No preço decomposto do seu cafezinho emerge intermediação global,
que espolia agricultores e provoca inflação cada vez mais segregadora
Por Ladislau Dowbor | Foto: Letícia Freire
A visão que herdamos é a de que lucro se gera na empresa, que paga
aos trabalhadores menos do que o valor obtido. Isto sem dúvida é
verdadeiro, quer chamemos o valor obtido de lucro, de mais valia, ou, de
maneira mais neutra, de excedente. Não há muito a acrescentar neste
debate. O que queremos aqui focar é como este lucro se desloca na cadeia
produtiva. É cada vez menos o produtor que se apropria do resultado do
valor agregado de um determinado produto, e cada vez mais o
intermediário. Um exemplo prático, extraído do excelente estudo sobre a
aplicação de ciência e tecnologia à economia agrícola, nos dá a dimensão
do problema¹.
O gráfico acima mostra como se forma a cadeia de preços de um
produto, o café, à medida que avançamos na cadeia produtiva, desde a
produção do grão pelo agricultor, até o momento em que é transformado na
bebida que tomamos. Ou seja, a evolução do preço da porta da fazenda em
Uganda, à porta do bar no Reino Unido, desde os 14 centavos de dólar
pagos a quem produziu o café até o equivalente de 42 dólares que pagamos
no bar.
É bom seguir a evolução das colunas, que representam o valor obtido
em cada etapa: porta da fazenda, comercialização primária (trader
price), colocado no porto em Mombasa, colocado em Felixstowe no Reino
Unido, custo do produto após processamento na fábrica, preço na
prateleira do supermercado e, finalmente, o preço sob forma de café para
consumo (when made into coffee). Veja-se antes de tudo a participação
ridícula do produtor de café, que arca com o grosso do trabalho. Depois,
ao pegarmos as cinco primeiras etapas, vemos que para o conjunto dos
agentes econômicos que podem ser considerados produtivos (produtor,
serviço comercial primário, transporte, processamento) a participação no
valor que o consumidor final paga ainda é muito pequena.
O imenso salto se dá no preço na gôndola do supermercado, os Walmart
ou equivalentes em qualquer país. E outro salto se dá no ”when made into
coffee”, ou seja, quando é servido sob forma de café. O gráfico fala
por si. E os valores nas pontas, 14 centavos e 42 dólares, dão uma ideia
da deformação da lógica de remuneração dos fatores e dos agentes
econômicos.
Não há nada de muito novo nisto, todos sabemos do peso dos
atravessadores, conceito inventado justamente para dar uma conotação
negativa aos intermediários dos processos produtivos que ganham não
ajudando, mas colocando gargalos, ou pedágios, sobre o ciclo produtivo.
Mas o que queremos levantar aqui é que há um desequilíbrio muito forte
entre os esforços que dedicamos ao estudo e divulgação da variação de
preços no tempo, essencialmente a inflação, e o pouco que estudamos
sobre a variação de preços dentro das cadeias produtivas. Aparecem de
vez em quando, como no Globo Rural que apresentou produtores de tomate
no Paraná que se recusavam a vender o produto ao preço de 13 centavos
por quilo (quatro reais por caixa de 30 quilos), sabendo quanto o
consumidor pagaria na feira.
O impacto econômico deste processo é simples: do lado do produtor, o
lucro é insuficiente para desenvolver, ampliar ou aperfeiçoar a
produção, e em consequência a oferta não se expande. Do lado do
consumidor, o preço é muito elevado, o que faz com que o consumo também
seja limitado. Quem ganha é o intermediário, com margens muito elevadas
sobre um fluxo relativamente pequeno de produto.
A lógica da desintermediação, naturalmente, é reduzir os lucros
gerados no pedágio, redistribuindo esta apropriação de mais-valia entre o
produtor (que poderá produzir mais e melhor) e o consumidor (sob forma
de preço mais baixo, o que permitirá consumo maior, absorvendo assim o
fluxo maior de produtos). E o intermediário descobrirá que ao ganhar
menos sobre um volume maior, voltará a ter a sua parte do bolo sem
prejudicar a cadeia produtiva.
De onde vem este poder do intermediário de travar o processo para
maximizar o seu lucro? Um outro gráfico do mesmo estudo ilustra bem a
situação do pequeno produtor e do consumidor final frente ao “gargalo”
dos grandes intermediários:
O título do gráfico é “a concentração do mercado oferece menos
oportunidades para os agricultores de pequena escala”. Trata-se aqui
essencialmente de entender a dificuldade da agricultura familiar. O
sentido geral do gráfico, é que a ampla base na parte de baixo,
representando os agricultores (small-scale farmers) é constituída por
muitos produtores (mais de quatro milhões no Brasil), dispersos e
portanto com pouca força. Forma-se depois um gargalo logo acima, ao
nível dos traders (comercialização primária), e o gargalo se afina mais
ainda no nível dos processadores do produto, e se mantém muito
concentrado no nível dos varejistas. No nível dos consumidores, a
ampulheta se abre novamente de maneira radical, pois são milhões os
consumidores, sem nenhuma força individual para influenciar os preços.
Quando perguntamos, nos consumidores do produto final, porque o preço
subiu, nos dizem que o produto “está vindo mais caro”. Vindo mais caro
de onde?
A importância deste tipo de estudos, que aparecem apenas
ocasionalmente e em casos extremos, é que mostram onde surge
efetivamente a inflação (é o momento de “salto” radical do preço), e
portanto onde se trava também o desenvolvimento dos processos
produtivos. Temos hoje inúmeras instituições que fazem um seguimento
muito detalhado da inflação, inclusive porque é importante para o
reajuste de aluguéis, de salários e assim por diante. Mas a análise
sobre de onde vem a mudança do nível geral de preços busca os setores
que se destacam (por exemplo os alimentos) e não as variações de preços
dentro de cada cadeia produtiva.
Praticamente ninguém estuda onde o preço está sendo aumentado, em que
elo da cadeia produtiva. Os dois gráficos que apresentamos acima são
muito raros, e em todo caso nem sistemáticos nem regulares, no sentido
de formar uma imagem da evolução no tempo. E no entanto todos os dados
da composição de custos de cada produto existem, pois uma empresa
precisa deles para definir o preço final de venda. O que é necessário é
fazermos um tipo de engenharia reversa, tomando um produto final – por
exemplo um medicamento – e verificar a evolução dos custos em cada nível
de transformação e intermediação.
Isto permitiria, por exemplo, deixar mais claro o custo da
intermediação financeira nos processos produtivos, outro tipo de gargalo
que encarece muito o produto final e reduz a produtividade da cadeia.
Permitiria também estimular investimentos complementares nas áreas do
gargalo, de forma a diversificar a oferta e reduzir o efeito de
cartelização (monopsônios ou oligopsônios, no jargão econômico). Seria
um instrumento poderoso para o CADE identificar pontos de incidência
para políticas anti-truste e de defesa de mecanismos de mercado. E
melhoraria a relação de força dos produtores frente aos intermediários,
cada vez mais desequilibrada.
O que não podemos é continuar a manter esta situação em que todos
sabemos do entrave que representam os atravessadores de diversos tipos
para a dinamização da produção e do consumo, mas não se produz nenhuma
informação adequada sobre como se constrói o preço final de cada
produto. Não basta medir a inflação, temos de ver como se gera, e quem a
gera. Não é particularmente complexo comparar quanto vale no mercado
atacadista o ácido ascórbico, a popular vitamina C, com o que pagamos na
farmácia.
Em termos de dinamização do processo produtivo em geral, trata-se de
identificar os gargalos que geram lucros extraordinários sem agregação
de valor correspondente. São os elos da cadeia produtiva que inflam os
preços e travam a expansão do ciclo produtivo. Com cada vez menos
grandes intermediários atravessando as principais cadeias produtivas,
trazer um pouco de luz para a compreensão da formação da cadeia de
preços seria fundamental. As diversas instituições que hoje seguem a
inflação com tanto detalhe poderiam, sem muita dificuldade, abrir uma
janela de atividade promissora, e prestar um bom serviço para a
racionalização dos processos produtivos.
—¹ IAASTD – Agriculture at a Crossroad – International Assessment of Agricultural Science and Technology for Development – Unep, New YORK, 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário