Cientista político e advogado argentino sustenta: no capitalismo, de relações desiguais e antagônicas, podemos conceber “lixadores” e “lixados”, contaminadores e contaminados...
No IHU
Para o advogado argentino Raúl Néstor Alvarez,
“o lixo não é somente essa montanha de substâncias e coisas fedorentas,
úmidas e amontoadas que nos causam nojo”. Na entrevista que aceitou
conceder por e-mail à IHU On-Line, ele propõe pensar o
lixo como uma relação social de desapropriação, “como uma relação entre
partes desiguais que permite a alguns descarregar seus passivos
econômicos e ambientais sobre os outros, que compõem o conjunto coletivo
social”.
A seu ver, “atirar algo no lixo não consiste em um mero cálculo
econômico, mas é uma ponderação subjetiva muito mais complexa na qual
entram em jogo nossos desejos ocultos, nossos prazeres e nossas
frustrações. Estes aspectos que negamos de nós mesmos, os descarregamos
convertendo em lixo certos objetos. Por exemplo, se me sinto gordo e não
me gosto assim, então me vingo atirando no lixo as calças que já não me
servem. O que fica no cesto de lixo é um aspecto de mim mesmo, que eu
renego. De modo que o nojo do lixo, de certo modo, é um nojo de mim
mesmo que eu alieno”. E conclui: “o lixo é uma questão de empoderamento
popular e cidadão. É uma questão política. Não pode ser deixado nas mãos
tão somente de engenheiros e administradores de empresas”.
Advogado e licenciado em Ciências Políticas pela Universidade de Buenos Aires – UBA, Raúl Alvarez dedica
boa parte de sua jornada à docência na Faculdade de Direito da UBA. Sua
especialidade é a Teoria do Estado, mas a partir de uma perspectiva
crítica, que questiona diretamente o direito de propriedade. Com essa
bagagem começou a estudar o lixo, sua relação com o Estado e com a
propriedade. Chegou a esse tema acompanhando uma organização territorial
de José León Suárez, a área onde se localiza um dos aterros sanitários da Ceamse.
O produto dessa pesquisa foi a sua dissertação do mestrado em Ciência
Política realizado no Instituto de Altos Estudios Sociales da
Universidad Nacional de San Martín – UNSAM (Argentina), que depois se
tornou o livro La basura es lo más rico que hay (Buenos Aires: Dunken, 2011).
Seus trabalhos podem ser lidos em www.poderyderecho.blogspot.com.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como você define o que é lixo?
Raúl Néstor Alvarez – Penso que o lixo não é somente
essa montanha de substâncias e coisas fedorentas, úmidas e amontoadas
que nos causam nojo. Proponho pensar o lixo como uma relação social de
desapropriação, como uma relação entre partes desiguais que permite a
alguns descarregar seus passivos econômicos e ambientais sobre os
outros, que compõem o conjunto coletivo social.
IHU On-Line – Qual a relação do lixo com o Estado e com a questão da propriedade?
Raúl Néstor Alvarez – O Estado é um aspecto das
relações sociais de exploração, o aspecto coercitivo, que se corporiza
em aparelhos, cuja função é exercer “institucionalmente” a força para
reproduzir essas relações sociais desiguais que o constituem. Esse
Estado, enquanto estado capitalista, garante estrategicamente a
reprodução do capital. No terreno do valor positivo dos objetos, cumpre
esta função conservando a propriedade privada da classe dominante. Mas
quando entramos no terreno negativo de valor, quando nos encontramos com
objetos e substâncias dos quais seus proprietários privados já lhe
extraíram seu valor positivo, então o papel do Estado, para favorecer a
acumulação do capital, passa por absorver a gestão desses materiais que
provocam perdas. A lógica capitalista do lixo passa por privatizar o que
dá lucro, e socializar o que dá perda. O papel do Estado, neste
terreno, então, é atuar como gestor, como administrador dessas perdas
(econômicas e ambientais) através da chamada “gestão de resíduos”.
IHU On-Line – Como a divisão em classes é uma estrutura social que acaba replicada no terreno do lixo?
Raúl Néstor Alvarez – Em sociedades capitalistas
como a que vivemos, as relações sociais, ao serem desiguais, são
antagônicas. Isso quer dizer que há exploradores e explorados,
dominadores e dominados. Nesse sentido, falo de divisão em classes.
Parece-me que a ideia de antagonismo permite uma concepção não
substancialista da ideia de classe. Aplicar este conceito ao tecido
social do lixo nos permite conceber uma rede de “lixadores” e “lixados”.
Ou, mais amplamente, desde o ponto de vista ambiental, podemos falar de
contaminadores e contaminados. Por “lixeirização” me refiro ao trato
das pessoas ou dos objetos como se fossem lixo, como se não tivessem
nenhum valor positivo. Como a estrutura de nossas sociedades
capitalistas é desigual, os objetos e materiais descartados por estratos
mais elevados, podem ser úteis e valiosos para pessoas situadas em
níveis mais baixos. Isso é o que explica que os mais pobres considerem
conveniente a coleta e recuperação de objetos misturados ao lixo. Mas
pagam um preço por isso, porque a “lixeirização” dos objetos impregna
imaginariamente as pessoas que trabalham com esses objetos
“lixeirizados”.
IHU On-Line – Como o senhor define o preconceito cultural, de ideia normalizadora do lixo, que impede o avanço da reciclagem?
Raúl Néstor Alvarez – O lixo funciona também como
uma dimensão simbólica. Quando nos formamos como sujeitos, aprendemos um
conjunto de normas, de preconceitos, de higiene e de conduta que
requerem da formação de lixo para se fixarem. Tudo o que em uma mesa, em
um lar, ou em um escritório gera desordem, atrapalha ou é considerado
“sujo”, acaba retirado da ordem cotidiana e se destina à cesta de lixo.
Ou seja, se “lixeiriza”.
Lixo é o contrário necessário da ordem e da limpeza. E esta ordem,
tanto doméstica como social, necessita da ideia de lixo para poder
funcionar. Daí que se atribuem ao lixo uma quantidade de
características, como sujeira e “infectosidade”, que não procedem de
suas propriedades físicas, mas que são atributos culturais, imaginários.
Este “poder imaginário” que se atribui ao lixo se incorpora e se
inscreve nos corpos como “asco”, que é uma sensação aprendida
socialmente. Não é um reflexo biológico.
A partir do lixo, os setores privilegiados da sociedade capitalista
são capazes de sentir asco pelo lixo. E este asco deixa à mostra a
fronteira que demarcou a norma, entre o que é lixo e o que faz parte da
ordem do social. Conjuga-se, além disso, outra dimensão simbólica de
tipo individual, que são os sentidos inconscientes que transferimos a um
objeto quando o convertemos em lixo. Atirar algo no lixo não consiste
em um mero cálculo econômico, mas é uma ponderação subjetiva muito mais
complexa na qual entram em jogo nossos desejos ocultos, nossos prazeres e
nossas frustrações.
Estes aspectos que negamos de nós mesmos, os descarregamos
convertendo em lixo certos objetos. Por exemplo, se me sinto gordo e não
me gosto assim, então me vingo atirando no lixo as calças que já não me
servem. O que fica no cesto de lixo é um aspecto de mim mesmo, que eu
renego. De modo que o nojo do lixo, de certo modo, é um nojo de mim
mesmo que eu alieno. Quando um mendigo abre meu saco de lixo, sem nojo, é
porque ultrapassou essa fronteira da normalidade, fazendo desandar a
construção social do lixo. E por isso fica impregnado da mesma denotação
da qual o lixo é objeto.
A “lixeirização” se estende dos materiais às pessoas. Os mendigos
ficam estigmatizados como sujos, doentes e transmissores de doença. No
entanto, esta caracterização é independente de qualquer processo
biológico, mas procede do desenvolvimento da construção social do lixo.
IHU On-Line – Em que sentido o senhor afirma que o lixo em si não existe, que se trata de um fetiche?
Raúl Néstor Alvarez – O que quero dizer é que quando
se manipula o lixo não devemos nos limitar à questão dos materiais e às
quantidades, mas temos que considerar o processo social desigual do
qual ele procede. Os sentidos imaginários, inconscientes e desiguais que
implicam no lixo são densos e explicam grande parte de nossos
comportamentos a respeito. Pontualmente, um fetiche é um objeto ao qual
se atribuem poderes imaginários. Mas quando se indaga no contexto em que
se insere o objeto, vemos que o importante não é a materialidade dessa
coisa, mas as relações sociais desiguais que se valem dela para se
reproduzir. Assim como a mercadoria não equivale a seu preço, mas
explica um conjunto de relações de exploração, do mesmo modo o lixo não é
somente essa montanha malcheirosa que está nos aterros, mas é uma
relação.
A diferença entre a mercadoria e o lixo é que o que tem valor
positivo permanece no patrimônio das pessoas, sob o direito de
propriedade, e o que se torna desagradável é descartado como lixo. Mas a
relação social é a mesma: apropriação em um caso e desapropriação em
outro. A propriedade é um direito que permite ao dominus excluir erga
omnes a todo o resto da sociedade, do uso e gozo de sua coisa. Ao
contrário, o lixo é uma “desapropriação” de algo que até agora tinha um
dono, e uma vez que obteve seu lucro, quando sua coisa passa a ter valor
negativo, descarrega esse passivo econômico ou ambiental no resto da
sociedade, ou seja, no ambiente. O coletivo social se faz responsável,
através do Estado, de gerir estes passivos, garantindo, desse modo, que
os ativos fiquem apropriados por uma minoria.
Esta maneira de ver o lixo como relação de desapropriação, contrária e
complementar à relação de propriedade, pode se estender a todas as
relações de contaminação. Porque a contaminação tanto da água e do ar
como da terra sempre implica a presença de resíduos que tenham sido
desapropriados em um bem coletivo que é o ambiente.
IHU On-Line – Em que medida o lixo é utilizado como recurso de poder?
IHU On-Line – Em que medida o lixo é utilizado como recurso de poder?
Raúl Néstor Alvarez – Mais do que um recurso, o lixo
é poder. Porque o poder não é uma coisa que se toma ou se deixa. É um
aspecto das relações sociais. E no lixo circula, entre outras coisas,
relações de poder. O lixo procede do exercício desigual do poder; o
reproduz. O Estado, ao gerir o lixo, garante a apropriação privada de
lucro à socialização de perdas mediante a coerção. Os mendigos, por
isso, geralmente têm sido perseguidos.
Aqui em Buenos Aires, o principal aterro, o Norte III da CEMASE,
é custodiado pela polícia armada, como se se tratasse de um tesouro. Os
catadores, ao resgatar objetos do lixo, estão rompendo a lógica de
poder e da apropriação/desapropriação do lixo. Por isso são
discriminados, perseguidos, reprimidos, marginalizados.
Além disso, em torno do reaproveitamento do lixo também se montam
redes de aproveitamento econômico, que implicam exploração e relações de
poder. Mas isso não foge às demais relações de poder que se dão no
território social da marginalidade.
O uso do lixo como “recurso” de poder é nítido quando o Estado
dificulta ou nega aos catadores o acesso a seu material de trabalho. Mas
também a prisão usa a privação da liberdade como um recurso de poder,
do mesmo modo que o fazem os demais aparatos do Estado em seu trato com
os setores subalternos.
IHU On-Line – Como você chegou à conclusão de que o lixo é o que há de mais rico?
IHU On-Line – Como você chegou à conclusão de que o lixo é o que há de mais rico?
Raúl Néstor Alvarez – A frase do título do livro não é minha, mas de um catador de Villa Lanzone,
Buenos Aires. Uma vez fomos com uma equipe da Universidad de General
Sarmiento a uma assembleia de um projeto social de reciclagem. Ali
propusemos aos catadores que em seu trabalho cotidiano, além de luvas,
usassem máscara para tapar a boca e o nariz. Era uma ideia exótica,
totalmente alheia ao modo de trabalho habitual dos trabalhadores do
lixo, que não somente não se adoentam nem tem nojo do lixo, como também
tem feito dele seu meio de vida e de alimentação. Por isso, um jovem
irreverente, parado em uma montanha de lixo ao fundo do galpão onde nos
reuníamos, gritou: “para que vamos usar máscara se o lixo é o que há de
mais rico?”. Referia-se ao duplo caráter do lixo: é rico porque se pode
comer, e dele se pode extrair valor ao recuperá-lo.
IHU On-Line – Como resolver o problema do lixo em nossas
sociedades se considerarmos que o capital é regido pela lógica da
escassez?
Raúl Néstor Alvarez – A pergunta excede o que posso
dizer a partir da etnografia que venho realizando. Mas creio que o
caminho é desandar a lógica capitalista do lixo, empregar critérios
ambientais para seu manejo, avançar na reciclagem usando mão de obra
intensiva de quem atualmente se ocupa dele, que são os mendigos e
catadores, valendo-se de lógicas não tecnológicas, mas cidadãs, de
organização e decisão. O lixo é uma questão de empoderamento popular e
cidadão. É uma questão política. Não pode ser deixado nas mãos tão
somente de engenheiros e administradores de empresas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário