Nascida na cidade de Santa Ernestina, interior de São Paulo, Ermínia
Maricato logo fixou residência na capital do Estado, onde iniciou seus
estudos em Arquitetura e Urbanismo, realizando graduação, mestrado e
doutorado na Universidade de São Paulo. Ao longo da sua trajetória de
reflexão teórica e enfrentamento dos problemas urbanos, ela foi
secretária de Habitação de São Paulo na gestão de Luiza Erundina e
secretária-executiva do Ministério das Cidades, tendo participado
ativamente da criação do ministério e elaboração do Estatuto das
Cidades. Em Salvador, onde veio a convite da Faculdade de Arquitetura da
Ufba, a urbanista conversou com a equipe de Maria del Carmen e falou
sobre políticas urbanas nacionais e a realidade de Salvador.
Maria del Carmen
Maria del Carmen
Como a senhora avalia as políticas urbanas atuais?
Nós tivemos até 10, 15 anos atrás, um período no qual tentamos,
conseguimos em pequena parte, implementar uma nova política urbana. Em
muitas prefeituras praticou-se governos locais democráticos e populares
coerentes com a nova escola de urbanismo, uma prática que consistia em
inverter prioridades e colocar como prioridade a cidade ignorada, onde,
como acontece em Salvador, metade da população mora. Então, no período
dos anos 80 nós vimos florescer no Brasil uma política de reforma urbana
que priorizou a população mais pobre, que deu prioridade ao transporte
coletivo, deu prioridade à segurança contra risco de desmoronamento,
enchentes, epidemias. A questão é o que aconteceu para a gente ter
passado de uma política urbana com compromisso com a justiça social para
uma política urbana arrasadora do meio ambiente, da justiça social, dos
interesses públicos e sociais, que é o que estamos vendo hoje no
Brasil. Estamos vivendo um massacre, por exemplo, dos recursos naturais
das cidades, aqui em Salvador isso é óbvio, uma subordinação de tudo à
especulação imobiliária. Estamos atravessando um período terrível para
as cidades brasileiras, que pode ser caracterizado principalmente por
três aspectos, um deles é o boom imobiliário: o Rio de Janeiro teve um
crescimento do preço do metro quadrado de 185% de 2009 para 2012, depois
do lançamento do MCMV, e São Paulo de 150%. Não há cidade que possa
conviver harmonicamente com uma explosão no preço da terra e dos imóveis
como esse, a cidade inteira empobrece, a inflação cresce
desmedidamente, e o que estamos vendo hoje é as periferias serem
deslocadas para mais longe, pois as empresas estão buscando terreno na
semiperiferia. Outro fator é o império dos automóveis: as nossas
cidades, devido à desoneração fiscal dos automóveis, estão sendo
entupidas de automóveis, todas elas apresentando problemas seríssimos de
congestionamento, com consequências muito fortes para a saúde da
população. As viagens em São Paulo duram em média 2h45, para um terço da
população é mais de 3 horas. Somando a essa invasão bárbara de
automóveis, nós temos também as obras viárias milionárias, obras
superfaturadas obviamente. Então você tem obras para o rodoviarismo e
uma política dirigida só para o automóvel, nós chegamos ao ponto de
pontes e túneis serem projetados em São Paulo só para automóveis. Isso
contraria plano diretor, mas quem liga para plano diretor nesse país?
Acho que a gente tem de perder a ingenuidade, parar de perder horas
discutindo plano diretor e fazer o que essa moçada aí mostrou que é para
fazer, que é focalizar numa conquista e ir pra luta, aqui e agora, nada
de fazer grandes planos para o futuro.
A mobilidade então é uma das questões centrais?
Você tem a luta de classes absolutamente escancaradas nas cidades
hoje, é preciso que fique muito claro a urgência de os governos
municipais investirem em transporte. Eu acho que nós estamos discutindo
uma quebra de braço, que começou em junho, acho que a gente estava
perdendo o jogo de 10x0, sem dúvida nenhuma do ponto de vista da
qualidade de vida nas cidades, e a partir das mobilizações, nós podemos
contabilizar um número enorme de vitórias, posso falar de São Paulo, que
é o que estou acompanhando, onde tivemos o cancelamento da licitação do
transporte coletivo sobre rodas, licitação que envolvia R$ 43 bilhões
nos próximos 10 anos; o aumento da tarifa foi cancelado, o prefeito
contratou uma auditoria internacional para verificar o preço da tarifa, e
conseguimos o cancelamento do túnel onde só passava automóvel e cujo
orçamento era 50% do orçamento da Secretaria de Saúde. Então cada vez
que a gente vê uma grande obra pública, a gente tem de se perguntar, o
que é prioridade? O Conselho da Cidade de São Paulo aprovou - o Conselho
é composto por todas as camadas, de empresários a moradores de rua -
que o transporte individual tem de pagar o subsídio para o transporte
coletivo, isso tá em todos os documentos do Brasil aliás, em todos os
planos, o transporte coletivo é prioritário, mas a gente não vê isso em
prática e o que acho que essa moçada dos protestos está cobrando é menos
discurso e mais operação e uma operação coerente com os planos, com as
leis que nós temos, porque não falta plano nem lei nesse país.
A Justiça revogou o PDDU aprovado em 2011 em Salvador,
principalmente sob a argumentação de que não houve debate popular. A
senhora acompanha a cidade? Como vê essa decisão?
Isso aqui é barbárie, é selvageria, o que estão fazendo em uma das
cidades mais bonitas do mundo, que tem um sítio maravilhoso. Fiz uma
palestra ontem na universidade e vi o que tenho constatado em várias
cidades, está todo mundo perplexo, principalmente os urbanistas,
passa-se por cima de leis, passa-se por cima de recurso natural... O que
é isso? Eu vi coisas abomináveis, se pusesse um só no chão, pararia
essa festa de fazer o quer, ignorar os bairros pobres... Eu acho que
isso aí não depende de MP, de judiciário, vai depender do povo e no povo
eu estou colocando, por exemplo, os urbanistas organizados, que têm de
dizer quando um edifício está colocado numa condição absurda. Sei que o
PDDU que estava vigente era terrível. Acho que agora precisa envolver um
grande debate, mas minha preocupação é a seguinte, toda hora que a
gente discute plano diretor, as coisas escapam pela costura, porque se
PDDU fosse seguido nesse país, em nenhuma cidade o transporte coletivo
estaria subordinado ao transporte privado individual como está
atualmente. Então não é também uma questão que o PDDU vá resolver, o
plano é realmente importante numa outra correlação de forças, não a
atual. Na atual, a moçada mostrou para a gente, é falar o problema agora
é a transparência da tarifa, o que é levado em conta nesse cálculo, o
problema agora são as licitações, como cada edifício consegue alvará.
Aquela coisa de colocar bares e restaurantes em cima da água do mar, eu
não consigo entender como isso foi aprovado. Esses restaurantes estão
pagando alguma compensação social? Me disseram que quando estava para
ser construído houve muita polêmica, mas agora como ficou bonito todo
mundo gosta, mas bonito para quem cara pálida? Com a consciência
ambiental e urbana que tenho isso me fere, tem prédios construídos em
cima da água em Salvador. Deram a forma de navio, podia ter dado a forma
que quisesse, isso é um absurdo, como alguém tem esse privilégio? Não
estudei a lei para saber como isso aconteceu, mas fico me perguntando,
qual a compensação que um empresário dá para colocar um comércio, um
serviço de exploração privada em cima da água do mar.
A senhora já declarou que a reforma fundiária é a questão
central da reforma urbana. Na sua avaliação quais os entraves para
implementá-la e quais as soluções para que viabilizá-la?
Paradoxalmente, quando surgiu o Minha Casa Minha Vida, o governo
federal pela primeira vez na história do Brasil aportou subsídios para
atender a população de baixa renda, mas o que vimos acontecer no país
foi uma explosão no preço dos imóveis, que acabou drenando todo e
qualquer subsídio e tornando tudo mais caro. Este ‘boom imobiliário’ que
nós estamos vivendo, teve um único aspecto positivo, que foi estender o
mercado imobiliário residencial privado para uma classe média situada
entre quatro e dez salários, que não conseguiam entrar no mercado. Mas, a
população que tá na base do déficit habitacional, que compõe mais de
80% dele, acabou não sendo a prioridade desse grande movimento de
construção, por causa do preço da terra. Porque o mercado imobiliário
tem um caráter especulativo muito forte no Brasil. Ele tem caráter
especulativo no mundo inteiro, mas, nos países periféricos do
capitalismo é muito maior. Com este aumento nos preços, acabou-se por
expulsar para uma periferia mais longínqua a população pobre: uma parte
em conjuntos habitacionais, construídos pelo MCMV, mas também mal
localizados, como na época do BNH. A maior parte dos conjuntos estão mal
localizados, o direito à cidade não foi assegurado, porque direito à
cidade exige reforma fundiária / imobiliária. Não tem outro jeito. Pra
você colocar pobre na cidade, você tem que subordinar o interesse do
capital, que é especulativo, à função social da propriedade. E isto não
aconteceu. Existe um equívoco, mesmo a esquerda não consegue entender
que distribuição de renda ou melhoria do salário não resolve problema de
quem precisa de melhor transporte coletivo; não resolve problema de
quem precisa de melhor saneamento; não resolve o problema de quem
precisa de uma casa melhor localizada na cidade; não resolve o problema
de quem precisa de melhores escolas, porque jamais o trabalhador vai
poder pagar uma escola de três mil reias. Então, a cidade é luta de
classes. A esquerda não consegue ver isso. Ou você vai dar melhores
condições de vida ou vai acabar por passar para os capitais a maior
parte da riqueza social. E é o que a gente verifica na especulação
imobiliária, nas grandes obras viárias ou quando você entope a cidade de
carro. A intenção é boa, é aumentar o emprego, é fazer frente à crise
econômica. Mas aumentar emprego com desoneração aos automóveis e
enterrar a vida nas cidades... Então os economistas precisam discutir
outra forma de crescimento econômico e do emprego. Não é esta. Esta não
dá certo. Pode ter a distribuição de renda, pode ter Bolsa Família - que
é maravilhoso - mas precisamos ter reformas. Precisamos ter reforma no
campo e na cidade. E o agronegócio, o capital imobiliário não querem
esta reforma que nós precisamos.
A senhora faz parte de um ONG de proteção à mata atlântica, como esse trabalho dialoga com as questões urbanas?
No primeiro momento, quando eu percebi o que ia acontecer com as
cidades... Começando com a entrega do Ministério das Cidades a um dos
partidos mais conservadores do Brasil, em seguida com o lançamento de
políticas que não dialogam com as políticas urbanas. A política urbana
foi se transformando em um amontoado de obras e eu me isolei, me exilei,
fui cuidar de mata atlântica. Eu entrei numa associação que está
fazendo a recuperação de uma área e ao mesmo tempo tem uma horta
orgânica, produção de ovos orgânicos... Eu montei um pomar de frutas da
mata atlântica em extinção graças a participação desses associados. Já
existem pessoas trabalhando nisso e eu pude ser privilegiada com este
conhecimento. Aí o tempo foi passando e eu percebi a emergência de
alguns movimentos de um novo tipo - eu acho que a gente tem muito pra
aprender com eles, eu acho que a esquerda tem que ter a humildade de que
sempre há coisas novas para aprender. Então aos poucos eu comecei a
voltar pra esta luta social. Um pouco sem lugar... eu acho que eu sou
uma das milhares de pessoas que gravitam em tono do PT, mas não
exatamente dentro do PT . Não acho que há melhor opção no cenário do que
a Dilma Rousseff, quero deixar isso bem claro! Porém, eu quero mudança.
E acho que uma das mudanças mais importantes que esses movimentos estão
trazendo, é a mudança do PT. É muito importante que o PT mude. Porque é
onde mais a gente investiu durante os últimos 30 anos. Investindo no
fortalecimento, na criação e discussão de políticas públicas. E eu não
não quero a direita de volta, mas não dá pra ignorar que a luta de
classes passa pelas cidades e que a luta por melhores salários não
esgota a questão da reprodução da força do trabalho. A luta na cidade é
um prolongamento da luta capital-trabalho na fábrica. Existe um capital
específico na cidade, que também explora os trabalhadores. Não só os
trabalhadores da construção dos canteiros, mas todos os trabalhadores
urbanos. Agora eu fiz um casamento da política urbana com a questão
ambiental que é uma discussão sobre as bordas da cidade, que eu
considero da maior importância, não ser esta coisa largada, abandonada,
mas ser um espaço de agricultura urbana, que atenda as cidades naquilo
que elas precisam imediatamente, que atendam a merenda escolar, que tire
uma parte das multinacionais deste cardápio. Multinacionais que fazem
alimentos com “veneno”. O Brasil hoje é o maior consumidor de agrotóxico
do mundo. Então eu estou muito ligada nesta questão de produzir
alimentos orgânicos de boa qualidade, saudáveis e anticancerígenos.
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