Nojento ...
Ayrton Centeno
Quando a História quer nos mostrar onde exatamente estamos ela cumpre
este papel com uma precisão e uma extraordinária capacidade de rir de
si mesma. Nem que tenha de repetir-se enquanto farsa. E onde exatamente
estamos? Ou, melhor dizendo, onde está exatamente uma classe média (e
médica) preconceituosa, insensível, egoísta e amamentada semanalmente
com doses cavalares de arsênico pela revista Veja? Obviamente não está
no Brasil, país odiado em que as empregadas domésticas agora tem —
imagine só! — até carteira de trabalho e em que a ralé elege os
presidentes. Supostamente deveria estar no futuro, onde está sua
imaginação de carrões, mansões, bugigangas hightech e
férias em Miami. Mas está, que pena, em Little Rock, Arkansas, na
frente do ginásio central da cidade. É o dia 4 de setembro de 1957 e
brancos e brancas de todas as idades vaiam Elizabeth Eckford, 15 anos:
“Dá o fora, macaca”, gritam. “Volta pro teu lugar!”, exigem. E mais:
“Vai pra casa, negona!” e ”Volta para a África!”
É o primeiro dia de aula de Elizabeth e ela encontra uma muralha de
caras hostis, crispadas, injetadas de ódio. Nervosa, abraçada a sua
pasta, procura resguardar-se junto a uma mulher mais velha, que deveria
ser mais tolerante. Erro: ela lhe cospe no rosto. Elizabeth e mais oito
colegas negros são os “Nove de Little Rock”. Foram os primeiros
escolhidos para iniciar a dessegregação racial do ambiente escolar no
recalcitrante Sul da Klu Klux Klan. Elizabeth tenta entrar na escola
mas, por três vezes, barreiras da polícia estadual travam seus passos.
Negros não devem frequentar escolas de brancos, entende o governador
Orval Faubus, do Arkansas. Pouco importa que a Suprema Corte tenha
decidido pela integração racial.
No dia 27 deste mês, a foto de um médico cubano negro cercado por
jovens médicas brancas sendo vaiado em Fortaleza, Ceará, trouxe
inevitavelmente à memória a iconografia da demolição do apartheid
no Sul dos Estados Unidos em meados da década de 1950 e começo dos
1960. Cinquenta e seis anos separam — e unem — as vaias de Little Rock e
de Fortaleza. Nos dois casos, quem empurrou as vozes gargantas afora
foi a intolerância, o medo e a mesquinharia. Com uma diferença: em
Little Rock, os alunos incomodados teriam que conviver com os novatos de
outra cor. Que ocupariam assentos que poderiam estar acomodando bundas
brancas e não negras. Um horror, portanto.
No Brasil, não há este problema. Os médicos brasileiros insultados
pela chegada dos forasteiros não precisam nem mesmo olhar as suas caras.
Cubanos, argentinos, uruguaios, espanhóis, etc., vão trabalhar e viver
num Brasil à parte. Vão trabalhar num Brasil precário que não lhes
interessa absolutamente. Vão ocupar as vagas e receber os salários que
rejeitaram como indignos de seu profundo saber e do seu projeto de vida
saudável. Vão atuar em 701 municípios que não possuem shopping centers.
Vão atuar na periferia das grandes cidades onde os
profissionais nativos não necessitarão entrar e embarrar os pneus do
carro do ano. Ficará para os estrangeiros a missão primordial de botar o
pé na lama e se aproximar daqueles brasileiros que não merecem a
atenção dos brasileiros que se formam nas melhores faculdades de
medicina do Brasil, aquelas custeadas pelo dinheiro público e
sustentadas inclusive por parte da renda dos mais pobres. Estes, enfim,
conhecerão talvez seu primeiro médico.
Que não será um brasileiro.
Elizabeth e os oito de Little Rock somente entraram na escola
apoiados pelo governo federal. O presidente Dwight Eisenhower, general
que havia combatido o nazismo na condição de comandante dos aliados na
Europa, decidiu cumprir a ordem judicial contra o apartheid de
Faubus. Mandou a 101ª Divisão Aerotransportada do Exército assegurar o
ingresso dos estudantes. E a força ajudou o direito a se impor. Que não
falte — se for preciso – a mesma determinação a Dilma Rousseff.
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