Rara oportunidade de investigar ligações entre o oligopólio da
comunicação e o crime organizado é jogada no lixo, com grande prejuízo
para a sociedade
Por Maurício Caleiro, no Cinema e Outras Artes
Determinada pela presidência do PT, a decisão do deputado Odair Cunha
(MG), relator da CPI do Cachoeira, de deixar de indiciar cinco
jornalistas suspeitos de ligação com o crime organizado – entre eles
Policarpo Júnior, editor-chefe da Veja – e de abdicar da sugestão de que
o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, seja investigado pelo
Conselho Nacional do Ministério Público tem causado indignação entre a
militância petista, apoiadores do governo e cidadãos preocupados com o
atual estágio das relações entre política, mídia e Justiça no Brasil.
Instalada a duras penas, a CPI representou uma rara oportunidade de
promoção de uma investigação séria sobre as ligações entre mídia e crime
organizado no país, a partir das para lá de suspeitas relações entre o
criminoso condenado “Carlinhos” Cachoeira e a revista Veja. Tal
oportunidade está perdida, e, embora a responsabilidade por tal
retrocesso deva ser repartida com os demais membros da aliança
governista – o PMDB, notadamente -, ele corrobora uma constatação que se
difunde entre um número cada vez maior de pessoas: a de que, não
importa o que a mídia apronte, o PT está acovardado e não reagirá.
Reação corporativa
Além da saraivada de ataques disparados pela imprensa, nos últimos
dias, contra o indiciamento dos jornalistas – categoria profissional
que, no Brasil, parece estar acima das leis – e do corporativismo
extremado do Ministério Público em defesa de Gurgel, rondam o recuo
petista ameaças menos ou mais veladas advindas do potencial supostamente
explosivo da divulgação da correspondência entre o ex-presidente Lula e
a ex-chefe de gabinete da Presidência da República em São Paulo,
Rosemary Noronha, indiciada na última sexta-feira pela Polícia Federal,
com estridente alarde, mesmo para os padrões brasileiros.
Ainda que remota, a possibilidade de que Lula venha se candidatar a
governador de São Paulo em 2014, com grandes chances de estabelecer
hegemonia petista no município, no estado e no país, tem levado a mídia
corporativa, linha-auxiliar do tucanato, a recrudescer as manifestações
de ódio contra o ex-presidente, num exemplo claro do conflito de classes
e de disputa de poder – e da posição que, neles, a mídia, que
idealmente deveria buscar a imparcialidade, assume. Isso inclui, como
índice de baixeza operacional da mídia, o desprezo pelo tratamento
discreto da vida afetiva dos ex-presidentes da República, norma
rigidamente seguida em relação a Fernando Henrique Cardoso, mas que as
presentes insinuações em relação a Lula e Rosemary mandam às favas.
Neste momento, reside no fuçar de e-mails e telefonemas entre eles a
“grande esperança branca” do conservadorismo brasileiro – uma aposta, a
meu ver, fadada ao fracasso.
O caso Rosemary
Dadas as condições materiais tipicamente de classe média de Rosemary e
a vagueza das acusações de tráfico de influência – ainda mais contra
uma agente radicada em São Paulo, longe do poder concentrado no Planalto
Central – não se deve descartar a hipótese de que, assim como ocorreu
com Erenice Guerra, com Luiz Gushiken e com Orlando Silva, trate-se, ao
final, de mais um factoide para abastecer a mídia de manchetes
escandalosas contra Lula e o PT. O modo como os jornais têm tratado as
perfeitamente aceitáveis duas viagens oficiais ao ano efetuadas pela
ex-secretária na última década – chamando-as de “a volta ao mundo de
Rosemary” – sugere exatamente isso.
Já vimos esse filme várias vezes, e a sensação de déjà vu é
inevitável: se, ao final, a acusada for proclamada inocente, como
aconteceu com os personagens citados, uma notinha escondida na página 11
será a compensação pela enxurrada de manchetes e reportagens
televisivas. Os danos morais, a desqualificação pessoal, o tratamento
como criminoso dispensado a quem é apenas suspeito, o direito de
resposta, o ouvir o outro lado? São detalhes que, naturalmente, não
requerem o instrumento anacrônico da Lei de Imprensa, que a sapiência e o
espírito democrático reinantes no STF extinguiram. Deixemos tudo à
autorregulação, como sugeria o saudoso Ayres Britto.
Ufanismo fora de lugar
Os entusiastas do governo nas redes sociais dedicam horas e horas,
diariamente, a prognosticar um golpe de Estado iminente, a destilar seu
ódio contra o STF e a rebater todas as bobagens tendenciosas que Ricardo
Noblat e Reinaldo Azevedo escrevem – o que dá mais audiência a tais
“blogueiros”, provocadores profissionais a soldo dos interesses da
plutocracia mediática. Se esses internautas direcionassem uma pequena
parte de sua energia a fins mais concretos – como pressionar o governo
que apoiam a confrontar a mídia venal e a cumprir os compromissos
assumidos em campanha -, não só as possibilidades de ruptura
institucional tornar-se-iam mais remotas, mas, entre outras áreas, seria
outra a situação da saúde, da segurança pública e da educação (onde,
conforme anunciado ontem, o Brasil ficou em 39o. lugar entre 40 países
concorrentes no ranking do Índice Global de Habilidades Cognitivas e
Realizações Profissionais, evidência que desmistifica e contraria o
discurso ufanista predominante nessa área durante as administrações
petistas). Além disso, poderíamos ao menos vislumbrar a possibilidade de
regular a ação da mídia de acordo com parâmetros éticos.
Ao invés disso, temos um cenário em que, como resume um dos maiores
estudiosos da mídia no país, Venício A. de Lima, “Apesar do trabalho
desenvolvido há décadas por pessoas e/ou entidades da sociedade civil, e
apesar do inegável aumento da consciência coletiva sobre a centralidade
da mídia na vida cotidiana, não tem havido resposta correspondente dos
poderes da República no sentido da proposta e/ou implementação de
políticas públicas que promovam a universalização do direito à
comunicação em nosso país”.
Paz sem voz não é paz, é medo
O fato de a arena comunicacional do país ser dominada por uma mídia
corporativa que age de forma parcial e partidarizada, tendo como métodos
rotineiros a desqualificação agressiva, o escândalo e a mentira é uma
herança do capitalismo selvagem e do patrimonialismo que por décadas
vigeu no país – açulados, na última década, pela perda progressiva de
poder e pelo ódio de classes.
Já o fato de tal distorção antidemocrática permanecer ativa e impune
durante uma década de administração federal petista é resultado da
omissão, pusilanimidade e covardia – e, quem sabe, de interesses não
confessos – que têm caracterizado a inação do Partido dos Trabalhadores
no que concerne à sua relação com a mídia, na qual não se limita a
apanhar calado: continua a encher as burras das editoras e corporações
midiáticas que, suspeitas de conluio com o crime organizado, o atacam e à
democracia.
Como assinala Saul Leblon, em artigo
de leitura obrigatória, o petismo no poder parece resignado após
assinar uma “pax branca” que concede ao conservadorismo o pleito da
hegemonia intocável na esfera da comunicação”. Esse conformismo, que
hoje desqualifica reputações, envenena o jogo político e deturpa o
debate democrático, pode vir a ter consequências ainda mais graves,
institucionalmente traumáticas, para o partido e, pior, para o país. E
fica cada vez mais evidente que o PT nada fará contra o inimigo que
alimenta.
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