpessoais. Isso tudo é fruto de uma época
marcada pelo individualismo. Tais atitudes, que podemos até considerar banais,
trazem consequências graves para a sociedade atual, e não é à toa que
assistimos um alto grau de violência, desestruturação nas relações familiares e
nas relações amorosas.
O culto ao “eu” é aparentemente positivo, pois é direito de
cada um buscar sua própria felicidade. Apesar disso, levado às consequências
últimas, como nos dia de hoje, faz que os seres humanos, que são destinados a
viver em sociedade, afundem num individualismo desmedido e desregrado,
solapando as bases das relações sociais. Os homens encontram-se, de uma maneira
geral, cada vez mais embrutecidos diante dos dramas alheios, porque cada um
aprendeu a cultuar seu próprio mundo, seu próprio ego. E nos esquecemos de que,
para constituir nossa personalidade, precisamos de algum contato com os outros.
Nosso modo de pensar, de agir e até de sentir, urge de nossas relações sociais.
Os conceitos de humano e humanidade revelam uma dialética e
dependência intrínsecas. Só há humanidade porque há seres humanos, mas só nos
tornamos humanos dentro desta humanidade, vivendo esta natureza, com os outros
com quem nos relacionamos. E neste processo, os alemães Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (1770-1831) e Martin Heidegger (1889-1976), com suas análises sobre a
constatação da presença, do ser que existe no mundo, e sua relação com outros
seres, ajudam a compreender melhor nossa dependência para com outros seres
humanos. Diante disso, é importante repensar as relações dos seres humanos
entre si, perceber a necessidade que uns temos dos outros, dando ao outro a
mesma importância que acreditamos necessária a nós mesmos, para que o processo
possa ser revertido.
TALVEZ UM DOS GRANDES PONTOS DA
HISTÓRIA DO PENSAMENTO HUMANO PARA O DESENVOLVIMENTO DO INDIVIDUALISMO TENHA
SIDO A DESCOBERTA DA CONSCIÊNCIA
O “EU” EM FOCO
Talvez um dos grandes pontos da história do pensamento
humano para o desenvolvimento do individualismo tenha sido a descoberta da consciência.
O primeiro filósofo a dar uma forte contribuição para esse tema foi Santo
Agostinho (354-430). Buscando expor o caminho que cada homem devia traçar para
chegar ao Sumo Bem, Deus, e assim à felicidade, Agostinho usa exemplos de sua
própria vida na mais conhecida de suas obras, Confissões. O filósofo traça os diversos
caminhos vividos por ele, experimentando as mais diversas filosofias, até
encontrar no cristianismo fortemente influenciado por Plotino da Milão do
século IV, respostas mais firmes para seus questionamentos, de forma especial
sobre a questão do mal. Seguido por ele, René Descartes (1596-1650) defendia a
certeza do cogito, único ponto inquestionável numa primeira análise e acabou
por justifiar o egoísmo, mesmo sem ter intenção, uma vez que nem mesmo a
certeza das consciências alheias me são possíveis, pois o mundo interior de
alguém é algo totalmente inatingível pela razão humana. A Fenomenologia
desenvolvida por Bertrand Russell (1872-1970) acabou afunilando ainda mais essa
posição, já que só conhecemos aquilo que as coisas nos mostram, os fenômenos
(do grego, “aquilo que aparece”) e não a coisa em si, sendo muito difícil
explicar ou mesmo conhecer a consciência alheia.
Desta forma, a individualidade e a subjetividade, conceitos
que ganharam espaço na reflexão sobre o ser humano a partir destes pensadores,
geraram seus respectivos “ismos”, ou seja, o individualismo e o subjetivismo. O
contexto econômico que surge a partir do século XVII, com o capitalismo
comercial, depois no século XVIII, com o industrial, fez que este cenário fosse
se intensificando cada vez mais, trazendo a questão da posse, da obtenção por
meio da compra, e assim, as próprias relações sociais pareceram tornar-se
mercadorias. O individualismo e o subjetivismo tornaram-se bandeiras para um
discurso de independência, mas que como facilmente notamos em nosso tempo,
ironicamente aumentou o processo de massificação e de alienação diante da
realidade, fazendo dos seres humanos meros números num processo que cada vez
mais o desumaniza.
AS RAÍZES do individualismo atual
É comum ver a postura individualista
associada aos tempos atuais, por muitos denominados como pós-moderno. O
individualismo, no entanto, surge com a Modernidade e, de acordo com Simmel -
em texto que tematiza o indivíduo e a sociedade em certas concepções da
existência dos séculos XVIII e XIX - passa por diferentes etapas. Em um
primeiro momento, o individualismo significou ter liberdade e autonomia, ainda
percebendo-se e percebendo aos outros na qualidade de homem universal, por
natureza livre e igual a todos os outros; mais tarde, ele seguiu o caminho de
criar uma singularidade e apareceu com uma nova faceta: a busca por uma
personalidade autêntica e única e o desejo de colocá-la em evidência. Simmel
distingue o individualismo do século XVIII daquele do século XIX. O primeiro
seria o individualismo quantitativo, do homem isolado, mas livre e responsável.
Já o segundo, seria o individualismo qualitativo, aquele no qual a liberdade é
uma forma de o indivíduo realizar-se em sua particularidade, ver-se como ser
incomparável. Mais do que a autonomia, nesta forma de individualismo o que se
valoriza é a singularidade.
(Esses conceitos aparecem no texto O indivíduo e a
liberdade, do sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918).)
Na relação entre duas consciências, a dialética hegeliana
demonstra a necessidade recíproca de cada uma delas no processo de
aprimoramento da consciência-de-si. Aqui se apresenta uma nova espiral, própria
do pensamento de Hegel, que leva à superação desta relação, dentro do esquema
já citado, tese-antítese-síntese. Estas etapas levam à percepção do todo e à
consciência de que o individual, o singular, é parte de um todo maior. Tentando
traduzir, é como se a consciência-de-si, ao se deparar com outra consciência-de-si,
se percebe na verdade como uma parte de uma “grande consciência”, a razão que
controla o universo, ou seja, o Espírito Absoluto. “No pensamento que captou –
de que a consciência singular é em si a essência absoluta –, a consciência
retorna a si mesma. Para a consciência infeliz, o ser-em-si é o além dela
mesma. Porém, seu movimento nela instaurou isto: a singularidade em seu
completo desenvolvimento, ou a singularidade que é a consciência efetiva, como
negativo de si mesma; quer dizer, como um Extremo objetivo. Em outras palavras:
arrancou de si seu ser-para-si e fez dele um ser.
“A solidão é o preço que temos de
pagar por termos nascido neste período moderno, tão cheio de liberdade, de
independência e do nosso próprio egoísmo”
SOSEKI NATSUME
Nesse veio-a-ser também para a consciência sua unidade com
esse universal. Unidade que para nós não incide mais fora dela – já que o
singular suprassumido é o universal. E como a consciência se conserva a si
mesma em sua negatividade, essa constitui na consciência como tal a sua
essência.” (Idem, ibidem, p. 172).
A forma como Hegel enxerga a realidade, a partir de seu
complexo totalitário, em que o objeto de sua Filoso a é a realidade como
totalidade, e cada parte como apenas um flash desta
totalidade, nos parece estranha e talvez até criticável. Como realmente pode
ser plausível uma análise que não deixa de ter um alto grau de especulação?
Além do mais, Hegel parece deixar de lado totalmente qualquer tipo de
individualidade, de singularidade, uma vez que estas são apenas momentos do
Espírito Absoluto, desta razão maior que Hegel personaliza. Tais
questionamentos, embora plausíveis e relevantes, não são tão importantes para o
objetivo deste artigo. O que realmente importa é que a análise feita por Hegel
de que a construção da consciência, e consequentemente da identidade, a partir
da dialética na relação das consciências, é algo notável e nos ajuda a entender
a necessidade da alteridade. Como foi dito anteriormente, só nos fazemos
humanos numa relação dialética com os outros seres humanos, sofrendo e
exercendo in uências na formação daquilo que somos. Só podemos nos perceber
como seres humanos, conscientes, racionais, afetivos, en m, todas as
potencialidades próprias do ser humano só se desenvolvem a partir do contato
com o outro. A partir da relação de uns com os outros nos percebemos e nos
construímos e é essa relação que gera um complexo unitário, a humanidade. Desta
forma, o estudo das relações dialéticas entre consciências, a partir do esquema
de fora para dentro e de dentro para fora foi de muita importância para o
conhecimento humano.
A DIALÉTICA HEGELIANA CHEGA AO SEU EXTREMO UMA VEZ QUE O
AUTOR DEFENDE A IDEIA DE QUE ALGO SÓ TOMA CONSCIÊNCIA DE SI NO CONTATO COM O
EXTERNO
O MITSEIN HEIDEGGERIANO
Para completar o caminho aberto pela abordagem hegeliana da autoconsciência, vejamos como um dos pais do Existencialismo, Martin Heidegger, trata a questão do outro, a partir de sua lfilosofia do ser existente.
Para completar o caminho aberto pela abordagem hegeliana da autoconsciência, vejamos como um dos pais do Existencialismo, Martin Heidegger, trata a questão do outro, a partir de sua lfilosofia do ser existente.
A filosofia heideggeriana busca analisar a existência e os
seus fatores constitutivos. Assim, buscando romper com todo idealismo e toda
Metafísica, a existência é analisada como algo que está aí, aquilo que em
alemão se definiu como dasein, o ser aí, colocado, existente, um fato. Fruto da
Fenomenologia, o Existencialismo busca trabalhar com os dados perceptíveis e
não com os dados especulativos, colocando-se numa posição crítica frente aos
fatores suprassensíveis, tão fortemente levados a sério em outras correntes filosóficas. Assim, a existência parece não ter nenhum motivo e nem mesmo um
objetivo. Porém, o ser humano é quem melhor consegue compreender-se dentro
desta lógica do dasein, porque pode refletir sobre si mesmo e sobre sua
existência. Neste processo, surge uma série de relações, uma vez que este ser
existe em um mundo anterior a si, lida com objetos alheios a si e se relaciona
com outros seres, que também são formas do dasein. E é nesta relação que surge
uma forma privilegiada de ser, pois o ápice da percepção do dasein está na
relação entre esses seres. “Do ponto de vista ontológico, o ser para os outros
é diferente do ser para coisas simplesmente dadas. O “outro” ente possui, ele
mesmo, o modo de ser da presença (dasein).
No ser-com e para os outros, subsiste, portanto, uma relação ontológica entre
presenças. Essa relação, pode-se dizer, já é cada vez constitutiva da própria
presença, a qual possui por si mesma uma compreensão de ser e, assim,
relaciona-se com a presença. A relação ontológica com os outros torna-se, pois,
projeção do próprio ser para si mesmo “num outro”. O outro é um duplo si mesmo.
(HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, Petrópolis: Vozes, p. 181)
Alteridade é “natureza ou condição do que é outro, do
que é distinto” (Dicionário Houaiss). Seu conceito parte da premissa de que
todo homem social interage e interdepende de outros homens. Assim, o “eu” só
existe em contato com o outro – e a partir do outro, da visão desse.
Os seres conscientes, que para Heidegger são a forma
privilegiada do dasein, são os que podem se perceber nesta dinâmica de
existência, se veem diante de um mundo no qual vivem, de coisas com as quais
devem interagir, e coisas estas que nos vêm às mãos pela ação de outros
humanos. Toda a existência, portanto, é marcada pela presença do outro, que
interfere, influencia, interage conosco, revelando este caráter do dasein.
“Os outros (...) são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se
consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se está.
Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um ser
simplesmente dado ‘em conjunto’ dentro de um mundo. O ‘com’ é uma determinação
da presença. O ‘também’ significa a igualdade no ser enquanto ser-no-mundo que
se ocupa dentro de uma circunvisão. ‘Com’ e ‘também’ devem ser entendidos
existencialmente e não categorialmente. À base desse ser-no-mundo determinado
pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado. O ser-em é ser-com os outros.
O ser-em-si intramundano desses outros é co-presença.” (Idem, ibidem, p. 174 –
175).
Assim, é a partir do conceito de dasein que este se torna
realidade nos seres existentes, que podem tomar consciência de sua existência,
e que se relacionam entre si, mas que são individuais. Ao contrário de Hegel,
que vê no processo de conhecimento do outro um movimento do Espírito Absoluto,
no qual cada parte se move dentro dele, o processo de Heidegger intui este ser
como algo que é realidade nos vários seres. Não existe, como nas filosofias
idealistas, um ser que se faz real nos seres. Pelo contrário, o dasein é apenas
um conceito que busca explicar a complexa realidade da existência, daquilo que
vem a ser, e que está circunscrita no espaço, no mundo e no tempo. Inclusive,
tão forte é a questão do tempo em Heidegger, que sua análise, buscando
explicitar o sentido do existir, chega à conclusão de que o ser é ser-para-amorte,
única coisa realmente garantida na existência. Assim, uma angústia será sempre
notória na existência, porque chega a ser contraditória a existência, uma vez
que a única aparente certeza que se tem nela é o seu fim. O dasein se revela como abertura, mesmo
que se busque fechar aos outros.
Assim, nasce também uma relação nesta lógica do ser-com.
Heidegger vai definir a relação com o outro pelo conceito de preocupação,
tomando a angústia que é própria da existência. E em suma, Heidegger vê a
preocupação de duas formas: uma que acaba aprisionando, alienando, pois toma do
outro o cuidado que ele deve ter consigo mesmo, como se um vivesse a vida do
outro. A outra, mais positiva, busca auxiliar na libertação, na formação da
existência, num processo de auxílio na construção do outro. “A convivência
cotidiana mantém-se entre os dois extremos da preocupação positiva – o salto
dominador que substitui e o salto liberador que antecipa.” (Idem, ibidem, p.
178 – 179).
A análise de Heidegger nos leva a refletir sobre a necessidade
de ver o outro como um ser existente e consciente de sua existência. Mesmo
sendo contrário à atribuição de um sentido à existência, Heidegger abre
caminhos para uma reflexão ética uma vez que ele percebe que os demais seres são
dependentes entre si, vendo isso como algo que é fato, não podendo ser
ignorado, mostrando que a presença é em si copresença. Em outras palavras, o
dasein é mitsein (“ser-com”,
em alemão).
* Rodrigo
dos Santos Manzano é graduado em Filosofia pela UNIFAI e professor de Filosofia
do SESI-SP e da Rede Pública do Estado de São Paulo
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