Já se afirmou que o sufrágio universal é uma espécie de termômetro da
maturidade dos trabalhadores. Estes, a se julgar pelas eleições de
domingo, 05 de outubro, estão longe do ponto de ebulição. Mas diversos
setores das classes médias foram tomados de uma perplexidade que induz à
vontade de mudar de pais, especialmente de São Paulo (este Tucanistão)
ou, na falta de alternativas, topar qualquer negócio para evitar que se
repita, em dose maior, a ampla votação obtida pela direita capitaneada
pelo PSDB. Mas a simples perplexidade não é boa conselheira e pode
obscurecer a análise e estimular o capitulacionismo. O objetivo deste
texto é estimular o debate com vistas a conclusões rápidas sobre como
atuar na segunda fase das eleições a partir de uma perspectiva
proletária, popular e democrática. Não existe aqui qualquer pretensão de
abordar todas as questões em jogo nem de esgotar o assunto sobre as que
forem tratadas.
É bastante provável que, em muitos casos, esta sensação de tragédia
expresse um forte eleitoralismo, especialmente quando ela também
incorpora outro dado inegável: a pífia votação obtida pelas forças que
se pretendem transformadoras.
A direita crescia dentro e fora do jogo eleitoral
De fato, ocorreu um forte avanço numérico da direita, que consolida
sua forte presença no parlamento. E se trata de um novo tipo de direita,
pois esta não se instala somente no interior de grandes partidos onde o
peso fica mais diluído. Ela também se organiza em diversos partidos
nanicos vitoriosos, o que lhe confere maior homogeneidade e potencializa
sua capacidade de barganha. Eis um alerta para quem propõe reforma
política por meio de constituinte exclusiva, achando que os pontos
aprovados serão os mais favoráveis às forças voltadas para o
destravamento institucional das lutas populares. Pode ocorrer o
contrário: em nome das “mudanças”, o quadro institucional mudar para
pior, inclusive com maiores empecilhos à existência de partidos e
movimentos contrários à ordem estabelecida.
O avanço eleitoral da direita já era esperado, até porque, nesta
conjuntura de crise capitalista, ocorre, dentro e fora do jogo
partidário, em diversos países.
No caso do Brasil, este avanço se expressou, por exemplo, mais
recentemente na bárbara agressão ao povo do Pinheirinho; na política de
pacificação implementada no Rio de Janeiro; na matança sistemática de
jovens das periferias das grandes cidades; no extermínio de populações
indígenas; na ofensiva das frações burguesas mais vinculadas ao
rentismo, ofensiva que impõe sérias capitulações ao governo Dilma e
desnorteia importantes segmentos da burguesia interna; no abandono do
barco por grandes centrais sindicais com apurada sensibilidade para a
direção dos ventos; em rachaduras na base aliada. E, convenhamos, a
atual composição do Congresso Nacional e dos legislativos estaduais não é
exatamente favorável à esquerda. Em que se fundava a expectativa de que
esta realizasse uma grande arrancada nestas eleições?
Eleições à moda burguesa
Apesar das limitações estruturais impostas pelo caráter burguês do
Estado à democracia liberal, em diversos países o movimento operário e
popular conseguiu importantes avanços eleitorais. Basta mencionar, no
caso da Europa, as conquistas realizadas por partidos comunistas na
França e na Itália, além de socialdemocratas de “segunda geração”, ou
seja, sem pretensões revolucionárias, na parte norte-ocidental daquele
continente. E, na América Latina, a coalizão que levou Salvador Allende
ao governo do Chile.
Todavia, além da brutal mudança de contexto nos planos nacionais e
internacional, é preciso levar em conta que o próprio caráter das
eleições mudou. Não nos defrontamos “apenas” com eleições burguesas no
mencionado sentido estrutural. Participamos de pleitos realizados sob
uma avassaladora presença da burguesia, ou seja, com a burguesia impondo
o seu modo de participação eleitoral. As eleições são caríssimas (até
06 de setembro, o grupo JBS, dono da Friboi, era o campeão oficial das
“doações” de campanha, cujo principal destinatário era o Partido dos
Trabalhadores). E o debate transcorre, no fundamental, em torno de
propostas que correspondem mais diretamente aos interesses de frações
burguesas, cabendo aos trabalhadores a ingrata posição de calcular, a
partir de informações e critérios transmitidos pelos grandes meios de
comunicações burgueses, os maiores ou menores prejuízos que terão caso
vença esta ou aquele candidatura burguesa.
Isto implica isolamento muito maior do núcleo do processo eleitoral
em relação às classes populares, exceto no que se refere estritamente ao
ato de depositar o voto na urna. Não há mais passeatas, comícios,
panfletagem, trabalho voluntário, discussão de ideias (a não ser de modo
“artesanal” realizado pelos partidos antissistêmicos). Creio que estas
foram as primeiras eleições às quais assisti (o verbo é proposital) sem
me deparar com a simples presença de adesivos de candidatos afixados em
carros particulares. Os rios Tietê e Pinheiros fedem, mas a cidade está
higienizada de propaganda eleitoral. É provável que parte deste quadro
mude bastante no segundo turno.
Este novo alijamento das classes populares não produz, até agora,
percepção direta de irrelevância do processo eleitoral. De modo
enviesado, o que cresce é a percepção oposta. A compressão do processo
eleitoral em limites tão estreitos aumenta a sensação de desespero de
muitos e a apatia de outros, sem que se percebam outras possibilidades
de ação política, inclusive durante as eleições.
Até o momento, as organizações de esquerda que se pretendem
antissistêmicas não conseguiram uma alternativa séria a este processo
que não é de caráter fundamentalmente tecnológico, devido, por exemplo,
aos novos meios de comunicação ou à chamada reestruturação produtiva.
Afinal, no ano passado, as ruas brasileiras foram palcos de amplas
manifestações de massas que eclodiram apesar da (e contra a) intensa
criminalização por fortes aparatos de violência direta e pelas grandes
empresas de comunicação; e recorrendo às chamadas redes sociais. Isto
nos leva a um rápido reexame, até por conta dos atuais balanços
catastrofistas, de alguns aspectos das manifestações de junho.
Esgotamento de um ciclo, com a esquerda e a direita nas ruas
Na medida em que estas manifestações materializaram o fim de cerca de
dez anos de política meramente institucional no Brasil, elas sinalizam,
independentemente de quem vencerá as eleições neste segundo turno, o
final de um ciclo. Jovens foram às ruas, enfrentaram pesados aparelhos
repressivos, conquistaram ampla legitimidade para suas lutas e
reinventaram meios de participação popular que sinalizavam grande margem
de autonomia. Isto não surgiu como um raio do céu azul. Lembremo-nos
(mais uma vez) da repressão ao povo do Pinheirinho; do sufoco petista à
luta do Assentamento Milton Santos; das UPPs no Rio de Janeiro; da greve
dos professores das universidades federais; dos embates dos
trabalhadores das hidrelétricas na Amazônia; da frustração com os
primeiros meses da gestão Haddad, a qual seria, enfim, uma cunha no
interior do principal território tucano.
Apesar da forte legitimação da “voz das ruas”, não houve qualquer
política séria em relação aos transportes coletivos; as seletivas
denúncias de escândalos de corrupção aumentaram; a grande imprensa se
prestou a uma extraordinária ofensiva do capital rentista e de segmentos
da alta classe média contra o governo Dilma, que recuou; e amplos
segmentos da burguesia interna foram desconstruídos. O divórcio entre o
PT e as massas de classe média e proletária (subproletários inclusos)
mais combativas aumentou sem que estas conquistassem qualquer vitória
política significativa.
É sempre bom lembrar que segmentos de direita da classe média também
foram às ruas, chegando, inclusive, a impor séria derrota às esquerdas
presentes no que seria a comemoração da vitória do MPL em São Paulo.
Tais segmentos reforçaram o sentimento antipetista por pura inclinação
ideológica e deram sua contribuição para inflar o voto na direita. Mas
seria um equívoco profundo não somente responsabilizar os movimentos
contra a elevação da tarifa como isentar o governo petista pelos apuros
deste na atual conjuntura eleitoral. E, acima de tudo, a “lição” que
milhões de subproletários receberam é que de nada valeram as ações de
massa, cabendo ficar à mercê dos “políticos”. Abraços em Sarney, Collor e
Maluf. Troca-troca que levou Feliciano à presidência da Comissão de
Direitos Humanos; governador da base aliada chamando popular de otário.
Seja Brizola ou Göran Therborn, políticos experientes e teóricos argutos
já observaram que o universo de interpelações ideológicas não se limita
ao que existe ou não existe, ao bom ou ruim, mas também ao que é
possível ou impossível. Os governos petistas são responsáveis por uma
tremenda desmoralização ideológica das lutas populares no Brasil.
Alckmin e Russomano (os derrotados de 2012) só têm motivos para
agradecer.
Em situação grave, manter o senso tático e estratégico
Por sorte ou azar, as esquerdas que se pretendem antissistêmicas, com
frágil capacidade de intervir na conjuntura política, não têm qualquer
responsabilidade pelas atribulações do governo petista. Não se trata de
negar a gravidade de uma situação em que o candidato preferido das
frações rentistas em plena ofensiva contra a burguesia interna tem reais
chances de ganhar as eleições. Mas é preciso levar em conta que a
burguesia interna é pouquíssimo combativa, exceto no ataque aos direitos
dos trabalhadores; que o PT, um partido burguês com forte penetração
junto às classes populares, não é de direita mas desliza para a direita;
que, mesmo com a reeleição da presidenta Dilma Rousseff, o panorama
institucional será ainda mais conservador do que o vigente. As forças
que se pretendem antissistêmicas não possuem qualquer razão para ir a
reboque de qualquer frente neodesenvolvimentista, cuja “sensibilidade
social” fica no subzero.
Eis um bom momento para exercer a autonomia e, nesta condição, se
propor a negociar politicamente o apoio crítico à chapa governista.
Assunto não falta. Por exemplo: 1) detenção imediata do massacre aos
povos indígenas; 2) tolerância zero para o trabalho escravo; 3) combate
ao oligopólio dos meios de comunicação; 4) desativação da máfia dos
transportes coletivos com vistas à implementação da tarifa zero; 5)
reforma agrária e política de habitação popular com ativa participação
dos maiores interessados; os sem-terra e os sem-teto; 5) defesa do meio
ambiente; 6) aumento progressivo do salário-mínimo e sistema tributário
progressivo; 7) auditoria da dívida externa e fim do superávit primário;
8) combate ao racismo e à homofobia; 9) desmilitarização das polícias
militares; 10) apoio às lutas emancipatórias femininas, a começar pelo
combate ao patriarcalismo; 11) uma política externa soberana que
contribua para deslegitimar pretensões imperiais e fortalecer as
relações pacíficas entre os povos. .
Eis alguns pontos que as esquerdas, caso entrem em acordo, podem
propor para uma negociação digna que, sem se colocarem a reboque de uma
burguesia interna antipopular, possibilite um apoio crítico à chapa
governista e mantenha a autonomia organizativa, política e ideológica de
cada organização.
Seja qual for o resultado desta tentativa, ela será bastante útil
para clarificar as posições das esquerdas no segundo turno e,
principalmente, depois das eleições.
* LÚCIO FLÁVIO RODRIGUES DE ALMEIDA é professor do Departamento de Política da PUC-SP. Autor de Ideologia nacional e nacionalismo. São Paulo: EDUC, 2014.
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