De grande mistério a fonte de saber, de lócus da sociabilidade
a reino da alienação. Como uma junção de antíteses, o cotidiano, como
objeto de estudo, constitui-se ao sabor do tempo e ao gosto de seu
avaliador (daquele que o observa e o analisa).
Na história humana, inúmeras teorias já sondaram o tema e produziram
explicações. É amplo o espectro de olhares e de pontos de referência
encontrados nos detalhes, nas miudezas e nos sentidos dispersos nesse
complexo objeto de estudo.
Diante das transformações histórico-sociais que fizeram brotar das
entranhas de um não-objeto – a vida diária das pessoas – essa rica fonte
de fenômenos, o que resta ao pensamento é interagir com os tormentos da
matéria, contradizendo, ao longo das décadas, suas próprias ideias e
previsões lógicas.
O cotidiano é uma construção social e, como tal, é reflexo não só da
quimera ideológica que nos rodeia, mas, também, da inevitável base
material que nos constitui. O cotidiano está para nós (como produto de
ações diárias), antes de estar para ele mesmo (como ideia). Ou será que
existe um espaço demarcado no interior da sociedade em que possamos
dizer “aqui começa e ali termina o cotidiano”?
Poderia se dizer, como tentativa de resposta: “é esse dia a dia que
nos rodeia”. Sim, mas e daí? Rodeia a quem? Que tipo de dia a dia é
esse? Ele é constituído a partir de qual visão de mundo? É expresso como
reflexo de quais modos e relações sociais? Que interesses há por traz
dessa convencional noção de cotidiano? A quem é conveniente que essa
concepção continue a ser o que é?
Com essa problemática, o tema ganha complexidade: o cotidiano é
amplo. Apenas um estudo sobre a transformação de suas representações ou
sobre as condições histórico-sociais que o fizeram surgir na qualidade
de objeto de estudo já daria para encher muitos livros da área de
Ciências Sociais. Isso sem considerar as diversas abordagens existentes
que também ampliariam o leque de reflexões teóricas a respeito da
questão.
Não se trata aqui de percorrer as linhagens do pensamento que se
debruçaram sobre o assunto, nem de revirar questões epistemológicas,
levantando as relações e os interesses encobertos pela racionalidade da
ciência sociológica. Esse movimento de entendimento e de compreensão se
inicia com a constatação, seja reflexiva, seja crítica de que o
cotidiano compõe esse amplo universo de ações e de relações que os seres
humanos constituem em sociedade.
Não é preciso ser sociólogo para perceber que esse mundinho diário
existe e que se tem de conviver com ele. Não se pode negá-lo, isso é
fato. Mas, do ponto de vista da reflexão filosófica e sociológica, por
que o cotidiano é mais um inimigo do que um aliado na reflexão e nos
processos transformação? Qual a relação senso comum / cotidiano,
alienação / cotidiano?
Há toda uma tradição de pensamento, que nos leva aos antigos
filósofos gregos e que se espalhou pelo ocidente, de negar o que está
próximo, de desconfiar do que os sentidos nos dizem, enfim, de evitar as
ilusões que o mundo corriqueiro nos traz (uma aparência espiritual e
material). Assim sendo, pensando a realidade que nos cerca com certos
pressupostos sociológicos, é preciso distância para enxergar melhor
aquilo nos aparece como natural e óbvio dentro da lógica de organização
social.
Dá para fazer uma analogia com a visão de uma obra de arte num museu,
de um quadro, por exemplo. Quando vemos uma pintura expressionista, só
conseguimos notar a grandeza do trabalho do autor ao chegarmos próximos
da tela. Dali, podemos ver as cores fortes e as pinceladas, que mais
parecem borrões sem sentido.
Com relação ao cotidiano, a situação se inverte, de perto vemos uma
aparente harmonia, sentido, naturalidade. No entanto, ao tomarmos
distância, podemos ver como estávamos equivocados. Com uma visão melhor
de todo o quadro, vemos as contradições e os conflitos de interesses que
antes não se faziam presentes.
Desse modo, o cotidiano pode ser visto como um mal necessário à
reprodução do sistema. Reprodução no sentido ideológico da coisa, como
sendo o cimento que cobre as frestas e as rachaduras estruturais, dando
um ar aparente de homogeneidade. O cotidiano, então, é parte integrante,
e fundamental, do processo produtivo do todo desigual.
O cotidiano se torna vilão da história quando relacionado ao grande
balaio de saberes do senso comum. Na maioria das vezes, essa é quase uma
ação imediata: pensou em cotidiano, pensou em senso comum; pensou em
senso comum, pensou em cotidiano. E, quando se pensa em senso comum e em
cotidiano, muitas associações são feitas: ilusão, alienação, falsidade,
fantasia, mentira, não-científico etc.
Não quero com essa argumentação fazer crer que defendo o senso comum
ou o cotidiano. Não estou advogando uma sociologia do senso comum ou do
cotidiano. Muito pelo contrário. Não sei se esse binômio ciência/senso
comum ainda tem sentido, prefiro sair dele. Mas, também, não quero negar
veementemente um ou outro. Não defendo nem a ciência (em sua acepção
clássica, positivista), nem o cotidiano (em sua representação puramente
ideológica e alienadora). O importante é avaliar criticamente e
dialeticamente cada um desses processos.
Assim como a ideia de ciência não é fechada e pronta, também a de
cotidiano não é. Como podemos descartar alguma coisa sem conhecê-la de
perto? Tomar como base essa dicotomia simples de oposição entre
falso/verdadeiro, claro/escuro, ciência/mito não é deixar tudo no reino
exclusivo das ideias? Alguns fenômenos necessitam de processos
compreensivos que a lógica abstrata não consegue oferecer.
Tá certo, você pode dizer, “o cotidiano não é lá esse mau-caráter que
acreditávamos, mas o que ele é de fato?” Ele é essa complexidade que se
materializa a nossa frente; essa substância que se modifica à medida
que o mundo muda. Por isso devemos criticar os conceitos. Estes seguem
uma racionalidade própria e não se conectam com o universo humano de
maneira dinâmica. No entanto, tal atitude não representa a negação dos
conceitos. Ela quer refazer continuamente a ligação entre as
transformações materiais e as ideias. E o que isso tem a ver com o
cotidiano, ora bolas? A meu ver, tudo.
Penso que deveríamos perder esse preconceito arcaico de ver o
cotidiano como pura alienação. Isso não quer dizer aceitá-lo
acriticamente como ele é em sua manifestação ideológica, nem submeter-se
a ele como fonte de uma explicação mais ampla e profunda. Falo sobre o
cotidiano num sentido mais global. Não só como objeto de estudo, mas
como realidade diária. O cotidiano deve fazer parte do nosso processo de
reflexão diário. O contato com esse quebra-cabeça múltiplo enriquece
muito a pesquisa social.
Alguns teóricos estão desbravando esse território desconhecido, mas
ainda são poucos e a duras penas. Muitas pesquisas empíricas destacam
aspectos que poderiam ser menosprezados por outras abordagens mais
lógicas.
Mesmo no campo do trabalho, que é reduto de um pensamento fortemente
crítico ao cotidiano, boas pesquisas foram feitas por historiadores que
trouxeram, nos dados coletados, as minúcias e os detalhes de um universo
diário em transformação. O cotidiano teve papel fundamental nessas
reflexões, como é o caso da obra de Edward Palmer Thompson (1924-1993).
É lógico que também há muita pesquisa que não leva a nada e que só
acrescenta dados insignificantes. No entanto, mesmo nesses, devemos não
ser tão prepotentes. As pesquisas têm que correr livres com a fértil
imaginação humana. Não há objeto de estudo melhor ou pior que o outro.
Criar não-objetos só estimula o pensamento narcisista a seguir seu
próprio caminho de adoração de si mesmo, sem encontrar obstáculos.
O pensamento lógico-abstrato não quer pensar em outra coisa, a não
ser, nele mesmo. Devemos arriscar um movimento contrário a esse. As
ideias devem acompanhar de perto a mudança e a dinâmica da história em
seus pequenos processos; devem expressar o novo e não se submeter à
repetição do sempre igual, à eternização dessa realidade antagônica.
LEONARDO DE LUCAS DA SILVA DOMINGUES
é Graduado em Ciências Sociais pela UEL e Mestre em Sociologia pela
UFRGS; membro do Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e
Inovação Social (LaDCIS/UFRGS)
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