Estados e empresas já testam sistemas que permitem ocultar ou
eliminar, maciçamente, conteúdos digitais. Para evitar futuro
orwelliano, é preciso agir agora
Por Peter Van Buren | Tradução Cauê Seignemartin Ameni
Após alimentar sonhos de uma comunicação radicalmente livre, a
internet poderia converter-se no exato oposto? A digitalização, que hoje
acelera a circulação de informações em todos os formatos e linguagens,
não facilitaria, também, a eliminação de informações e opiniões que já
não têm existência material — porque foram reduzidas a impulsos
eletrônicos? Nos últimos dias, fatos novos reforçaram a urgência de
considerar estas ameaças com seriedade e de encontrar meios para
afastá-las.
Nos Estados Unidos, depois de analisar a fundo o sistema de
coleta maciça de informações sobre as chamadas telefônicas dos cidadãos,
mantido pela Agência Nacional de Segurança (NSA) um juiz considerou-o,
em 14 de dezembro, “quase orwelliano”. Três dias depois, um grupo de
consultores formado pelo presidente Barack Obama para analisar este
mesmo mecanismo recomendou
uma série de mudanças. Propôs, em especial, retirar os poderes que
pequenos grupos de assessores militares têm hoje para ordenar a
vigilância direta sobre o conteúdo das comunicações mantidas por certas
pessoas, a partir da identificação de seus interlocutores frequentes.
Não há, no entanto, qualquer garantia de que as recomendações sejam
adotadas.
Ao contrário: analistas de assuntos de segurança, ouvidos pelo
“New York Times”, disseram “duvidar” que Obama tenha “coragem” para
enfrentar a vasta rede de agências de espionagem formada após 11 de
setembro de 2001 e a assinatura da “Lei Patriótica“.
Um assessor da Casa Branca afirmou que o presidente analisará as
propostas em suas férias de fim de ano no Havaí, mas que já descarta uma
delas: precisamente a que desmantelaria certas articulações entre tais
agências, para limitar seu poder.
Até onde pode ir este controle sobre a comunicação? No texto a seguir, Peter Van Buren,
um diplomata norte-americano ainda na ativa, chama atenção para um de
seus aspectos mais aterrorizantes. Num mundo em que as informações estão
sendo digitalizadas em enorme velocidade e em que os suportes físicos
estão desaparecendo, pode tornar-se fácil demais “apagar” informação
incômoda. Não se trata apenas de hipótese. Van Buren, que escreve em
publicações como The Nation, Huffington Post e Mother Jones,
apresenta os sistemas que já são utilizados (embora em pequena escala),
por governos e empresas para restringir o acesso dos cidadãos a certos
conteúdos. No momento, prossegue ele, isso é feito com pretextos
consensuais: por exemplo, restringir o acesso a sites que estimulam a
pedofilia e o abuso de crianças. Mas, em novos cenários políticos, as
mesmas técnicas de invisibilização não poderiam ser utilizadas contra
ideias dissidentes? Não estamos arriscados a materializar o “buraco de memória” previsto por George Orwell em “1984″?
O alerta de Van Buren não precisa ser tomado como uma sentença.
Assumir a ameaça como algo inevitável seria, aliás, um convite ao
conformismo. Mas na agenda de temas sobre os quais é preciso agir para
construir um planeta habitável no futuro, parece cada vez mais
necessário destacar a disputa pela liberdade na internet. Talvez o que
esteja em jogo, nesta batalha, seja a própria possibilidade de
democracia e liberdade de expressão. (A.M.)
E se fizessem Edward Snowden
desaparecer? Não, não estou sugerindo alguma iniciativa “inovadora” da
CIA, ou uma teoria conspiratória ao estilo de “quem matou Snowden?”, mas
algo ainda mais tenebroso.
E se simplesmente fosse possível
fazer desaparecer tudo o que alguém denunciou? E pudessem ser
eliminados, em tempo real, todos os documento da Agência de Segurança
Nacional (NSA) revelados pelo ex-agente Snowden — cada entrevista que
ele concedeu, cada indício documentado sobre um Estado de segurança
nacional que fugiu de qualquer controle? E se a publicação de tais
revelações pudesse ser reduzida a um esforço estéril, como se os fatos
não existissem mais?
Estou sugerindo o enredo para o
romance de algum George Orwell do século 21? Dificilmente. À medida que
caminhamos para um mundo totalmente digitalizado, coisas semelhantes
poderiam ser possíveis em breve, não na ficção cientifica, mas no nosso
mundo real, apenas pressionando um botão. Na verdade, os primeiros
protótipos de uma nova técnica de ocultameno radical já estão sendo
testados. Estamos mais perto de uma distópica realidade aterradora, que
poderia ter sido o tema de romances futuristas imaginários. Bem-vindo ao
buraco da memória.
Mesmo se um futuro governo cruzar
novas linhas vermelhas e simplesmente assassinar os vazadores de
informações sigilosas, outros sempre emergirão. Mas em 1948, em sua
assustadora 1984,
no entanto, Orwell sugeriu uma solução mais diabólica para o problema.
Evocou um artificio tecnológico para o mundo do Grande Irmão (Big
Brother) que chamou de buraco da memoria.
Em seu futuro sombrio, exércitos de burocratas, trabalhando
ironicamente no Ministério da Verdade, passavam suas vidas apagando ou
alterando documentos, jornais e livros, a fim de criar uma versão
aceitável da história. Quando alguém caía em desgraça, o Ministério da
Verdade o excluía, e toda documentação relacionada com sua vida, ia para
o buraco da memoria. Cada artigo ou noticia que mencionava ou
registrava de alguma maneira sua vida era modificado para erradicar todo
o indicio de sua existência.
No mundo pré-digital de Orwell, o
buraco da memoria era um tubo de vácuo no qual velhos documentos eram
fisicamente destruídos para sempre. As alterações de documentos
existentes e a eliminação de outros asseguravam que nem mesmo as
repentinas alterações de alianças e inimigos globais estabilidade
representassem problema para os guardiões do Grande Irmão. Neste mundo
imaginado, graças aos exércitos de burocratas, o presente era o que
sempre havia sido e os documentos alterados comprovavam este fato, sem o
risco de que memórias titubeantes pudessem argumentar em contrário.
Qualquer pessoa que expressasse dúvidas sobre a verdade do presente
seria marginalizada ou eliminada, sob acusação de “crime de
consciência”.
Censura digital, governamental e corporativa
A maioria de nós acessa notícias,
livros, músicas, filmes e outras formas de comunicação por meios cada
vez mais eletrônicos. O Google já tem mais receita publicitária que o conjunto de todos os meios impressos dos EUA. Mesmo a venerável Newsweek não publica mais uma edição em papel. E nesse mundo digital esta se explorando a possibilidade de um certo tipo de simplificação. Os chineses e iranianos
entre outros, por exemplo, já implementaram estrategias de filtragem na
web para bloquear o acesso a sites e material que não são aprovados
pelos governos. Do mesmo modo (embora sem sucesso), o governo dos EUA bloqueia
o acesso de seus funcionários ao Wikileaks e ao material divulgado por
Edward Snowden, ainda que a censura não prevaleça em suas casas. Ainda
não.
A Grã-Bretanha, no entanto, dará em
breve um passo significativo, no que diz respeito ao que o cidadão pode
ver na web, inclusive quando está em sua casa. Antes do fim do ano,
quase todos os usuários de internet serão incluídos num sistema
destinado a filtrar
a pornografia. Por padrão, os controles também bloquearão o acesso a
material violento, conteúdo relacionado a extremistas e terroristas,
sites relacionados a anorexia, distúrbios alimentares e suicídios, assim
como sites que mencionem álcool e tabagismo. O filtro também bloqueará
material esotérico, embora grupos ativistas baseados no Reino Unidos
exijam explicações.
E as formas de censura na internet
patrocinadas pelos governos estão sendo privatizadas. Novos produtos
comerciais, de fácil aplicação, garantem que uma organização não precise
ser a NSA para bloquear conteúdos. Por exemplo, a Blue Coat
é uma empresa-líder em “segurança” na internet é uma importante
exportadora de tais tecnologias. Pode estabelecer facilmente um sistema
para monitorar e filtrar todo o uso da internet, bloqueando sites por
seu endereço www, por palavras-chaves ou mesmo por seu conteúdo. O
software da Blue Coat é empregado, entre outros, pelo exército dos EUA,
para controlar o que seus soldados veem quando deslocados ao exterior; e pelos governos repressivos da Síria, Arábia Saudita e Myanmar para bloquear ideia políticas do exterior.
Busca no Google…
Em certo sentido, o buscador do
Google também poderia fazer desaparecer material. No momento, é
simpático aos denunciantes. Uma rápida busca (0,22 segundos) produz mais
de 48 milhões de hits sobre Edward Snowden, que se referem em sua
maioria aos documentos filtrados da NSA. Alguns dos sites apresentam os
próprios textos, etiquetados como Top Secret.
Há menos de meio ano, somente membros de um grupo muito limitado no
governo, ou conectado contratualmente com ele, poderiam ver coisas
semelhantes. Agora, estão disponíveis em toda a web.
Buscador numero um na internet, o Google parece uma máquina para
difundir maciçamente — e não suprimir — noticias. Coloque qualquer
informação na web e é provável que o Google encontre-a rapidamente,
agregando-a aos resultados de sua busca no mundo inteiro, às vezes em
segundos. Mas como poucas pessoas pesquisam além dos primeiros
resultados, o simples fato de estar presente ou oculto entre estes tem
enorme significado. Já não basta fazer com que o Google note o que você
produz. O que importa agora é conseguir que coloque o material
suficientemente acima, na pagina de resultado das buscas. Se o seu site é
o numero 47.999.999, numa pesquisa sobre Snowden, você pode dar-se por
morto, praticamente desapareceu. Pense nisso como ponto de partida para
as formas mais significativas de desaparecimento, que podem nos aguardar
no futuro.
Ocultar algo aos usuários,
reprogramando as maquinas de busca, é outro passo sombrio no futuro.
Mais um é a eliminação efetiva de conteúdos, um processo que exigiria
reprogramar os computadores que realizam a pesquisa. E se o Google se
negar a implantar esta possível mudança em direção a buscas destrutivas,
a NSA — que parece já ser capaz de projetar seus tentáculos dentro do buscador — poderia implantar sua própria versão de um código maligno, como já fez em pelo menos 50 mil casos.
Mas não se preocupe apenas com o
futuro: uma estratégia de busca negativa já funciona, mesmo que seu
objetivo atual, agir contra os pedófilos, seja fácil de aceitar. O
Google introduziu recententemente um software que dificulta a busca de
material relacionado a abuso infantil. Como disse o chefe da empresa, Eric Schmidt, o buscador foi programado
para limpar mais de 100 mil palavras-chaves usadas por pedófilos para
buscar pornografia infantil. Agora, por exemplo, quando os usuários
fizerem pesquisas que possam estar relacionadas com abuso sexual, não encontrarão
resultados que levem a conteúdo ilegal. Em seu lugar, o Google orienta
para sites de ajuda e conselhos. Em breve presenciaremos essas mudanças
em mais de 150 idiomas, de modo que o impacto seja verdadeiramente
global, escreveu Schmidt.
Enquanto o Google reorienta as
buscas de pornografia infantil para sites de aconselhamento, a NSA
desenvolveu uma capacidade parecida. A agência controla um conjunto de
servidores com o codinome Quantum,
que se encontram na rede central da internet. Sua tarefa é reorientar
objetivos, afastando-os dos destinos solicitados e redirecionando-os
para sites preferidos pela agência. A ideia é: você digita o endereço de
um site e é conduzido a outro, menos odiado pela agencia. Embora
atualmente essa tecnologia seja usada para enviar potenciais jihadistas
online a materiais islâmicos mais moderados, no futuro poderá ser
empregada, por exemplo, para reorientar as pessoas que procuram noticias
de site como a Al-Jazeera a outra agência, que se ajuste à versão dos
fatos construída pelo governo.
… e destrói!
No entanto, as tecnologias de
bloqueio e reorientação, que provavelmente serão mais sofisticadas no
futuro, não constituem a maior ameaça. O Google já prepara o passo
seguinte, a serviço de uma causa que quase todos aplaudirão. Está
implementando tecnologia capaz de identificar imagens fotográficas de
abuso infantil cada vez que aparecem em seu sistema, assim como
tecnologia de comprovação capaz de verificar e eliminar vídeo ilegais.
As ações da empresa para combater a pornografia infantil podem ser muito
bem intencionadas, mas a tecnologia que esta sendo desenvolvida para
tanto deveria nos aterrar a todos. Imagine se, em 1971, os Papéis do Pentágono,
o primeiro documento sobre as mentiras da guerra do Vietnã a que a
maioria dos norte-americanos teve acesso, houvessem sido eliminados. Se a
Casa Branca de Nixon tivesse desaparecido com esses documentos, a
história não teria seguido um caminho diferente, muito mais sombrio?
Ou considere um exemplo que já é
realidade. Em 2009, muitos donos de leitores de livros digitais Kindle
descobriram que a Amazon havia colocado suas mãos em seus aparelhos
durante a noite e eliminado remotamente as copias de Revolução do Bichos e 1984
de Orwell (não é uma ironia). A empresa explicou que os livros,
publicados por erro em suas maquinas, eram na realidade, copias dos
romances vendidas ilegalmente. Da mesma maneira em 2012, Amazon apagou
o conteúdo do Kindle de um cliente sem advertência prévia, afirmando
que sua conta estava relacionada com outra conta que havia sido
previamente encerrada por ir contra as políticas da empresa. Usando a
mesma tecnologia, a Amazon tem agora a capacidade de atualizar livros em seu aparelho, com o conteúdo alterado. Depende da empresa informar os usuários a respeito ou não.
Além do Kindle, o controle remoto
sobre outros aparelhos já é uma realidade. Grande parte dos softwares de
nossos computadores comunica-se, em segundo plano, com servidores da
empresa produtora, sendo sujeitos a atualizações automáticas que podem
alterar seu conteúdo. A NSA utiliza malware, software maligno implantando remotamente em um computador, para alterar o modo de funcionamento da máquina. O código do vírus Stuxnet,
que provavelmente danificou mil centrifugas usadas pelos iranianos para
enriquer urânio, é um exemplo de como pode operar algo parecido.
Atualmente, cada iPhone já checa,
com a sede central [da Apple], que aplicativos foram comprados; e sobre
que links você clica rotineiramente, A Apple preserva-se o direito de desaparecer
com qualquer aplicativo, por qualquer motivo. Em 2004, TiVo processou a
Dish Network por entregar a seus clientes set-top boxes [equipamento
para conectar televisões], que segundo a TiVo infringiam suas patentes
de software. Apesar do caso ter sido solucionado em troca de uma grande
indenização, como remédio inicial, o juiz ordenou a Dish que desativasse eletronicamente
todos os 192 mil aparatos que havia instalado nas casas dos clientes.
No futuro, pode haver cada vez mais meios para invadir e controlar
computadores, alterar e fazer desaparecer o que está sendo lido, enviar
os internautas a sites que não buscavam.
As revelações de Snowden, sobre o
que faz a NSA para reunir informação e controlar a tecnologia,
fascinaram o planeta desde junho, mas são apenas parte da equação. Como o
governo ampliará seus poderes de vigilância e controle no futuro é uma
história que ainda não foi contada. Imagine instrumentos para ocultar,
alterar ou eliminar conteúdos com campanhas difamatórias para
desacreditar ou dissuadir denunciantes. O poder que está potencialmente à
disposição dos governos e corporações tornou-se mais evidente.
A possibilidade de ir além de
alterar conteúdos, e modificar a maneira como as pessoas atuam também se
encontra, obviamente, nas agendas governamentais e corporativas. A NSA
já reuniu dados para chantagem espionando o acesso de muçulmanos radicais a pornografia digital. Também interceptou
eletronicamente um congressista norte-americano sem possuir um mandato
judicial. A capacidade de reunir informações sobre juizes federais,
dirigentes do governo e candidatos presidenciais fazem com que os esquemas de chantagem de J. Edgar Hoover, no
FBI da década de 50, parecerem tão pitorescos quando as meias soquete e
saias poodle da sépoca. As maravilhas da Internet nos maravilham todos
os dias. As possibilidades distópicas orwellianas da rede não tinha, até
recentemente, chamado a nossa atenção da mesma forma. Elas deveriam.
Leia isso agora, antes que seja apagado
O possível futuro que espera os futuros vazadores de informação dos
serviços de inteligência é aterrorizante. Agora, quase tudo é digital.
Se grande parte do tráfico da internet mundial flui através dos Estados
Unidos ou países aliados (ou da infra-estrutura de companhias
norte-americanas no exterior); se máquinas de busca podem encontrar em
questão de frações de segundos qualquer coisa; se, nos EUA, a Lei Patriótica e as decisões secretas do Tribunal de Supervisão da Inteligência Externa convertem o Google e gigantes da tecnologia em enormes instrumentos
do Estado de segurança nacional; e se tecnologias sofisticadas podem
bloquear, alterar e apagar material digital, apertando apenas um botão, o
buraco da memoria já não é mais ficção.
Revelações vazadas terão tão pouco
sentido como velhos livros empoeirados no sótão, cuja existência é
ignorada. Poste o que quiser. As leis de liberdade de expressão permite
que você o faça. Mas que sentido haverá, se ninguém puder ler? Seu tempo
seria melhor empregado parando em alguma esquina e gritando aos
transeuntes. Num futuro já fácil de imaginar, um conjunto de revelações
similares às de Snowden poderá ser bloqueado ou excluído com tanta
rapidez que ninguém poderá republicá-las.
Tecnologia em contínuo
desenvolvimento, se viradas 180 graus, poderão eliminar maciçamente
informações e opiniões. A internet é um espaço amplo, mas não infinito.
Está centralizando rapidamente informações nas mãos de poucas
corporações, sob o controle de poucos governos e os EUA encontram-se no
centro das principais rotas de trânsito da rede.
Agora, você deveria sentir um
calafrio. Estamos vendo, em tempo real, como 1984 passa de uma fantasia
futurista para um manual de instruções. Se isso ocorrer, não será
necessário matar um futuro Edward Snowden. Ele já estará morto.
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