Segundo Débora Diniz, o mal-entendido na concessionária da Barra reflete uma realidade brasileira: crianças negras são invisíveis ao universo do consumo; charge do artista Máximo compara concessionária a um navio negreiro
27 DE JANEIRO DE 2013 ÀS 11:22
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- Foi
um mal-entendido ou uma criança negra é invisível ao universo do
consumo de luxo no Brasil? Confira, abaixo, a análise da antropóloga
Debora Diniz, sobre o caso de racismo numa concessionária da BMW na
Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro:
Qual mal-entendido?
O casal, branco, queria comprar uma BMW no Rio; o gerente da loja, expulsar um menino negro de 7 anos. Era o filho deles
Debora Diniz*
Em nenhum momento, ele olhou para o nosso filho." Priscilla
Celeste Munk é mãe de uma criança negra de sete anos. No catálogo
racial brasileiro, ela é uma mulher branca. Sua branquidade se
anuncia pela cor da pele, mas também pela classe social. Foi como
uma mulher branca, acompanhada de seu marido também branco, Ronald
Munk, que vivenciou o racismo contra seu filho adotivo em um dos
templos do consumo de luxo no país - uma concessionária de carros
BMW no Rio de Janeiro. A cena foi prosaica: a família foi à
concessionária e o filho se entreteve com uma televisão. O gerente
os atendeu como um casal desacompanhado. Quando a criança se
aproximou, a cor de sua pele resumiu a impertinência de sua presença
em um lugar onde somente brancos e ricos seriam bem-vindos. Sem se
dirigir ao casal, o gerente ordenou que a criança saísse da loja:
"Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para
você. Saia da loja. Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes".
Imagino que o monólogo do gerente com a criança sem nome nem rosto,
mas rejeitada pela cor, tenha sido adequadamente reproduzido pela
mãe. A combinação entre um "você" que olha, mas ignora
a criança, e um abstrato "eles", que não olha, mas
registra a desigualdade, é poderosa para resumir a racialização de
classe da sociedade brasileira. Em poucas palavras, o gerente oscilou
entre dois universos, ambos movidos pela mesma inquietação moral:
como proteger os ricos dos pobres, os brancos dos negros. O gerente
não cogitou estar diante de uma família multirracial, mas de
clientes brancos e de um menino negro pedinte que perturbaria a
tranquilidade do consumo.
Até aqui, não haveria nada de novo para a realidade da desigualdade
social que organiza o espaço do consumo - engana-se quem pensa que
os shoppings centers são locais de livre trânsito: as regras sobre
como se vestir e se portar não permitem que todos igualmente ali
transitem. A impertinência do caso é, exatamente, estremecer essa
ordem silenciosa da desigualdade racial e de classe da sociedade
brasileira. Por isso, com a devida sensibilidade do capitalismo
global, a concessionária da BMW optou por descrever o caso como um
"mal-entendido".
"Preconceito racial não é mal-entendido", disse a família
em uma campanha aberta sobre o caso, porém com cautela sobre a
identidade do filho que se vê resumido à cor. Não tenho dúvidas
de que esse é um caso de discriminação racial - a cor da pele
importa para o reconhecimento do outro como um semelhante. É isso
que chamamos racismo: descrição do outro como um dessemelhante e
abjeto pela cor de seu corpo. A criança de 7 anos, antes mesmo de
entender o sentido político do racismo na cena vivida, foi alvo de
uma rejeição que resume sua existência. Assim será sua vida. O
consolo familiar é que o garoto redescreveu para si que "crianças
não eram bem-vindas à loja" e não se personalizou na rejeição
pelo corpo. A ingenuidade infantil em breve será vencida pela
observação cotidiana de práticas racistas. Com a perda da
ingenuidade, a criança sem nome e com somente cor encontrará outro
grupo para traduzir sua experiência de sentir-se abjeta - não será
mais porque é uma criança em um ambiente de adultos, mas um
adolescente, um homem ou um velho negro em um mundo cuja ordem do
consumo e da lei é, ainda, branca.
Por isso, desejo explorar o argumento do "mal-entendido"
para além de uma estratégia infeliz de marketing. De fato, há um
mal-entendido ético que costurou o roteiro desse desencontro racial.
Para ser reconhecido como um futuro adulto rico e potencial amigo da
concessionária para a compra de carros de luxo, o garoto de 7 anos
precisaria habitar um corpo inteligível para a casta dos ricos. Sua
cor o torna um sujeito inimaginável. Para ser reconhecido, é
preciso antes ser inteligível à ordem dominante.
Crianças negras são ainda invisíveis ao universo do consumo, o que
pode parecer óbvio dada a sobreposição da desigualdade de classe à
desigualdade racial no País: negros são mais pobres que brancos, um
fato que alimenta intermináveis controvérsias sobre as causas da
desigualdade, se seriam elas de renda ou raciais. A verdade é que as
crianças negras não são invisíveis apenas na concessionária da
BMW, mas em escolas, hospitais ou espaços de lazer, isto é, como
futuros cidadãos à espera da proteção de uma sociedade que se
define como livre do racismo.
Como em um experimento sociológico, o caso da família multirracial
mostrou que a renda não é capaz de silenciar a rejeição racial: a
criança se converteu em um ser abstrato, parte de uma massa de
pedintes que incomodam os clientes ricos. Ao contrário do que
imagina a loja da BMW, o mal-entendido não se resumiu ao diálogo
entre o gerente e a família, mas entre quem imaginamos que somos
como uma democracia racial e o que efetivamente fazemos com nossa
diversidade racial.
*
Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília
e pesquisadora da ANIS - Instituto de Bioética, Direitos humanos e
Gênero
http://www.brasil247.com/pt/247/rio247/91832/Antrop%C3%B3loga-disseca-caso-de-racismo-na-BMW.htm
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