Para sociólogo,
capitalismo não sobreviverá à crise, mas o que emergirá é imprevisível.
Por isso, próximas décadas serão cruciais
Entrevista apor Lee Su-hoon | Tradução: Hugo Albuquerque e Inês Castilho
Em dois sentidos, pelo menos, o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerestein parece
disposto a contrariar as ideias que ainda predominam sobre a crise
iniciada em 2007. Primeiro, no diagnóstico do fenômeno. Para ele,
estamos diante de algo muito mais profundo que uma mera turbulência
financeira. Foram abaladas as bases do próprio capitalismo. Ou, para
usar um conceito caro a Wallerstein, do “sistema-mundo” que se desenhou a
partir do século 16, em algumas partes da Europa, e se tornou
globalmente hegemônico desde os anos 1800. Tal sistema teria atingido “o
limite de suas possibilidades”, sendo incapaz de sobreviver à crise
atual. Se ainda temos dificuldade para compreender o alcance das
transformações em curso é porque, presos à inércia, demoramos a aceitar
que “há alguns dilemas insolúveis”. “Nada dura para sempre – nem o
Universo”, lembra Wallerstein, um tanto irônico.
O segundo ponto de vista
não-convencional deste sociólogo – também um pesquisador de enorme
repercussão internacional nos terrenos da História e da Geopolítica –
diz respeito ao que virá, diante do eventual colapso do atual
sistema-mundo. Ele diverge dos que pensam, baseados numa interpretação
pouco refinada do marxismo, que podemos permanecer tranquilos – já que o
declínio do sistema atual dará necessariamente lugar a uma ordem
fraterna e socialista.
Não – diz Wallerstein – o
futuro está mais aberto que nunca. O declínio do capitalismo pode abrir
espaço, inclusive, a um sistema mais desumano – como sugere a forte
presença, em todo o mundo, de correntes de pensamento autoritárias e
xenófobas.
Estamos, portanto,
condenados à ação, sugere este pensador, em cuja obra destaca-se a
tetralogia “O Sistema Mundial Moderno”. Se o sentido do século 21 é
imprevisível, isso deve-se ao fato de ele estar sendo construído neste
exato momento, “em uma infinidade de nano-ações, desempenhadas por uma
infinidade de nano-atores, em múltiplos nano-momentos. Em outras
palavras, convoca Wallerstein, não se trata de prever o futuro, mas de construí-lo, inclusive em ações e atitudes quotidianas.
Para transformar,
contudo, é preciso conhecer. Talvez por isso, embora aos 83 anos e
consagrado por vasta obra teórica, Wallerstein dedica-se, em seu site,
a análises quinzenais sobre temas contemporâneos muito concretos. Boa
parte do material produzindo nos últimos dois anos traduzida e publicada por “Outras Palavras”. Entrevistado há poucas semanas pelo cientista político coreano Lee Su-hoon, ele avança no exame destes temas, muitas vezes expressando pontos de vista pouco usuais.
Indigado sobre a Europa,
onde os cortes de direitos sociais e serviços públicos parecem não têm
fim, propõe que se busque alternativas olhando, por exemplo, para a
Argentina e Malásia. Estes países saíram da crise porque contrariaram,
nas décadas de 1990 e 2000. Agora, pensa Wallerstein, o espaço para
fazê-lo é ainda maior – mas é preciso ter coragem política.
O mundo irá tornar-se
mais seguro se o Irã for impedido de desenvolver energia atômica? A
resposta é “não”, garante este professor da Universidade de Yale: o
atual Tratado de Não-Proliferação nuclear (TNP) é absolutamente
hipócrita e será cada vez mais ineficaz. Contra o que ele preconiza,
prevê Wallerstein, diversos países do Sul desenvolverão armas atômicas
nos próximos anos – inclusive o Brasil…
China e Estados Unidos
tendem a se converter em potências globais inimigas? Nada demonstra esta
hipótese, frisa ele. A despeito da retórica, e da necessidade de
satisfazer audiências locais, na prática Washington e Beijing mantêm
cada vez mais interesses em comum. A entrevista completa, publicada pelo
ótimo jornal sul-coreano Hankioreh, vem a seguir. (A.M.)
Lee Su-hoon:
Você disse: “Nos próximos 50 anos o mundo vai mergulhar em uma
turbulência econômica séria e, mais tarde, o capitalismo vai enfrentar
uma crise tremenda, como a da Grande Depressão”. As pessoas dizem que a
crise se deve à ganância de Wall Street e à bolha imobiliária etc. Como
você analisa essa crise?
Wallerstein:
Faz cinco anos que eu não mudo de opinião. Basicamente, a meu ver,
estamos em uma crise estrutural da economia capitalista mundial desde os
anos 1970, e ela vai continuar. E não vai ser totalmente resolvida até
talvez 2040 ou 2050. É difícil prever a data exata, mas vai levar muito
tempo. No momento, o sistema mundial está bifurcado. Tem problemas de
tal magnitude que não poderá sobreviver, está tão longe do equilíbrio
que não há como voltar atrás. Mas para onde ele vai é totalmente
incerto, porque, como disse, essa bifurcação significa que,
tecnicamente, há duas formas de resolver uma mesma equação, o que não é
normal.
Em linguagem leiga,
isso significa simplesmente que o futuro sistema mundial, ou sistemas
mundiais (porque não sabemos se haverá um só) que vai ou vão surgir no
final desse processo podem ter, no mínimo, duas variedades fundamentais.
Assim, não se pode prever qual sistema teremos, porque ele vai ser uma
consequência de uma infinidade de nano-ações, desempenhadas por uma
infinidade de nano-atores, em múltiplos nano-momentos – e ninguém é
capaz de elaborar tanta coisa. Mas vai acontecer. Então, aqui estamos
nós, no meio de tudo isso. É caótico, como se diz.
E o que significa dizer
“É caótico”? Significa que as flutuações são enormes e, portanto, há
incertezas inclusive no prazo muito curto. Isso significa que uma pessoa
que preveja qual será a relação entre o iene, o dólar, o euro e a libra
dentro de um ano será alguém muito corajoso. Não há como saber. Mas os
empresários precisam dessa informação. Eles têm de ter o mínimo de
estabilidade, do contrário correm o risco de sofrer perdas enormes. Isso
os deixa paralisados, com muito receio de se envolver em qualquer tipo
de investimento, uma das coisas que está acontecendo no mundo todo. É
por isso que o desemprego explodiu. E é também por isso que os governos
estão em tal dificuldade financeira, pois sem essa produção adicional
não há receitas fiscais, e sem receitas os governos passaram a sofrer um
grande aperto. E então o desemprego aumenta, o que coloca mais pressão
sobre o governo. É o que acontece hoje em praticamente todos os países
do mundo. Os governos têm menos dinheiro e enfrentam demandas para
gastar mais. Isso, naturalmente, é impossível: não se pode ter menos e
gastar mais. Então, eles vêm com tudo quanto é tipo de solução. Nenhuma
parece funcionar. É onde nos encontramos atualmente.
Lee: E
muitos países europeus estão enfrentando uma crise fiscal, uma espécie
de moratória, o que os leva a tentar obter ajuda da UE (União Europeia) e
do BCE (Banco Central Europeu).
Wallerstein:
Os europeus têm um problema básico. Possuem pelo menos nove moedas, e
17 países compartilham o euro. Mas não têm um governo federal. É uma
situação muito complicada, pois significa que os governos não podem
intervir em sua própria moeda. Uma dos instrumentos que os governos
utilizam tradicionalmente para lidar com suas dificuldades é aumentar ou
diminuir o valor da moeda. Ao diminuir o valor da moeda pode-se vender
mais; aumentando o seu valor, pode-se comprar mais. Os países da zona do
euro não têm essa opção, porque nenhum país tem moeda própria. E eles
estão enfrentando os mesmos problemas de todos os outros. Ou seja,
exigências crescentes, porque o aumento do desemprego gera mais demandas
sobre o governo. Ao mesmo tempo, a receita do governo diminui, porque
não há empregos.
Sua única opção (da
Grécia, Espanha, Portugal ou Irlanda) é obter ajuda, algum tipo de
solidariedade. Então eles se deparam com a relutância, por parte dos
países mais ricos, em “salvar” os mais pobres. Isso não leva em conta o
fato de que o único e maior beneficiário da zona do euro é, de fato, a
Alemanha. E é justamente o país que está fazendo o maior estardalhaço
sobre não querer ajudar outros países, a menos que façam X, Y ou Z –
medidas que, na verdade, só pioram a situação. Essa é a questão da zona
do euro. É o problema enfrentado por todo o mundo, acrescido do fato de
que esses países não podem manipular individualmente suas próprias
moedas. Mas o problema básico não é diferente daquele dos EUA, da
Rússia, do Egito ou de qualquer outro lugar onde haja aperto.
Lee: Aqui
na Coreia, os especialistas e a mídia apresentam dois argumentos
diferentes. A Irlanda, a Grécia e outros gastam muito dinheiro em
benefícios sociais – essa é uma linha de argumentação. A outra é o
efeito de contágio, por causa da facilidade de migração na zona do euro.
Wallerstein: Vamos
lidar com os dois argumentos. O primeiro é “a Grécia está em apuros
porque exagerou no bem-estar social”. Isso é exatamente o que o Partido
Republicano diz sobre os EUA. É um mesmo argumento para todo o mundo,
não um argumento especial para a Grécia. A reação das forças mais
conservadoras a essa crise é dizer “corte benefícios”, o que significa
“reduzir os gastos do governo”. Mas se você cortar benefícios reduz
também o poder de compra das pessoas. Cria assim uma demanda menos
eficaz. Por exemplo, uma pessoa que fabrica camisetas, ou algo assim,
tem menos clientes. De forma que essa não parece ser a solução. Para
mim, só piora o problema. De qualquer forma, a questão é que não é um
problema específico da Grécia, da Espanha ou de Portugal. É um problema
de todos os países.
Agora, o efeito de
contágio. O que acontece é que, como os governos estão sem recursos,
precisam de dinheiro emprestado. E para obter esse dinheiro, dependem do
mercado. As pessoas emprestam dinheiro com mais facilidade quando veem
possibilidades de obter reembolso. Então há, sim, um efeito de contágio
na Europa: a Grécia começa a ter problemas, Portugal e Irlanda começam a
ter problemas, e Espanha e Itália começam a ter problemas. E agora é a
França que está se metendo em encrencas, e depois a Holanda e a própria
Alemanha. É o efeito de contágio, em parte criado pelas agências de
classificação de risco – que não são neutras –, mas também um problema
muito real. O efeito de contágio vai da Europa para os EUA, e da Europa
para o resto do mundo. Vai deixando as pessoas paralisadas. Isso
significa que, quando veem as coisas indo tão mal, dizem “bem, pode dar
errado em outros lugares também, portanto, não vamos emprestar o
dinheiro”, ou “vamos exigir taxas de juro mais elevadas”.
Mas se tomamos o
dinheiro emprestado a taxas de juros mais altas, sobra ainda menos
dinheiro para gastar em outras coisas. Esse é exatamente o problema
mundial. Então, novamente, não vejo isso como um problema especialmente
europeu. A questão na Europa, no momento, é saber se as forças que
dizem ”os países europeus estariam em situação melhor se não houvesse
euro” conseguirão aboliro euro e voltar para suas moedas nacionais. Há
um certo movimento nessa direção, tanto da direita como de alguns
setores de esquerda.
A esquerda europeia não
gosta do fato de que Bruxelas, com tanta influência, tenha um viés
neoliberal tão forte. Diz-se (em alguns países escandinavos e mesmo na
França): “estaríamos melhor se estivéssemos livres do controle de
Bruxelas”, em oposição ao ponto de vista ainda dominante – o de que o
euro fortalece a posição europeia frente ao resto do mundo e, mais
especificamente, frente aos Estados Unidos.
Está acontecendo uma
luta política, não há dúvida. Tendo a acreditar que, em geral, deve-se
separar a retórica política da realidade e das pressões geopolíticas. A
retórica política é em geral uma resposta a uma circunstância política
imediata de um país. Se a chanceler Angela Merkel diz certas coisas na
Alemanha, não é necessariamente porque ela acredita naquilo, mas porque,
na próxima eleição, que pode ser muito em breve, ela julga que com isso
ganharia votos. A mesma coisa vale para Obama. Vale também, tenho
certeza, para o presidente da Coreia. Os políticos têm de se preocupar
com a próxima eleição. Isso não significa que: (a) eles querem realmente
dizer o que falam, e (b) o que dizem tem importância. Não acho que
importe muito.
Ainda que, numa
situação muito volátil, a estupidez possa prevalecer. Em geral, o que
acontece é decorrente de pressões geopolíticas. Então, penso que a
pressão para manter o euro, os benefícios em termos de geopolítica, são
muito maiores do que a pressão para voltar às moedas individuais.
A chanceler Merkel está
dizendo às pessoas, em toda a Europa, “deixem-me fazer isso, e então
terei cacife político para convencer os políticos e eleitores alemães a
me acompanhar”. Penso que a Europa vai concordar com um aumento do
federalismo, ainda que não chamem isso de federalismo, porque não gostam
dessa palavra. Mas um fortalecimento do poder central e, em
consequência, um aumento do fluxo de dinheiro. Nos EUA, um estado como o
Mississippi só não vai à falência porque o governo federal pode
redirecionar dinheiro para lá. É disso que a Europa precisa. É isso o
que querem realmente dizer as pessoas que estão clamando por
“solidariedade”.
Se você me pedir que
faça previsões, penso que a probabilidade de vermos, em três anos, não
apenas um euro, mas um euro fortalecido, é muito maior do que o
contrário. E algum tipo de mecanismo que permita enfatizar menos a
prosperidade e mais a volta de recursos, ter o dinheiro fluindo
novamente, é a única solução de curto prazo para os problemas europeus,
assim como para os dos EUA.
Lee:
Gostaria de acrescentar algo em sua análise da situação da zona do
euro. Você mencionou os países escandinavos, que são mais fortes em
termos de benefícios sociais. São os que mais gastam com bem-estar
social e os que pagam mais impostos. Mas não estão em crise, embora se
argumente que o chamado “populismo do bem-estar” social é inteiramente
errado.
Wallerstein: Sim,
evidente. Isso pode ser demonstrada de várias maneiras. É claro,
existem cinco países nórdicos diferentes, cada um com uma situação um
pouco diferente, inclusive aqueles que estão e aqueles que não estão na
zona do euro, e os que estão e os que não estão na OTAN. Mas, em geral,
você tem toda a razão ao dizer que aqueles cinco países nórdicos ainda
são estados de bem-estar fortes, com impostos relativamente altos.
Lee: Sim,
na verdade o problema fiscal da Europa é um problema mundial. Quando
você olha para países específicos, há diferenças. Em alguns países, a
corrupção é mais grave do que em outros.
Wallerstein: Vamos
nos deter um pouco na corrupção. Penso que a corrupção é mais grave nos
EUA, na Grã-Bretanha, na França e na Alemanha, do que em alguns casos
de países muito citados em todo o mundo. Eles são fichinha, perto da
corrupção real. Temos escândalos o tempo todo nos EUA, França e
Grã-Bretanha. Quando você se depara com esses escândalos, de repente
descobre que se trata de trilhões de dólares. Já quando ocorre algo do
tipo em Myanmar ou no Iraque, por exemplo, estamos lidando com milhões,
nem sequer com bilhões de dólares.
Assim, a corrupção é
uma arma deveras etnocêntrica. Os países do Norte tendem a dizer que os
do Sul são imorais, porque são corruptos. Mas não dizem que somos
imorais porque somos corruptos. A corrupção é geral em nosso sistema. É
geral porque, se você tem um sistema em que o principal objetivo é a
acumulação de capital, a corrupção é simplesmente um aluguel que as
pessoas que estão no lugar certo cobram, da acumulação sem fim do
capital. Dizer que “eles não deveriam” é uma posição moral correta, mas
retórica, porque eles irão até onde der, já que a opinião pública não
gosta de enxergar a corrupção. E talvez uma ou duas pessoas sejam presas
por um tempo relativamente pequeno, mas, basicamente, nada mais é feito
contra a corrupção. Quando foi a última vez que uma pessoa corrupta
dessas foi mandada para uma prisão de verdade, por um período realmente
longo e teve de devolver todo o dinheiro que levou? Isso simplesmente
não acontece.
Lee: Quando
ouvi o discurso de feito por Obama ao se candidatar à reeleição, anotei
o que ele apresentou como receitas para salvar os EUA dos tempos
difíceis: criar mais postos de trabalho na indústria, reconstruir a
classe média, enfatizar a educação, cortar tributos sobre a riqueza, uma
nova política energética, a redução das importações e benefícios
sociais que incluíssem assistência médica – um tema sempre muito
controverso nas eleições norte-americanas. Mas eu me surpreendi ao ouvir
as mesmas coisas dos candidatos presidenciais aqui na Coreia do Sul.
Claro, a Coreia tem uma situação peculiar: a divisão da península, razão
pela qual a questão da paz e a questão nuclear são importantes. Fora
isso, os programas e políticas socioeconômicas eram mais ou menos
idênticos. Isso me levou a pensar se a Coreia do Sul seria como os EUA
socioeconomicamente. Cerca de vinte anos atrás a Coreia do Sul foi
saudada como modelo para os países de Terceiro Mundo, uma vez que
alcançou o crescimento econômico com relativa igualdade. Mas após as
crises de 1997 e 2008 a Coreia do Sul revelou-se muito parecida com os
EUA, e então as receitas políticas são quase idênticas nos dois países,
penso eu.
Wallerstein:
Bem, não discordo. Dentre os países mais ricos do mundo, a Coreia do
Sul não está no topo, mas não está muito mal. As opiniões sobre o
bem-estar social parecem estar divididas entre os conservadores e as
pessoas de esquerda. Mas penso que, na verdade, a divisão pode ser mais
ampla. Quando se olha para o papel do governo nos países mais pobres do
mundo, ainda há a questão de quanto eles têm de benefícios sociais. Uma
das coisas que o neoliberalismo, como um movimento atuante desde os anos
1980, tem prescrito para os países do Sul é: “Vejam, ocês têm todos
esses problemas econômicos. Querem emprestar dinheiro de nós? Então
reduzam os benefícios sociais, porque isso é dinheiro jogado fora”. A
teoria age como uma força conservadora contra o governo local, que está
atuando mais à esquerda. É o mesmo tipo de debate.
Você se lembra da
chamada ”crise da dívida asiática” de 1997? De repente, uma série de
países do Leste e do Sudeste da Ásia se viu encrencado economicamente.
Ou seja, o dinheiro desapareceu. Os governos viram-se em apuros. Alguns
buscaram ajuda, dizendo: “emprestem-nos dinheiro.” E esses governos
contaram que a resposta recebida em geral foi: “emprestar dinheiro para
vocês? Sim, desde que façam assim e assado”.
O único país que se
recusou a tomar dinheiro emprestado nesses termos foi a Malásia — e ela
foi o que se recuperou mais rapidamente, por ter recusado. Ao aceitar as
exigências, a Indonésia provocou a queda de Suharto. E eu gostaria de
citar este episódio. Trata-se de uma famosa atuação de Henry Kissinger,
um político reconhecidamente de direita. Após a queda de Suharto, ele
escreveu: ”como vocês (FMI e governo dos EUA) podem ser tão estúpidos?
Vocês prescrevem para o governo de Suharto medidas que provocam sua
queda e colocam, no seu lugar, um governo à esquerda dele. É mais
importante manter Suharto no poder do que negar-lhe dinheiro. Vocês não
entenderam suas prioridades. A prioridade é geopolítica, e não
econômica”. Ele os repreendeu por fazer o que vinham fazendo há dez ou
vinte anos em países menos importantes que a Indonesia.
A Coreia ficou no meio,
tendo em vista o modo como respondeu. Teve uma atuação melhor do que a
dos países que se entregaram completamente ao FMI, mas não tão boa
quanto a da Malásia. Uma das coisas que se aprende com isso, e depois do
que aconteceu na Argentina, é que esses países têm mais poder
geopolítico do que acreditam ter e são mais capazes de reagir contra
agências tipo FMI. Naturalmente, o FMI e o Banco Mundial aprenderam a
lição. E começaram a falar em programas contra a pobreza. De repente,
sua linguagem mudou, como resultado da crise da dívida asiática, porque
se deram conta daquilo que Kissinger estava lhes dizendo: precisam ser
mais astutos politicamente; não podem ser estritamente econômicos em
suas exigências.
Lee: Na
convenção do Partido Democrata norte-americano deste ano, Joseph Biden
afirmou, repetidamente, que “os EUA não estão em declínio”, e Obama
disse que “os EUA são um país do Pacífico”. Isso pode ser interpretado
como um retorno dos EUA à zona asiática do Pacífico, inclusive sugerindo
a contenção da China.
Wallerstein:
Aqui há duas questões. Uma delas é afirmar que os EUA não estão em
declínio. A outra é o que eles estão tentando fazer com essa ênfase na
Ásia e no Pacífico.
“Os EUA não estão em
declínio” é um mantra nos Estados Unidos. Nenhum político pode dizer que
os EUA estão em decadência. Na verdade, todos eles se esforçam para
negar essa realidade, porque a população dos EUA não está preparada para
aceitar o fato de que os EUA não são mais o “Número 1”, um exemplo
admirado no mundo inteiro. Eles não vão dizer isso publicamente. É uma
pena porque, a meu ver, uma das coisas importantes é tornar a população
dos Estados Unidos mais consciente da realidade geopolítica e do fato de
que os EUA são um país muito forte – mas não mais, em nenhum sentido,
acima dos demais. Há vários países com avaliação melhor que os EUA em
determinadas questões. E a capacidade de os EUA para influenciar a
situação em várias partes do mundo diminuiu enormemente. Então, penso
que é preciso separar a retórica política da realidade política.
E agora, o que os
Estados Unidos estavam fazendo na Ásia? A primeira coisa a notar é que
os EUA não têm força econômica e militar suficiente para engajar-se por
completo, como costumavam, na Europa e na Ásia. Se eles dizem
publicamente “vamos estar fazer isso na Ásia”, querem dizer ao mesmo
tempo que não vão fazer isso na Europa. Isso não está sendo ignorado
pelos europeus. Está sendo ignorado pela opinião pública dos Estados
Unidos. Ou seja: isso, em parte, é admitir o declínio.
Agora, a segunda parte
é ”conter” a China. Os comunistas chegaram ao poder em 1948. A China não
tem sido politicamente popular nos EUA. A Guerra da Coreia, entre o
Norte e o Sul da península, foi também uma guerra entre os EUA e a
China. Não a denominamos assim, mas essa é a realidade. E a linha de
armistício não é tão diferente da linha anterior à guerra. Considero que
houve um empate militar entre a China e os EUA. Nenhum dos lados
ganhou. No entanto, a retórica era muito forte nos dois lados, China e
EUA denunciando um ao outro de todas as maneiras possíveis, até que
Nixon foi à China, guiado por seus instintos geopolíticos e os de Henry
Kissinger. A combinação era bastante forte. Ambos eram muito cínicos e
muito inteligentes. Naquele momento, a China travava uma grande disputa
com a União Soviética. Tinham um terreno comum. Uniram-se contra a União
Soviética, é simples assim.
Agora, a Guerra Fria
acabou, e a União Soviética não existe mais, e há algo chamado Rússia,
que é o mesmo país e ao mesmo tempo um país extremamente diferente. A
China ficou mais forte do que era antes – militarmente e economicamente.
Mas não se deve exagerar. A China está se afirmando geopoliticamente
como líder da Ásia. Mas, trinta anos atrás, ninguém na África ou na
América Latina pensava na China. A China simplesmente não fazia parte da
cena. Agora, mudou. A China ambiciona ser uma potência, e uma potência
mundial precisa interessar-se por todas as partes do mundo, da mesma
forma que os EUA e a Grã-Bretanha, que são potências mundiais, estão
interessados em todas as partes do mundo. Nesse sentido, a União
Soviética era uma potência mundial.
A China e os Estados
Unidos têm muitas diferenças sobre questões imediatas, e esfregam isso
na cara um do outro, de modo errado, de tempos em tempos. E atualmente
há um monte de difamadores da China nos EUA. Os políticos gostam de
culpá-la por tudo. Isso irrita os chineses, mas é um jogo. Se você olhar
para a realidade das políticas dos Estados Unidos e a realidade das
políticas chinesas ao longo dos últimos trinta anos, verá que eles nunca
fizeram nada que ultrapassasse os limites um do outro. Têm sido muito
cuidadosos em manter boas relações geopolíticas.
Então, não considero
tão significativa a nova ênfase dos EUA na Ásia e no Pacífico. Primeiro,
vejo isso como um show de retórica, em parte para os EUA e em parte
para os outros países da Ásia, porque há que se preocupar com a Coreia
do Sul, Japão, Vietnã e Filipinas. Estes países são ambivalentes com
relação aos EUA. Eles gostam dos EUA, porque Washington os ajuda em
certas coisas. Por outro lado, não querem realmente os EUA. Então, têm
relações complicadas. E os EUA sentiram que precisavam reassegurar a
esses aliados que não os haviam excluído da cena completamente. Não acho
que seja mais do que isso. Penso que, quanto a isso, os dois lados não
vão cruzar a linha, a não ser a linha retórica, no máximo.
Agora, a península
coreana é de fato uma das questões cruciais nas relações EUA-China,
porque temos um país chamado Coreia do Norte e outro chamado Coreia do
Sul. Ambos são muito coreanos, e o nacionalismo coreano é muito forte. A
pressão geopolítica pela reunificação é enorme. E agora os EUA e a
China têm de se preocupar com isso. Se as tropas americanas tiverem que
sair, isso significa que a Coreia reunificada possuiria armas nucleares?
E se eles tiverem armas nucleares, o que os japoneses diriam sobre
isso? E Taiwan? Penso que a pressão para nuclearizar, para acabar com a
abstenção de armas nucleares na Coreia do Sul, no Japão e em Taiwan é
muito forte. Não acho que os EUA estejam felizes com isso. Nem a China. O
que leva à aproximação, não ao distanciamento dos EUA e da China. E
ambos estão tentando descobrir, “podemos parar este processo?”
Não posso enxergar o
que têm em mente, mas suspeito que isso está no topo da sua lista de
preocupações. O fato é que eles antecipam, não que a Coreia do Norte vá
se desnuclearizar, mas que a Coreia do Sul, o Japão e Taiwan venham a se
nuclearizar. Se você me pedir novamente uma previsão, diria que em dez
anos, todos eles estarão nuclearizados. E não acho isso desastroso. O
fato de os EUA e a União Soviética terem, ambos, armas nucleares, foi um
fator importante para garantir que não haveria guerra entre eles. Foi
uma coisa positiva, e não negativa.
Agora, é claro, com
armas nucleares existe sempre a possibilidade de desastre. As armas
nucleares estão em determinado lugar, sob um comandante militar. Ele
pode apertar um botão qualquer e dispará-las. Nossa aposta é que ele,
como indivíduo, irá obedecer ao comandante-em-chefe do seu país. Em 999
das vezes, é possível contar com isso. Mas há sempre uma chance em mil
de haver um oficial descontrolado. Ademais, é bem verdade que, havendo
mais armas nucleares no mundo, as pessoas podem roubá-las. Isso vem
sendo discutido com relação ao Paquistão. Continua-se a dizer: ”Você
sabe, o Paquistão tem de 70 a 80 armas nucleares e bombas” e “Será que
os lugares onde estão armazenadas são realmente bem protegidos?”,
“Alguém, afiliados à Al Qaeda ou talvez a outro grupo, poderia atacá-los
e roubá-los?”
Assim, não excluo o
potencial negativo da nuclearização generalizada. Mas não penso que isso
significa que o Irã irá bombardear alguém. Na verdade, os governos usam
as armas nucleares como um mecanismo de defesa, e não um mecanismo
agressivo. Usam como um modo de se safar de ser bombardeados. Os EUA
foram para o Iraque não porque ele tinha armas nucleares, mas porque ele
não tinha. Os EUA sabiam que, portanto, Bagdá não poderia responder com
uma arma nuclear.
Penso que essa é a
lição que o Irã e a Coreia do Norte tiraram imediatamente do que
aconteceu no Iraque. Na verdade, do ponto de vista da Coreia do Norte,
essa é a única proteção real que eles têm militarmente, no momento.
Minha previsão é de que, em dez anos, todos os países da Ásia Oriental
terão essas armas. E também muitos outros países, como Brasil e
Argentina. Suécia, Egito e Arábia Saudita as terão. Sempre pelas mesmas
razões: para evitar de ser bombardeado pelos outros.
Lee: E se todo mundo desistisse das armas nucleares, inclusive aqueles que já as possuem?
Wallerstein: Isso
seria o ideal, se você considera possível convencer os EUA ou o
Paquistão, Índia, Israel, França e Grã-Bretanha. Mas não há política que
possa persuadir esses países a reduzir os armamentos nucleares a zero.
Você poderá persuadi-los a reduzir o número de bombas que têm, em certas
condições. Mas voltar a zero não seria prático. Pela simples razão de
que é difícil verificar se os outros estão de fato reduzidos a zero. Há
muitas maneiras de esconder essas coisas. É por isso que eles não vão
aceitar.
Mas essa é a razão
porque o tratado de não-proliferação nuclear é uma farsa, pois
basicamente o que ele diz é que ninguém deve possuir armas nucleares,
exceto os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. O
resto de vocês, o mundo todo, deve renunciar a qualquer tentativa de ter
armas nucleares, e em troca disso nós prometemos duas coisas: (1) vamos
reduzir significativamente o nosso estoque, e (2) vamos permitir que
você desenvolva a energia nuclear para fins pacíficos.
Desde que o tratado
entrou em vigor, não houve uma redução significativa, e agora todo o
mundo está falando novamente em renovar e expandir. Os três únicos
países que se recusaram a assinar o tratado são a Índia, o Paquistão e
Israel. E isso agora está praticamente aceito. Eles desafiam o mundo,
desafiam todas as regras, e agora são membros do clube. Os EUA têm boas
relações com os três países, e nenhum foi penalizado por ter armas
nucleares.
Lee: Então, o que você diz sobre a nossa tentativa de persuadir a Coreia do Norte a desistir das armas nucleares…
Wallerstein: É que é impossível. Se eu estivesse dirigindo a Coreia do Norte, certamente não concordaria.
Lee: Se for esse o caso, acha que o impasse atual entre os EUA e a Coreia do Norte vai continuar? E o que dizer da China?
Wallerstein: Mais
uma vez, há a retórica e a realidade. De fato, os diplomatas
norte-americanos sabem, todos, que essa proibição é impossível. Mas não
sabem o que fazer. Eles certamente não podem dizer, por razões políticas
internas, que “não há esperança”. Então imaginam que, colocando pressão
sobre a China, estão, por tabela, pressionando a Coreia do Norte. E
usam um mecanismo de retardo, não um mecanismo sério. Os militares dos
EUA dizem “não vamos enviar tropas ao Irã em hipótese nenhuma”. Por
outro lado, os EUA estão comprometidos com Israel e Israel, por sua vez,
está dizendo: “Temos que bombardear o Irã”. Então, o que fazem os EUA?
Operam com seu mecanismo de retardo. Isso reflete as limitações
essenciais do poder dos EUA, o que revela parte de seu declínio. Houve
um tempo em que eles não precisavam retardar. Houve um tempo em que
podiam tomar decisões fortes sobre outros países. Já não podem. Aqui
estamos. Separemos a retórica da realidade geopolítica.
Lee:
Isso deixa muitos coreanos progressistas, que são-aliança,
pró-negociações, pró-diplomacia, pró-processo de paz, muito pessimistas.
Wallerstein: Por
que? Há muitos possíveis acordos entre as Coreias do Norte e do Sul, a
começar pelas questões econômicas. Veja, se você está no comando de um
regime como o da Coreia do Norte, tem que levar em conta a realidade
geopolítica. Por outro lado, quer permanecer no poder. Até agora, eles
contaram com um regime de mão pesada, muito repressivo, e o apoio do
exército. Podem tentar continuar a reprimir a maioria, os famintos,
podem tentar ludibriá-los com a ideologia, tentando fazê-los acreditar
que vivem maravilhosamente bem. Mas hoje é cada vez mais difícil
fazê-los acreditar nisso. Então é preciso dar-lhes um pouco de bem-estar
social – o que significa que deve haver algumas mudanças na política
econômica da Coreia do Norte, na linha das que foram feitas pela China e
Vietnã. Tanto a China quanto o Vietnã mostraram a eles um modelo, no
qual um partido único pode permanecer no poder e ainda assim promover
uma abertura econômica. E acho que o novo líder está tentado pela idéia,
mas é um caminho difícil. Ele tem as mesmas dificuldades em negociar
com o seu público interno que a chanceler Merkel tem, que Obama tem, e
certamente todo o mundo precisa se preocupar em manter a retórica
satisfatória, internamente. Assim, ele pode ser capaz de ter algo
equivalente ao que os chineses fizeram, como as Zonas Econômicas
Especiais.
Lee: Se
você fosse o presidente da Coreia do Sul, interessado em desenvolver
boas relações com a Coreia do Norte, se esforçaria mais para ajudá-la
nesse esforço?
Wallerstein:
Se eu fosse o presidente da Coreia do Sul é o que eu faria, até onde
fosse politicamente possível. Você precisa assegurar um equilíbrio,
mantendo o poder político na sua base e as demandas geopolíticas. Mas
penso que esse vai ser o caminho a seguir. Sei que a resposta das forças
mais conservadoras na Coreia do Sul seria dizer ”bem, nós tentamos uma
política de diálogo e não funcionou.” E a resposta é ”sim, não
funcionou, em parte porque os tempos eram diferentes, o líder era
diferente, com uma atitude diferente. E em segundo lugar porque as
coisas foram feitas sem entusiasmo. Talvez a gente tenha que fazer ainda
mais.” Esse tipo de debate acontece o tempo todo na política.
Lee: Tocamos
em muitas questões hoje. Uma última questão é sobre o capitalismo
fundamentalista. Depois da crise de 2008, houve uma volta à abordagem
keynesiana do mercado. Pessoalmente, acho que eles não estão certos, mas
isso levanta a questão do futuro do capitalismo.
Wallerstein: Algumas
reformas vão resolver esse problema. Mas as pessoas estão muito
reformistas na sua abordagem dos problemas. É muito difícil para elas
aceitar o fato de que há alguns dilemas insolúveis. Quando digo que
alguma coisa é insolúvel, elas dizem “oh, nós gostamos do seu argumento até aqui, mas esse ponto nos incomoda.”
Os sistemas têm vida. Nenhum sistema dura para sempre. Seja o universo,
o maior sistema que possamos conhecer, ou o menor dos nano-sistemas que
não podemos ver, nenhum deles vai durar para sempre. Em sua vida, os
sistemas se movem gradualmente para mais e mais longe do equilíbrio até
atingir um ponto em que já não podem equilibrar-se novamente. E nós
somos um sistema. É o chamado sistema mundial moderno. Foi um sistema
bem sucedido, mas atingiu o limite das possibilidades. Quando comecei a
dizer isso, trinta anos atrás, as pessoas riam. Agora elas não riem,
argumentam contra. Já é um progresso. Penso que daqui a vinte anos as
pessoas vão estar bem conscientes disso. Pelo menos assim espero, porque
é muito difícil empenhar-se em políticas inteligentes para tentar
empurrar o mundo para a direção certa, sem que se esteja ciente da
realidade.
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