Redes sociais são vítimas de uma praga: o palpiteiro preguiçoso,
que diz tolices sem pesquisa alguma – e é aplaudido por seus pares
Por Marília Mosckovich, na coluna Mulher Alternativa
Imaginem a seguinte cena: uma pessoa que se formou, digamos, em
administração de empresas, mas já foi ao médico muitas vezes na vida.
Numa mesa de debate, à sua frente, médicos e agentes de saúde pública
discutem a forma como certo vírus é transmitido para populações
distintas. O administrador se levanta e, gentilmente, faz uma colocação:
- Os senhores me perdoem, não sou médico, claro, mas também não concordo com isso que estão dizendo.
Os médicos e agentes se entreolham e pergunta ao administrador com o que ele não concorda.
- Ora, está claro pra mim que o vírus é transmitido mais
frequentemente para populações brancas. Eu sou branco e conheço muitas
pessoas brancas, e várias delas tiveram esse vírus.
Os números apresentados pelos agentes de saúde pública nos cinco
minutos anteriores à colocação do administrador mostram o oposto: devido
a certas condições de moradia em comunidades negras, o tal vírus era
mesmo mais frequente entre pessoas negras. Os agentes pacientemente
explicam os números novamente ao administrador, que se levanta e, saindo
da sala, grita:
- Ditadores! Vocês não sabem dialogar! Vocês só querem ouvir quem concorda com vocês!
* * *
A cena que descrevi acima é frequente em praticamente qualquer debate
político, especialmente na internet, em que as pessoas parecem mais
confortáveis com a própria ignorância, sobretudo quando ela rende
reações positivas de leitores. Quer dizer, na internet é muito fácil
encontrarmos quem pensa exatamente como pensamos, e isso dá uma sensação
(falsa) de que o que pensamos realmente deve ser verdade. A experiência
pessoal, individual, sem qualquer reflexão ou informação crítica sobre
ela, é reivindicada por grande parte das pessoas como um dado. Como se
devesse, de fato, ser tratada da mesma maneira que um dado ou informação
construídos por meio de anos ou décadas de trabalho de pesquisa,
investigação, etc.
No caso dos debates que estão ligado a áreas técnicas – meio
ambiente, saúde, saúde pública, etc. – essas atitudes parecem ser menos
comuns, embora ocorram. Quando se trata de debates sobre política,
cultura, sociedade, porém, a coisa é ainda mais feia. Troquem a cena
descrita acima por um debate sobre a questão indígena, com antropólogos e
lideranças indígenas discutindo e um mergulhador que não tem qualquer
formação ou experiência na área fazendo a colocação. Parece familiar?
Enquanto socióloga, encontro embates desse tipo todo o tempo, seja na
discussão política de esquerda, seja no feminismo. Ser feminista ou ser
de esquerda realmente não é difícil. Basta propósito e ações comuns.
Nos identificamos com elas, acompanhamos debates, nos envolvemos de
várias maneiras – todas válidas. No entanto, se desejamos crescer como
movimento ou como ativistas, é preciso mais do que meia dúzia de textos
de internet (ainda que textos de internet sejam, sim, um excelente
começo).
Tanto o pensamento feminista quanto o pensamento de esquerda são
recheados de conflitos e contradições internas, claro. A diferença é
que, ao ler autores que dedicaram décadas e formular explicações,
investigar questões empíricas, filosóficas ou teóricas sobre o assunto
que nos interessa, não estamos lendo uma discussão de comentários em
Facebook. Estamos lendo um debate construído sobre dados e pensamentos
consolidados, que não se baseiam em experiência pessoal, individual ou
em “opinião”. Esses textos, ainda por cima, costumam nos situar em
relação aos posicionamentos que tomamos: de onde vêm certas percepções e
posições que temos, enquanto militantes e ativistas, sobre a causa, as
estratégias, o mundo? Já dizia Marx: somos seres tributários de nossa
história. Enquanto militantes não é diferente.
Ao mesmo tempo é importante avisar aos navegantes dessa onda que
ninguém, mas ninguém mesmo, tem a obrigação de ser professor particular
voluntário e te explicar o pensamento de autores, as teorias, os
conceitos e os textos que talvez se esteja com preguiça de ler. A
informação hoje está disponível com muita facilidade; com poucos
segundos de Google Acadêmico é possível encontrar textos, boas análises
sobre eles, apresentações de autores, entre outros. É só se dar o
trabalho de procurar, ler e conversar com outras pessoas sobre aquilo.
Assim crescemos.
Para facilitar esse caminho das pedras – de encontrar leituras,
compreender a relação entre elas, conhecer autores e discutir com quem
também está lendo ou leu aquele material – há alguns sites e cursos,
online e presenciais, que se propõem a fazer esse tipo de introdução
(sem falar em coleçõezinhas que várias editoras têm, apresentando
autores, temas ou perspectivas teóricas de diversas áreas das ciências
humanas e sociais). A Universidade Livre Feminista, ou o Arquivo Marxista da Internet.
Foi justamente com esse propósito também que criei, no finzinho de
2013, alguns cursos introdutórios sobre feminismo – e gostaria de
convidar brevemente as leitoras e leitores a conhecê-los. Neste mês de
janeiro, em São Paulo, haverá quatro encontros temáticos para quem quer
saber um pouquinho mais sobre feminismo antes de entrar em leituras e
estudos. Um beabá geral, para o qual vocês podem se inscrever aqui. Em fevereiro, na modalidade à distância, ofereço um curso de teoria de gênero (saiba mais e se inscreva, aqui).
Além de tudo isso, pra quem já conhece um pouco de feminismo e deseja
aprofundar seus estudos de maneira constante, lendo de debatendo com
outr@s interessad@s, comecei um grupo de estudos permanente, online
(veja aqui).
Essa é minha maneira de responder a uma necessidade que aparece em
quase todo debate. Há sempre muita gente que não está interessada,
claro, e sempre haverá. Mas também há muita gente que se perde em meio a
tanta informação disponível (afinal, buscar no Google não é sempre algo
fácil de óbvio como eu mesma fiz supor ainda há pouco) – e que
realmente deseja estudar e entender a coisa de forma mais estruturada.
Aproveitemos o ânimo de ano-novo para pensarmos, em 2014, um
ciberativismo feminista novo: com um debate menos baseado em desafetos
pessoais, experiências individuais e achismos, e mais baseado no que
existe de conhecimento feminista acumulado sobre o mundo (e não é
pouco!). No ano que passou conseguimos atenção e ampliação da
participação online sobre uma série de questões caras a nossas lutas.
Agora temos a opotunidade única de promover um crescimento qualitativo
do nosso movimento!
Seja mais que bem-vindo, 2014. Meu otimismo me diz que será um ano
bom para o feminismo na internet (e, espero, fora dela também).
Um feliz ano, feministas de todo o mundo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário