O filósofo Mario Sergio Cortella traça um histórico das
políticas públicas para a educação no Brasil, comenta a situação do
professor e contesta o modelo educacional adotado no estado de São
Paulo. ”Para ver se o projeto funciona ou não é só você verificar o que
aconteceu nos últimos 14 anos e analisar o resultado. É melhor
reavaliar o projeto ideológico que está por trás”
Por Glauco Faria e Renato Rovai
Fórum – Desde a redemocratização, o que foi feito em relação à educação e o que deixou de acontecer na área?
Mario Sergio Cortella – Em 1977, o grande Darcy Ribeiro fez uma
conferência em São Paulo em uma reunião da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) na PUC-SP. Ele fez uma análise genial da
crise da educação no Brasil e pôs isso em um texto, que era a
conferência dele, chamado “Sobre o Óbvio”. Ali, disse que a crise da
educação no Brasil não é uma crise, é um projeto. Assim, deixa claro o
que aconteceu no país durante décadas.
O Brasil é um país que fez 509 anos de fundação, mas o Ministério da Educação foi fundado somente em 1930. Antes de 1930, não havia nenhum órgão nacional que cuidasse da educação. Aliás, a primeira universidade brasileira de fato é a de São Paulo, fundada em 1934. Para se ter uma ideia, Peru, Bolívia, Paraguai já tinham universidades no século XVI.
O Brasil é um país que fez 509 anos de fundação, mas o Ministério da Educação foi fundado somente em 1930. Antes de 1930, não havia nenhum órgão nacional que cuidasse da educação. Aliás, a primeira universidade brasileira de fato é a de São Paulo, fundada em 1934. Para se ter uma ideia, Peru, Bolívia, Paraguai já tinham universidades no século XVI.
Fórum – E a primeira faculdade foi criada para dar um título…
Cortella – Isso, um título ao rei Leopoldo, da Bélgica. Existiam
faculdades no Brasil, mas a primeira universidade é a USP. Quando as
elites de um país, propositadamente, não cuidam da educação pública, é
um sintoma de que não há a necessidade de fazê-lo para sustentação do
seu poderio econômico. No período da República, a educação só entra como
prioridade a partir de 1930, quando há a revolução liberal, graças a
pioneiros como Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo que levaram a essa
lógica.
Por incrível que pareça quem vai potencializar de fato a educação
como elemento de integração nacional será a ditadura militar. É ela que
em 1964, ao assumir no golpe, gerencia a estrutura política e econômica
até 1985, e vai dar uma certa integralidade a uma noção de educação
pública com todos os desvios que carregou e que podemos mencionar. A
crise da educação no Brasil não tem sua agudização no governo militar
por ser um governo militar. Mas porque ele implantou junto com as elites
e com a burguesia uma série de políticas econômicas e sociais que
relegaram a educação a um patamar secundário justamente quando ela se
tornava pública.
Dou um exemplo. Em 1964, o Brasil tinha 70% dos brasileiros no campo
ou em cidades pequenas. O que significa que o aparelho educacional
público era suficiente para aqueles que o frequentavam, já que de fato
apenas 30% dos brasileiros tinham demanda por educação pública. Vamos
pegar 2004, 20% dos brasileiros estão nas cidades pequenas e no campo.
Isto é, em 40 anos houve uma inversão, foi o maior deslocamento de
população do campo para a cidade que o Ocidente teve. Em função do
modelo econômico, a infraestrutura para a produção capitalista se
concentrou nas áreas urbanas e isso provocou o deslocamento da
população.
Isso é importante porque nos últimos 40 anos a educação pública se
tornou, de fato, pública. Isto é, passou a ter povo dentro dela, e em
grande quantidade. Nesse período, os investimentos foram decaindo de
1968 até 1988. Essa mudança que vai agudizar uma crise. Não se confunda
qualidade da educação no Brasil no passado com privilégio. Quando se tem
algo bom para poucos, não é qualidade, é privilégio. Sempre dou um
exemplo, São Paulo é uma cidade na qual se come muito bem, isso é
verdade, mas quem come? Temos um parque cultural de cinemas, teatros,
museus, imbatível, mas quem os frequenta? Dizer que São Paulo tem grande
qualidade para o parque cultural letrado, talvez seja mais fácil dizer
que a cidade tem uma grande estrutura de privilégio para o parque
cultural letrado.
É fácil entender alguns fenômenos. O primeiro deles é que o
deslocamento da população do campo para a cidade levou a um inchaço da
estrutura de demanda por escola. A mesma coisa na saúde, na habitação,
no saneamento básico, que são as áreas que estão em crise sempre.
Segundo, tivemos que trazer uma religiosidade popular das igrejas
neopentecostais, cujo pavor pelo demônio veio do campo para a cidade,
uma elevação da música sertaneja como critério de musicalidade vendável.
Não foram só as pessoas que vieram do campo para a cidade, a sua
cultura veio. Nessa hora que a Igreja Católica perde território – porque
é um momento em que ela discute a visão social do evangelho, bate
contra o grupo que deseja a oração e leva a um certo esvaziamento da
igreja –, aqueles que adotaram o demônio como seu avatar crescem,
especialmente nas áreas periféricas, que são justamente formadas por
aquelas pessoas que vieram do campo.
A ditadura agudizou a crise da educação no Brasil? Sem dúvida, mas
não por ser uma ditadura em si, mas porque fez um projeto capitalista
com as elites. Juntar elite predatória, classe política canalha e
classes médias acovardadas é uma receita muito boa para se criar uma
condição econômica privilegiada e uma da educação que é de
miserabilidade.
A ditadura deu ênfase à educação básica, como não havia acontecido
antes. A Nova República do [José] Sarney e depois o governo FHC não
deram atenção à educação básica, exceto quando o ministro Paulo Renato
fez uma coisa positiva que foi a criação do Fundef, hoje Fundeb. Mas é
só lembrar que a alfabetização de jovens e adultos no governo FHC estava
na área de bem-estar social, da Comunidade Solidária, que é uma ideia
boa, mas tem que estar vinculada ao sistema de educação.
O Brasil está deixando a indigência na área de educação nos últimos
15 anos. Portanto, no governo Fernando Henrique, no governo Lula, começa
a se abandonar a indigência na área educacional. Mas isso não nos deixa
alegremente exultantes e nem deve nos deixar desesperados por
percebermos que falta muito. Para usar uma clássica e antiga frase, não
estamos no começo do fim, estamos no fim do começo. Por isso, há um
outro elemento. Os liberais, hoje chamados neoliberais, foram
responsáveis pelo agravamento da crise da educação resultante do modelo
econômico escolhido durante a ditadura pelas elites, sob gerenciamento
dos militares. Haja vista que, quem foi ministro da Educação antes do
governo Fernando Henrique Cardoso, isto é, na Nova República e na
ditadura militar? Jarbas Passarinho, Jorge Bornhausen, Carlos Chiarelli,
Hugo Napoleão, Marco Maciel…
Fórum – Houve uma continuidade de pensamento.
Cortella – Isso. Para quem diz que o problema da educação é falta de
continuidade… (risos). Posso incriminar a ditadura, como ditadura em si,
pelo viés da educação? Não. Pelo modelo econômico compartilhado pelas
elites, sem dúvida. Pela proposta social de desprivilegiamento da
educação com a introdução da LDB de 1971 que tornou a profissionalização
do ensino médio compulsória desorganizou o sistema. Por outro lado,
criou uma coisa boa, que foi o fim da separação entre o primário e o
ginásio com o antigo exame de admissão que existia e que obrigava a
fazer um vestibular para entrar no ginásio. Imagine a massa de
despossuídos que ficava de fora desse circuito.
A democracia faz bem ao país por várias razões. A primeira delas é
que a Constituição de 1988 previa uma coisa especial: pela primeira vez
na República, havia o direito de voto ao analfabeto. Isso não é pouca
coisa. Na primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso, de acordo com
os dados do TSE, de cada três eleitores adultos, um era analfabeto. Um
terço do eleitorado acima de 18 anos era analfabeto e ficava excluído do
processo.
A questão da escolarização interessa muito aos despossuídos, gente
escolarizada tem o hábito de desprezar a escola. Gente inclusive
altamente escolarizada costuma escrever livros contra a escola. Como já
passou por ela, já se beneficiou, então escreve livros contra a escola,
que vendem muito. Mas esses livros não fazem sucesso junto a pessoas que
não têm escolaridade.
Última coisa: falar em educação no Brasil é falar em educação pública
e 87% das vagas da educação básica no Brasil estão na área pública, 13%
no setor privado. Portanto, se vamos conversar de educação pública,
vamos falar da educação que pega 87 de cada 100 alunos no país. É bom
ressaltar que a questão não é escola pública contra escola privada, mas
escola boa contra escola ruim. E boas e ruins temos em ambos os campos. A
escola privada, a confessional, é um direito dentro de uma democracia; e
a pública é um dever do Estado e um direito do cidadão. E, sob este
ponto de vista, o que fez a ditadura militar? Organizou um pouco o
planejamento da educação brasileira; segundo, extinguiu alguns elementos
de exclusão, com a junção de primário e ginásio; terceiro, começou a
estruturar mecanismos de avaliação, ainda iniciais, do ensino superior
no Brasil. Mas, seu nível de financiamento da educação pública foi
irrisório diante das necessidades. Portanto, se permitiu e se incentivou
que as pessoas viessem para as cidades mas não se garantiu a elas
qualidade de vida, vitimando muita gente nesse processo.
A democracia trouxe a possibilidade de maior gestão democrática, de
eleição de pessoas e grupos que não estavam no circuito com prioridade
para a área de educação, trouxe a necessidade de maior fiscalização da
imprensa e de organizações não-governamentais em relação ao aparato
educacional público, agregou grandes massas que tiveram participação e
uma inserção social muito forte. Até o modelo econômico voltado para o
incentivo à cana-de-açúcar trouxe uma coisa curiosa, que é a organização
do trabalhador volante – ou boia-fria como se diz no Sudeste –, que
mora na cidade e demanda educação, o que levou a uma maior escolarização
na área do campo.
Se olharmos hoje, que digo eu? Depois de 509 anos de história, há uma
educação que começa a dar seus passos. Atingiu quase a universalização
do ensino fundamental mas não atingiu a permanência.
Fórum – Isso leva o senhor a dizer que a educação está saindo da indigência?
Cortella – Está saindo da indigência nos últimos 15 anos porque temos
sistemas de avaliação organizados; uma reestruturação, no governo Lula,
do ensino superior com uma maior presença das camadas economicamente
despossuídas; a necessidade de reorganização do vestibular que, tal como
a jabuticaba, só existe no Brasil; a reformatação do sistema nacional
de formação docente, que está sendo estudado pelo Fernando Haddad; o que
o Paulo Renato como ministro fez, que é organizar um fundo de
financiamento para o ensino fundamental, mas que tinha um pecado que foi
corrigido pelo ministro Tarso Genro e depois pelo Haddad, que era
deixar de lado a educação de jovens e adultos e a educação infantil. As
universidades federais estão se organizando e há uma abertura imensa de
vagas nessa área porque a ditadura militar fez algo que foi completado
nos governos Sarney, Itamar e Fernando Henrique, que foi a privatização
do ensino superior.
Fórum – Tem-se a impressão de que no governo FHC não se fez nada nesse sentido.
Cortella – Não se fez, ao contrário, o Conselho Nacional de Educação
se tornou um grande cartório de homologação do ensino privado
brasileiro, haja vista que hoje apenas 22% das vagas de ensino superior
estão no sistema público, exatamente o inverso do que havia em 1964.
Razão pela qual a questão do vestibular está ligada a isso, a questão
tecnológica também e o fato de que sobram vagas no Brasil nessa área.
Portanto, crise em educação é uma coisa inata. Porque educação é
processo, processo é mudança e, portanto, tem crise continuada. Mas,
mais do que crise, houve é indigência e volto a Darcy Ribeiro: "a
educação nunca foi uma tragédia, foi um drama". A diferença entre
tragédia e drama é que o trágico é decidido pelos deuses e os humanos
não têm como lidar; o dramático é que temos escolha. A crise da educação
no Brasil sempre foi uma escolha, um plano, deixou de sê-lo nos últimos
15 anos. Isso não significa, na grande viagem da comédia dantesca, que
estejamos entrando no Paraíso. Estamos começando a sair do nono círculo
de fogo do inferno. Mas chegaremos ao Paraíso porque temos condições de
fazê-lo. Há forças sociais que se movimentam nessa área, a crise existe,
mas temos saída.
Por último, muita gente diz que o Brasil vai crescer no dia em que
tiver educação em larga escala. Essa equação não é tão automática, se
fosse assim, não seríamos o número 66 no IDH em Educação e a décima
economia do mundo. Educação é um bem, uma riqueza. O problema não é a
posição em que ela está, o problema é que ela não é redistribuída.
Portanto, sendo um bem não redistribuído, não adianta tê-lo em alta
densidade, é preciso tê-lo em alta extensividade de absorção. A ditadura
tem seus pecados, mas não tem todos.
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