Qualquer governo que tenha capacidade para monitorar seus
cidadãos e tenha capacidade para descartar o debate público sobre fatos é
totalitário
Por Chris Hedges*, Truthdig, em “The Last Gasp of American Democracy”. Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu e publicado em redecastorphoto
Se os norte-americanos não desmantelarmos imediatamente o
aparelho de segurança e vigilância, não haverá jornalismo investigativo
ou supervisão judicial que detenha o abuso de poder. Não haverá
contraditório organizado. Não haverá pensamento independente. A crítica,
por morna que seja, será tratada como ato de subversão. O aparelho de
segurança amortalhará o corpo político como mofo negro, até que o mais
banal e ridículo seja convertido em questão de segurança nacional.
Os EUA vivemos nossos últimos estertores como democracia. A intrusão
do estado na vida de cada um e todos, e a obliteração da privacidade já
são agora fatos. O desafio para todos nós – dos desafios finais,
suspeito eu – é nos levantarmos ultrajados e pôr fim ao assalto aos
nossos direitos à liberdade e à livre expressão. Se não o fizermos, nos
veremos convertidos numa nação de cativos.
Os debates públicos sobre medidas do governo para impedir o
terrorismo, o assassinato de reputação contra Edward Snowden e seus
apoiadores, as garantias, pelos poderosos, de que ninguém estaria dando
mau uso à quantidade massiva de dados coletados e armazenados das nossas
comunicações eletrônicas não visam ao alvo alegado.
Qualquer governo que tenha capacidade para monitorar seus cidadãos;
qualquer estado tenha capacidade para descartar o debate público sobre
fatos; qualquer estado que tenha ferramentas suficientes para calar
instantaneamente a oposição discrepante é estado totalitário.
Hoje, o estado-empresa [orig. corporate state]
norte-americano pode talvez não estar usando todo esse poder. Mas o
usará, se se sentir ameaçado por uma população tornada impotente pela
corrupção entre os próprios cidadãos, pela incapacidade para
organizar-se para agir, ou por repressão galopante. No instante em que
surja um movimento popular – e algum surgirá – que realmente confronte
nossos patrões na imprensa-empresa ou no estado-empresa, o venal
sistema-empresa norte-americano de vigilância total será posto a
trabalhar a pleno vapor.
O mal mais radical, como Hannah Arendt apontou, é
o sistema político que efetivamente esmaga seus oponentes
marginalizados e abusados e, pelo medo e pela obliteração da
privacidade, incapacita todos os demais. O sistema norte-americano de
vigilância de massa é a máquina pela qual esse mal radical será ativado.
Se os norte-americanos não desmantelarmos imediatamente o aparelho de
segurança e vigilância, não haverá jornalismo investigativo ou
supervisão judicial que detenha o abuso de poder. Não haverá o
contraditório organizado. Não haverá pensamento independente. A crítica,
por morna que seja, será tratada como atos de subversão. O aparelho de
segurança amortalhará o corpo político como um mofo negro, até que o
mais banal e ridículo seja convertido em questão de segurança nacional.
Conheci mal dessa qualidade, quando trabalhei como repórter no estado-Stasi(al.
no orig., “Ministério da Segurança do Estado”) da Alemanha Oriental.
Era seguido por homens de cabelo cortado à militar, metidos em jaquetas
de couro, que eu presumia que fossem agentes do Stasi, que eram apresentados como “escudo e espada” da nação. As pessoas que eu entrevistava eram visitadas por agentes do Stasi,
imediatamente depois de eu sair da casa delas. Meu telefone era
“grampeado”. Alguns dos que trabalhavam comigo eram pressionados para
tornar-se informantes. O medo descia como gelo duro, sobre cada
conversa.
O Stasi não criou massivos campos de morte e gulags. Não precisou. O Stasi,
com rede de dois milhões de informantes, numa população de 17 milhões,
estava em todos os cantos. Havia 102 mil funcionários da polícia secreta
que trabalhavam em tempo integral para monitorar a população – um, para
cada 166 alemães do leste. Os nazistas quebraram ossos; o Stasi quebrou almas. O governo da Alemanha Oriental foi pioneiro da “desconstrução psicológica”que
os torturadores e interrogadores nos buracos negros da CIA pelo mundo, e
dentro do sistema prisional norte-americano, elevaram à mais
aterrorizante perfeição.
O objetivo da vigilância total, como Arendt escreveu em Origens do Totalitarismo, não é, no fim, descobrir crimes, “mas estar a postos, quando o governo decide prender uma dada categoria da população.
E porque os e-mails, as conversas telefônicas, as pesquisas na Web e
os deslocamentos geográficos são gravados e armazenados para sempre nos
bancos de dados do governo dos EUA, haverá sempre “provas” em
quantidade suficiente para nos encarcerar, caso o estado considere
necessário. A informação espera, como um vírus mortal, nos cofres do
governo, para ser usada contra nós. Não importa o quanto a informação
seja trivial ou inocente. Em estados totalitários, a justiça, como a
verdade, é irrelevante.
O objetivo de estados totalitários eficientes, como George Orwell
compreendeu, é criar um clima no qual as pessoas não pensem em
rebelar-se, um clima no qual a tortura e a matança praticadas pelo
governo são usadas só contra um punhado de renegados inadministráveis. O
estado totalitário obtém esse controle, Arendt escreveu, mediante o
esmagamento sistemático da espontaneidade humana e, por extensão, da
liberdade humana. Espalha o medo incansavelmente, para manter a
população traumatizada e imobilizada. Converte os tribunais, como os
corpos legislativos, em mecanismos para legalizar os crimes do estado [e os crimes das classes e grupos de força dominantes, como os crimes da imprensa-empresa (NTs)].
O estado-empresa norte-americano, no caso dos EUA, usou a lei para
silenciosamente abolir a 4ª e a 5ª Emendas da Constituição,
estabelecidas para nos proteger contra intrusão do governo-empresa em
nossa vida privada, sem mandado judicial. A perda da representação e da
proteção judicial e política, parte do coup d’état engendrado
pelo estado-empresa, implica que não temos nem voz nem proteção legal
contra os abusos do poder. A recente sentença judicial que apoia e
legaliza a espionagem pela Agência de Segurança Nacional dos EUA,
emitida pelo Juiz Distrital dos EUA, William H. Pauley III, é parte de
uma longa e vergonhosa lista de sentenças e decisões judiciais que
repetidas vezes sacrificaram nossos mais caros direitos constitucionais,
no altar da segurança nacional, desde os ataques de 11/9.
Os tribunais e corpos legislativos do estado-empresa invertem agora,
rotineiramente, nossos mais básicos direitos, para justificar a
pilhagem-empresa e a repressão-empresa. Declaram que doações secretas
massivas para campanhas eleitorais – que é uma forma de legalizar a
propina – são ações protegidas pela 1ª Emenda. Definem a empresa-lobby –
mediante a qual empresas privadas fazem chover dinheiro sobre
funcionários eleitos e escrevem nossas leis – como direito do povo, de
agir como governo. E podemos, conforme as leis norte-americanas, ser
torturados ou assassinados ou presos por tempo indefinido pelos
militares; e podemos não receber o devido processo legal; e podemos ser
espionados sem mandado judicial.
Cortesãos obsequiosos, servis, que se apresentam como jornalistas,
santificam o poder da empresa e do estado-empresa e amplificam suas
mentiras – a redeMSNBC faz isso tão caninamente quanto a rede Fox News –
ao mesmo tempo em que enchem nossa cabeça com a imbecilidade das
fofocas sobre “celebridades” e “notícias” que nem notícia são.
Nossas “polêmicas”, que permitem que políticos e jornalistas de
futrica falem sem parar sobre questões que nem questões são, mascaram um
sistema político que deixou de funcionar. História, arte, filosofia,
investigação intelectual, nossas lutas sociais e individuais passadas,
por justiça; o próprio mundo das ideias e da cultura, com a compreensão
do que significa viver e participar numa democracia funcional, foram
jogados nos buracos negros do que se deve esquecer, apagar.
O filósofo político Sheldon Wolin, em seu livro indispensável, essencial, Democracy Incorporated” [“Democracia-empresa”, sem edição no Brasil, “esgotado no fornecedor”, cf. webpage da Livraria Cultura (NTs)] chama o sistema de governo-empresa [orig. corporate governance] nos EUA, de “totalitarismo invertido”, que representa “a nova era de política-empresa e de desmobilização política da cidadania”.
O totalitarismo da política-empresa difere das formas clássicas do
totalitarismo, que giram em torno de um líder carismático ou demagogo;
sua expressão é o anonimato do estado-empresa [orig. “the anonymity of the corporate state” (NTs)]. As forças da empresa [orig. corporate forces]
ativas por trás do estado-empresa inverteram o totalitarismo, para não
substituir estruturas decadentes, como fazem os movimentos totalitários
clássicos, por novas estruturas.
Em vez disso, fingem honrar a política eleitoral, a liberdade de
manifestação e a imprensa democrática, o direito à privacidade e as
garantias legais.
Mas
manipulam a política eleitoral de tal modo, corrompem-na de tal modo,
tão completamente – como também corrompem juízes, tribunais, a imprensa e
todas as alavancas essencial do poder – que tornam impossível a genuína
participação democrática das massas [isso está para
acontecer também aqui no Brasil com a USURPAÇÃO pelo Poder Judiciário de
prerrogativas dos Poderes Executivos e Legislativos (Nrc)].
A Constituição dos EUA não foi reescrita, mas já foi capada, nas
interpretações que lhe dão juízes e corpos legislativos. E cá ficamos,
com uma frágil capa democrática e um duro núcleo totalitário.
A âncora desse totalitarismo-empresa são os sistemas norte-americanos
de segurança interna, que nada e ninguém supervisiona ou controla.
Nossos governantes totalitários-empresa se autoenganam, com tanta
frequência quanto enganam o público. Política, para eles, é pouco mais
que RP (Relações Públicas). Contam-se mentiras, não para obter algum
resultado discernível de política pública, mas para proteger a imagem do
governante e do governo dos EUA. Essas mentiras tornaram-se uma
grotesca modalidade de patriotismo.
A capacidade do governo dos EUA, mediante vigilância total, para
impedir qualquer investigação externa sobre o poder, engendra apavorante
esclerose intelectual e moral, que se dissemina no interior da elite
governante.
Noções absurdas, como a de implantar alguma “democracia” em Bagdá
pela força, para que essa “democracia” se espalhasse pela região, ou a
ideia de que os EUA poderiam aterrorizar o Islã radical no Oriente Médio
para forçá-lo à submissão, já não são mantidas sob equilíbrio pela ação
da realidade ou pela experiência ou por discussão social racional
baseada em fatos. Dados e fatos que não se encaixem nas
teorias-fantasias-alucinações das elites políticas norte-americanas, dos
generais, dos gerentes do aparelho de inteligência são ignorados e
ocultados para que os cidadãos não os vejam. A capacidade dos cidadãos
para tomar medidas autocorretivas é frustrada, para todos os efeitos. E
no final, como em todos os sistemas totalitários, os cidadãos
norte-americanos tornam-se vítimas da loucura do governo
norte-americano, de mentiras monstruosas, de corrupção avassaladora e do
terror de estado.
O poeta romeno Paul Celan capturou a lenta ingestão de um veneno
ideológico – no caso dele, o fascismo – em seu poema “Fuga da Morte” [1]:
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã
nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Nós, os norte-americanos, como em todos os estados
totalitários emergentes, fomos mentalmente inseminados por uma amnésia
histórica cuidadosamente orquestrada; uma imbecilidade induzida pelo
estado-empresa norte-americano. Cada dia menos nos recordamos do que
seja ser livre. E porque esquecemos, não reagimos com a ferocidade
apropriada quando afinal toma-se conhecimento de que nossa liberdade nos
foi roubada. As estruturas do estado-empresa têm de ser derrubadas. Seu
aparato de segurança tem de ser destruído. E os que pregam e defendem o
totalitarismo-empresa – incluídos aí os líderes dos dois principais
partidos dos EUA, os fátuos acadêmicos norte-americanos, jornais,
televisões, imprensa-empresa e jornalistas-empresa corruptos – têm de
ser expulsos dos templos do poder.
Protestos em massa, nas ruas, e prolongada desobediência civil são a
única esperança que nos resta aos norte-americanos. Se esse nosso
levante fracassar – fracasso com o qual o estado-empresa conta – os
norte-americanos estaremos escravizados.
Nota dos tradutores
[1] “FUGA DA MORTE”, Paul Celan
(trad. Modesto Carone, do livro: “Quatro mil anos de poesia”, J. Guinsburg e Zulmira Ribeiro Tavares, Ed. Perspectiva, 1969, SP, em:
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã
nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
eu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita.
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã
nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
eu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita.
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