(Ou: o triunfo do maniqueÍsmo numa falsa polêmica)
"Acostuma-te à lama que te espera. O homem que nesta terra miserável mora entre feras sente inevitável necessidade de também ser fera" (Augusto dos Anjos)
Em São Paulo, região do ABC paulista, uma dentista foi assaltada. Ao
constatarem que não havia dinheiro para ser levado, os ladrões decidiram
matá-la. Um deles, menor de idade, a amarrou, encharcou-a com álcool e
ateou fogo.
"Os índices de criminalidade no Brasil são macabros. Mata-se mais em latrocínios aqui que no Iraque. E o que a mídia grande faz? Reduz tudo a uma única questão: ser ou não ser a favor da diminuição da maioridade penal." |
Os criminosos eram menores de idade e isso abasteceu os telejornais
sanguinolentos de um de seus velhos combustíveis: a diminuição da
maioridade penal para 16 anos. Outros crimes semelhantes se seguiram e
uma emissora de TV assumiu a bandeira; a revista Veja o fez de forma
implícita e o Datafolha informou que mais de 90% da população apoia.
Salvo rarísimas exceções, os jornalistas se manifestam favoráveis em
matérias jornalísticas e em programas popularescos de TV que tiram de
seus arquivos outros episódios que envolvem crimes cometidos por
menores. Por “menores” entenda-se os menores de 18 anos pobres. Os mais
abastados recebem pela mídia o tratamento de “adolescentes”.
Tudo seria apenas um debate democrático válido, não fosse um porém: trata-se de uma falsa polêmica, estéril, estúpida e inócua.
Índices
Os índices de criminalidade no Brasil são macabros. Mata-se mais em
latrocínios aqui que no Iraque. E o que a mídia grande faz? Reduz tudo a
uma única questão: ser ou não ser a favor da diminuição da maioridade
penal. Maniqueísmo boçal.
Mais:
Oto de Quadros: Maioridade penal, na edição 196 de Caros Amigos
O índice de reincidência criminal de quem sai das penitenciárias é de
70%. Diminuir a maioridade significa enviar menores para um sistema
falido para que saiam ainda piores. Ou: ainda melhores. Criminosos
melhores, no caso. Se nos detivermos especificamente em São Paulo eles
sairão com curso de treinamento e capacitação em crime.
Décadas de desumanização do sistema prisional gerido pelo Estado e
quase 20 anos de omissão e negligência dos governos neoliberais do PSDB
criaram o PCC. É possível afirmar isso de maneira inequívoca,
Sensacionalismo
Os apresentadores sensacionalistas de televisão também dizem que,
como a Justiça funciona mal, no Brasil ninguém vai preso. Mentira. Entre
os países que mais encarceram, o Brasil está em quarto lugar. Só perde
para EUA, China e Rússia. Isso prova que o aprisionamento por si só não
resolve porque está estruturalmente comprometido. Com índices ínfimos de
reabilitação, a penitenciária brasileira tem a única função de banir
por algum tempo do convívio social o cidadão que não tem dinheiro para
contratar bons advogados.
Espaço vazio não permanece vazio por muito tempo, alguém sempre o
ocupa. Nos presídios paulistas foi o PCC que, na ausência do Estado,
tratou de ocupar. Quando a experiência dá certo, invariavelmente
contamina. Isso podemos observar pelos tumultos ordenados de dentro dos
presídos para as ruas de Santa Catarina, entre outras localidades.
Aqueles que vociferam a favor da diminuição da maioridade penal
deveriam empregar a mesma fúria contra o fato de que a cada 5 segundos
uma criança morre de fome, mesmo existindo alimentos de sobra no mundo
(ver Jean Ziegler, Caros Amigos 195).
Carência
Imagino que no Brasil os sobreviventes desse infanticídio não cresçam
cercados por carinhos e regalias. Carentes de tudo, crescerão física,
mental e moralmente prejudicados para comporem a maior parte do
contingente de menores infratores que serão execrados pelas mídias
surdas aos gritos famélicos e convictas de que eles cometem crimes por
serem maus por natureza, maldade inata. A solução seria então encarcerar
mais cedo. Não há, de fato, solução alguma nisso. A maneira como os
últimos governos paulistas tratam os encarcerados é tão infame que hoje,
nos presídos controlados pelo PCC não é permitido violência sexual
entre os detentos. Ou seja, é proibido pelo partido do crime o que o
partido do governo simplesmente ignorou.
Prisões
"Enquanto isso, pela primeira vez na história um ministro da justiça brasileiro fala o que muitos pensam: preferiria morrer a ser encarcerado num presídio brasileiro. Seria um pronunciamento alvissareiro se viesse acompañhado de uma política consistente." |
Enquanto isso, pela primeira vez na história um ministro da Justiça
brasileiro fala o que muitos pensam: preferiria morrer a ser encarcerado
num presídio brasileiro. Seria um pronunciamento alvissareiro se viesse
acompanhado de uma política consistente. Ok, a maioria das casas de
detenção de São Paulo é de responsabilidade do governo estadual. Só que
isso não impediria uma campanha propositiva do governo federal para
melhorar as condições carcerárias no geral. Mesmo assim, um ministro da
Justiça que prefere a morte à execução da Justiça de seu país já é um
bom começo. Ainda mais quando esse mesmo ministro se declara contrário à
diminuição da maioridade penal por considerar, acertadamente, que a
medida fere a Constituição porque se inclui em cláusulas pétreas
Senso comum
Bem verdade que o grosso da população não sabe o que é cláusula
pétrea e não está nem aí para isso. Eles também não querem a diminuição
da maioridade penal. Se perguntados, os setores mais atrasados da
sociedade pedirão a pena de morte como certos jornalistas. O homem do
povo como modelo bom, como quer segmentos da esquerda, não existe.
Alheios aos meandros da lei, o trabalhador pobre e honesto não é um
humanista num mundo desumanizado. Sente medo, raiva e tem
como doutrinadores os repórteres policiais de quem repercutem as
opiniões simplistas.
“Tem de matar esses vagabundos”, é o que se repete nos portões e nos
bares das periferias dos grandes centros, ecoando a imprensa
sensacionalista. O trabalhador médio (assim como, aparentemente, certos
jornalistas) desconhece que a proibição da pena capital também incide
como cláusula pétrea
"Sinhô"
Mais de uma vez vi os jornalistas na TV zombarem do fato de os
menores terminarem suas frases com “senhor”. Até imitam sarcásticamente a
pronúncia distorcida: “eu não estava fazendo nada, sinhô”, “essa arma
não é minha sinhô”. Sem mencionar o preconceito linguístico, falta a
esses jornalistas explicar ao público que a causa disso é
o condicionamento animalesco a que os presos são submetidos. Do momento
em que é efetuada a prisão até o último dia de encarceramento eles devem
se dirigir a todos, carcereiros, policiais, o diretor da instituição,
etc etc pela forma respeitosa “senhor” em todas as frases proferidas.
Quando não o fazem, por esquecimento ou nervosismo, estão sujeitos a
pancadas. Acabam asimilando esse tratamento em sua linguagem cotidiana,
assim como assimilam também o ódio contido que explodirá em cima
das vítimas que encontrarão ao saírem da prisão .
Polícia
As emisoras de TV, em geral exaltam e enaltecem o trabalho dos
policiais. É fácil entender: sem o auxílio da polícia (espécie de
parceria extraoficial) seria dificultado o trabalho. Elogiar a polícia
garante o acesso irrestrito à delegacia e consequentemente aos presos,
expostos como culpados antes mesmo de julgados.
A tão decantada eficiência policial, todavia, não passa de mais um
maniqueísmo barato. Segundo dados oficiais, para cada 100 crimes
violentos cometidos em São Paulo e investigados pela polícia no primeiro
quadrimestre de 2013, apenas 5 prisões são efetuadas. A solução,
portanto, está longe de situar-se na diminuição da maioridade penal. É
necessária reorganização do sistema Judiciário, completa reestruturação
de todas as forças de repressão ao crime e a urgente humanização dos
presídios.
Autocrítica
"Se a diminuição da maioridade penal para 16 for aprovada, logo verão que não surte qualquer efeito digno de nota. Farão auto-crítica, portanto? Claro que não. " |
Isso tudo, porém, passa ao largo do que interessa aos meios de
comunicação que tendem sempre a se aliar aos setores mais atrasados da
sociedade em busca de audiência. Recusam reflexão mais aprofundada
porque o “olho por olho” é maneira bem menos trabalhosa de pensar o
mundo. Se a diminuição da maioridade penal para 16 for aprovada, logo
verão que não surte qualquer efeito digno de nota. Farão autocrítica,
portanto? Claro que não. Pedirão a diminuição da maioridade para 14, 12…
Até ser possível construir presídios nos berçários.
Desconsideram solenemente que a única saída para tão trágica questão é
abordá-la em todos seus inúmeros aspectos, numa reflexão abrangente
realizada por um leque amplo da sociedade, porque, enfim, ninguém é dono
da verdade.
A mentira, porém, principalmente no jornalismo brasileiro,
tem muitos sócios.
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