Fotos: Wikipedia (Tancredo) e twitter (Chávez)
por Conceição
Lemes
Nessa
quarta-feira 9, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela anunciou
que é legal adiar a posse do presidente Hugo Chávez, prevista para
hoje.
“O
Poder Executivo, constituído por presidente, vice-presidente,
ministros e demais órgãos e funcionários da administração,
seguirá exercendo cabalmente suas funções com fundamento no
princípio da continuidade administrativa”, afirmou a presidenta da
principal Corte venezuelana, a juíza Luisa Estella Moraes. “Não é
necessária nova cerimônia de posse de Chávez em virtude de não
haver interrupção no exercício do cargo.”
Os
antichavistas, lá e aqui, inclusive a mídia brasileira, continuam
dizendo que é golpe à Constituição. A oposição
venezuelana quer a convocação de novas eleições.
“Essa
mesma imprensa brasileira que hoje acusa o chavismo de golpe na
Venezuela saudou como grande vitória da democracia brasileira a
posse do Sarney, após a morte do Tancredo”, põe o dedo na ferida
o deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP). “‘Esquece’ que os
militares botaram o pé na porta e vetaram a posse do Doutor Ulisses
e a convocação de novas eleições, que eram as saídas
constitucionais.”
Em
25 de abril de 1984, a emenda das eleições diretas para presidente
do Brasil foi rejeitada pela Câmara Deputados devido à manobra de
políticos aliados do regime militar. Cento e doze deputados não
compareceram ao plenário para votar, impedindo que se alcançasse o
número mínimo de votos. Foram 298 votos a favor, 65 contra e
3 abstenções.
O
caminho foi a eleição indireta no Colégio Eleitoral. Em 15 de
janeiro de 1985, senadores e deputados federais decidiram entre dois
candidatos: Tancredo Neves, pelo PMDB, tendo como vice o senador José
Sarney. E Paulo Maluf, pelo PDS, cujo vice era Flávio
Marcílio.
Tancredo
ganhou, mas adoeceu e não tomou posse em 15 de março de 1985. A sua
agonia durou 38 dias. Em 21 de abril de 1985, a sua morte foi
comunicada oficialmente.
Sarney
assumiu a presidência no dia seguinte. De 1964 até 1979, quando foi
extinto o bipartidarismo, ele havia sido membro e presidente da
Arena, o partido da ditadura militar. Em 1979, com o fim do
bipartidarismo, ele se transferiu para o PDS, como a maioria dos
arenistas, onde ficou até 1984. Aí, ele rompeu com o PDS e
filiou-se ao PFL, de Marco Maciel. No mesmo ano, ele trocou o PFL
pelo PMDB.
“O
Sarney jamais poderia ter sido empossado como presidente, porque
Tancredo morreu antes de assumir”, argumenta Adriano Diogo. “Por
que essa mesma mídia que diz hoje que é golpe adiar a posse de Hugo
Chávez não disse lá atrás que a solução Sarney era golpe?
Chávez ainda está vivo, foi eleito em eleição direta pelo povo
venezuelano, enquanto o Tancredo foi escolhido por um Colégio
Eleitoral. O Sarney só assumiu por causa de um acordão com os
militares.”
O
sociólogo pernambucano Edival Nunes Cajá, 62 anos,
testemunhou esse momento crítico da história política brasileira,
pois tinha ido a Brasília para a posse de Tancredo.
Por
isso, Adriano Diogo sugeriu-me que o entrevistasse também.
Cajá
é ex-preso político, trabalhou com Dom Helder Câmara de 1975 a
1979, atualmente preside o Centro Cultural Manoel Lisboa e é membro
do Comitê Central do Partido Comunista Revolucionário. Em 2010, foi
um dos observadores internacionais de eleição na Venezuela.
Adriano
Diogo e Edival Cajá, ambos ex-presos políticos: “Os militares
botaram o pé na porta e vetaram a posse do Doutor Ulisses e a
convocação de novas eleições. Tinha de ser o Sarney”
Viomundo
– Cajá, o que você exatamente testemunhou?
Edival
Cajá –
Eu tinha ido a Brasília para assistir à posse do presidente eleito
Tancredo Neves. Na época, eu era primeiro suplente de deputado
federal por Pernambuco e estava hospedado no apartamento do então
deputado federal Osvaldo Lima Filho, ex-ministro de Jango.
Nós
estávamos jantando no dia 14, às 19h, quando o deputado federal
José Maria (PMDB-MG), amigo de Tancredo, chama Osvaldo por telefone.
Era para informar que Tancredo tinha passado mal na missa e havia
sido levado às pressas para o Hospital da Base Aérea de Brasília.
A missa realizada na Catedral pelo cardeal arcebispo de Brasília,
José Freire Falcão, já fazia parte da programação do ritual de
posse.
Imediatamente,
Osvaldo Lima e eu fomos para a Câmara dos Deputados, palco das
principais discussões sobre o que poderia acontecer nos dias
seguintes. Enquanto Tancredo agonizava por longos 38 dias nos
hospitais de Brasília e São Paulo, desenvolvia-se uma titânica
luta política no Congresso Nacional e no Estado Maior das Forças
Armadas em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo pela posse da
presidência da República. Sentíamos no ar o clima de conspiração,
de golpe de Estado.
Viomundo
– Fale um pouco mais dessa luta titânica no Congresso Nacional.
Edival
Cajá –
Nós e todos os setores de esquerda interpretávamos, com base na
Constituição vigente que, caso Tancredo morresse, deveria tomar
posse como presidente o Doutor Ulisses Guimarães, presidente do
Congresso Nacional, e jamais o Sarney, uma vez que Tancredo não
havia sido empossado.
Entretanto,
a grande imprensa falada e escrita, como verdadeiros porta-vozes dos
quartéis, passou já nos dias seguintes à internação a estampar
nas suas manchetes opiniões de ex-ministros da Justiça e juristas
da ditadura, como Petrônio Portela, Ibrahim Abi Ackel, Leitão de
Abreu, entre outros. Todos defendendo a posse do vice de Tancredo,
José Sarney, mesmo sabendo tratar-se de uma afronta à Constituição,
à consciência da nação e à saúde do presidente enfermo.
No
final, acabou prevalecendo a posse do Sarney. Quem bateu o martelo
não foi o Congresso Nacional e nem o Poder Judiciário, mas –
pasme! – os setores mais reacionários das Forças Armadas
através do general Leônidas Pires Gonçalves, ex-chefe do DOI-CODI
e do I Exército no Rio de Janeiro, de 1974 a 1977.
No
auge da crise, o general Lêonidas declarou a uma comissão de
representantes do Congresso, entre os quais o senador Pedro Simon:
“Quem assume é Sarney”.
Pior
ainda. Como condição para o Sarney tomar posse, ele se impôs como
ministro do Exército. Foi um duro golpe da direita nas forças de
esquerda do Brasil.
Viomundo
– Mas por que não o Ulisses, já que, pela Constituição, ele
deveria assumir, uma vez que o Tancredo não havia tomado posse?
Edival
Cajá –
Porque as forças de esquerda ainda estavam fracas, sem condições
de se impor pela mobilização das massas, pelo pouco desenvolvimento
na organização do movimento popular e sindical.
E
as forças conservadoras ainda detinham a hegemonia no processo de
transição política, sobretudo nos quartéis. Por isso, se
impuseram. Além disso, dentro do movimento democrático,
predominavam os liberais que temiam a confrontação, tinham medo de
enfrentar diretamente os estertores da ditadura e receavam também
serem confundidos com a esquerda revolucionária.
Viomundo
– Por que não se convocaram novas eleições?
Edival
Cajá –
A nossa proposta era que o Doutor Ulisses assumisse e a convocação
de novas eleições. Os militares bateram na mesa: nem Ulisses nem
novas eleições. Tinha de ser o Sarney.
Viomundo
— O que foi feito para que o Sarney tomasse posse?
Edival
Cajá – Com
certeza, fizeram um grande acordo político do tipo ‘vocês
não mexem com o passado, a lei da anistia, torturadores,
desaparecidos políticos, etc, e nós, militares, nos comprometemos
em não dificultar o funcionamento das instituições democráticas,
as eleições, etc’.
Viomundo
– O deputado Adriano Diogo diz que o desenlace de Tancredo só se
deu após os militares terem vencido a queda de braço com o
Congresso e imposto o Sarney.
Edival
Cajá –
Foi isso mesmo, foram 38 dias de negociações, de tensões.
Cada lado teve tempo para sentir seus limites. Doutor Ulysses e
Leônidas Pires pareciam ser os vértices, os pontos sensíveis
opostos de toda a tensão.
Viomundo
— O quadro brasileiro daquela época tem alguma semelhança com o
da Venezuela neste momento?
Edival
Cajá – Em
certo sentido sim. Uso da calúnia, luta ideológica, da força,
busca de apoio dos EUA…Porém, o grau de organização das
massas populares, do povo trabalhador em Comitês Bolivarianos nos
bairros pobres, da coesão da direção política e das lideranças
do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV) é muito superior
na Venezuela de hoje do que no Brasil de 1985.
Lá,
como os dois lados não escamoteiam a confrontação política,
resultou também num maior grau de politização e participação da
população, o que é muito bom para o Movimento Chavista, para o
PSUV, para a democracia popular.
Viomundo
— E o comportamento da nossa mídia na época do Tancredo e agora
com Chávez?
Edival
Cajá —
Acho que a grande mídia brasileira de hoje está muito mais
centralizada, monopolizada e à direita do que no período do
Tancredo, em 1985. E também lá na Venezuela.
Acho
que a grave crise que o sistema capitalista mundial está vivendo
levou ao agravamento desta situação. Assim como os bancos e as
indústrias passaram por um processo de centralização, ficando em
poucas mãos, os meios de comunicações de massa também em todo o
mundo. No Brasil, apenas quatro famílias decidem qual acontecimento
ou fato político vai virar notícia nacional e qual versão será
propagada.
Assim
também é na Venezuela. Lá, os políticos de oposição e a grande
imprensa se parecem e se confundem nos interesses, dá a impressão
de serem jornais e TV do partido da oposição, tamanho o alinhamento
político, numa dosagem ainda pior do que no Brasil, devido ao grau
de aguçamento da luta política e ideológica.
Viomundo
– Você esteve na Venezuela como observador internacional.
Edival
Cajá —
Fui convidado, oficialmente, como observador internacional das
eleições de 2010. Junto com representantes de cerca 40
países, eu tive a oportunidade de conhecer o sistema eleitoral de
lá.
A
minha surpresa foi encontrar um sistema eleitoral muito mais seguro
que o nosso. Lá, já adotavam a fórmula biométrica de votar, urna
eletrônica e, ainda no final da seção, urna e cédula
convencional, porém, com uma tinta especial para marcar o dedo usado
na cédula de votação, de modo que você não poderá mais votar em
outra seção. De maneira que é praticamente impossível acontecer
uma fraude da vontade do eleitor.
Entretanto,
antecipadamente, a oposição já propagandeava que haveria fraude,
tentando tirar a legitimidade do pleito. Nunca vi uma oposição
política tão sem credibilidade na população trabalhadora e tão
identificada com a linha editorial do sistema de TV CNN e
assemelhados, com os interesses dos EUA.
Viomundo
– Trabalhou com Dom Helder Câmara por quanto tempo?
Edival
Cajá —
Durante quatro anos (1975-1979). Era assessor da Arquidiocese de
Olinda e Recife e da CNBB-Nordeste – II, cujo presidente era Dom
Helder Câmara. Também fui membro da Comissão de Justiça e
Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife quando ele foi seu arcebispo.
Dom Helder encantava todos aqueles que trabalhavam com ele devido à
sua forma profética, transformadora de ver os homens e a sociedade.
Viomundo
– Particularmente, o que te agradava em Dom Helder?
Edival
Cajá –
A sua grande generosidade quando se tratava de acolher os perseguidos
políticos, os sem-teto, os sem-terra e os sem-nada, desempregados.
Ele não se preocupava com a cor ou ideologia dos militantes ou
da organização política onde militavam. O seu compromisso sincero
era com a libertação dos explorados e oprimidos, com a construção
do novo homem e da nova sociedade.
Em
1978, fui sequestrado, torturado, preso, fiquei incomunicável com a
minha família e advogados. Fui ainda atacado pela imprensa da
ditadura como um homem perigoso à segurança da sociedade. Pois bem,
Dom Helder declarou aos jornais que “Cajá está preso por amor à
justiça e aos pobres”.
As
suas declarações e a greve dos estudantes da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), que se espalhou até a Universidade do Paraná,
impediram a continuidade das torturas e ameaças de morte.
Em
1973, no auge dos sequestros políticos e das torturas no Recife, Dom
Helder procurou manter a esperança acesa dos que militavam por meio
de uma das suas crônicas, na qual afirmava “quanto maior a
escuridão, mais clara será a madrugada”.
Viomundo
– Agora, qual a sua expectativa em relação à Venezuela?
Edival
Cajá –
Não acredito no êxito de mais esta ofensiva golpista da oposição
venezuelana. Não acredito nesta nova tentativa de impor um novo
calendário eleitoral ao povo venezuelano.
http://www.viomundo.com.br/politica/por-que-a-midia-que-diz-ser-golpe-adiar-posse-de-chavez-saudou-a-do-sarney.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário