Qual a relação da queda da preocupação do brasileiro com a
corrupção e as “constantes notícias” – uma verdadeira campanha de
moralidade seletiva e criminalização da política – veiculadas na grande
mídia desde 2005?
A cobertura homogênea que a grande mídia vem fazendo do
julgamento da Ação Penal nº 470 – paralelo ao período de campanha
eleitoral – e os resultados das eleições municipais de 2012 recolocam a
questão da formação da opinião pública, da percepção que ela tem sobre a
corrupção e das consequências políticas dessa percepção, em particular
na decisão do voto.
Em artigo anterior, neste Observatório, (“Poder da mídia, contradições e (in)certezas“)
– reproduzi resultado e comentário do Ibope sobre pesquisa comparada
que registrou as “preocupações dominantes” dos brasileiros nos anos de
1989 e 2010. Diz o comentário:
“Apesar das constantes notícias sobre o assunto, o combate à
corrupção também preocupa menos o brasileiro: de 20% passou a ser citada
por 15% dos entrevistados.”
Perguntava, então: qual a relação da queda da preocupação do
brasileiro com a corrupção e as “constantes notícias” – uma verdadeira
campanha de moralidade seletiva e criminalização da política –
veiculadas na grande mídia desde 2005?
Ao contrário do que o artigo possa ter sugerido, não há resposta simples para essa questão.
Pesquisas sobre corrupção
O livro Corrupção e Sistema Político no Brasil,organizado
pelos professores Leonardo Avritzer e Fernando Filgueiras, do Centro de
Referência do Interesse Público (CRIP) da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), lançado recentemente pela editora Civilização Brasileira,
é uma coletânea de análises de resultados de pesquisas nacionais –
realizadas em 2006, 2008 e 2009 – que investigam o tema da corrupção em
variadas dimensões.
No capítulo escrito pela professora Rachel Meneguello (Unicamp), por
exemplo, pesquisa realizada no ano eleitoral de 2006, dentro do ESEB –
Estudo Eleitoral Brasileiro coordenado pelo Cesop/Unicamp, chega a
conclusões aparentemente divergentes daquelas do Ibope em relação à
hierarquia das “preocupações dominantes” dos brasileiros: a corrupção
aparece não só como “problema mais importante debatido na eleição de
2006”, como “principal problema político do país” (cf. tabela abaixo).
Por outro lado, em duas pesquisas realizadas pelo CRIP-UFMG junto com
o Instituto Vox Populi, em 2008 e 2009, a corrupção é percebida por
quase a totalidade da opinião pública como constituindo um problema
muito grave ou grave (cf. gráfico abaixo).
Gráfico 1. A gravidade da corrupção (%)
O que as análises indicam, no entanto, é uma “dificuldade” da
percepção da opinião pública sobre a corrupção ser transferida para o
comportamento eleitoral.
Rachel Meneguello diz explicitamente:
“O que nos intriga é a “independência” entre as percepções sobre a
corrupção [...], pois ela coloca uma distância entre a ideia de
democracia e as noções de transparência e de controle do tráfico de
influência. [...] Os dados de dezembro de 2006, coletados após a
reeleição do presidente Lula, não apenas mostraram que as denúncias de
corrupção não foram suficientes para punição do governo, mas, sobretudo,
que a avaliação retrospectiva que influencia o voto do eleitor é
multidimensional e envolve identificação política, ideologia e avaliação
de desempenho do sistema em outras dimensões, como a economia e as
políticas de redistribuição de renda. Os dados indicam uma zona nublada,
na qual reside um juízo normativo sobre a corrupção que não afeta de
forma significativa o comportamento político mais imediato do eleitor ou
a avaliação e o apoio ao sistema político. Essa área parece ser o nó
entre o impacto da corrupção e as bases da adesão democrática — como
diminuir a distância entre a percepção, o juízo moral e a prática
política” (pp. 81-82, passim).
A ausência da mídia
Infelizmente, dos nove capítulos do livro, apenas dois enfrentam
diretamente a questão central da mídia, não só em relação à formação da
opinião pública, como, sobretudo, de sua influência específica nas
percepções sobre a corrupção em suas varias dimensões.
No capítulo escrito pela editora de Política do jornal Valor Econômico (grupos Folha e Globo), a jornalista Maria Cristina Fernandes admite que:
“A imprensa é parte da disputa democrática pelo Estado, e a essa
serve tanto em benefício de sua explicitação quanto no acobertamento de
seus ditames. Há uma lógica jornalística que lhe é própria e nem sempre
se encaixa nos pressupostos da teoria vigente. Domina a imprensa uma
concepção ainda difusa de defesa da cidadania no âmbito da qual a
corrupção aparece como fenômeno difuso e descolado de interesses
consolidados e duradouros. Esse descolamento impede não apenas o
esclarecimento dos nexos de interesse que dão corpo e materialidade à
corrupção, mas também obstrui seu combate efetivo pela sociedade e pelo
Estado. Este (capítulo) [...] tentará mostrar que o espaço ocupado pelas
denúncias tem sido inversamente proporcional à identificação dos
interesses em disputa nas campanhas eleitorais. E a hipótese aqui
levantada é que essa relação guarda causa e efeito.” (p. 203)
Além disso, ao analisar a Tabela 7 [abaixo] – que só aparece no seu capítulo – Maria Cristina comenta:
Tabela 7. Favorecimento da mídia na apuração de escândalos/2009
“A pesquisa corrobora a tese de que a mídia nem sempre trafega com
independência pelos interesses em conflito, mas também questiona a visão
de que os meios de comunicação exercem um poder ilimitado sobre os
cidadãos. Mais da metade dos entrevistados acredita que a mídia favorece
alguém ou algum grupo na divulgação dos escândalos. E essa percepção
cresce na medida em que os níveis de renda e escolaridade se elevam. No
Sudeste, onde se concentra a sede dos maiores jornais e emissoras de
rádio e TV, é maior a crença de que a mídia é injusta e parcial ao
cobrir escândalos de corrupção” (p. 217).
Na verdade, são os entrevistados que responderam a essa questão no
Centro-Oeste, no Norte e no Sudeste (e não na média nacional) que
acreditam que “a mídia favorece alguém ou algum grupo na divulgação dos
escândalos”.
De qualquer forma, esse dado combinado com outro que não está no livro, mas publicado no site Contas Abertas
quando os resultados da pesquisa CRIP/Vox Populi foram divulgados em
março de 2010 (cf. quadro abaixo), compõem um panorama bastante
expressivo sobre a percepção da opinião púbica sobre a grande mídia
brasileira.
Vale dizer, boa parte da opinião pública não só acredita que “a mídia
é injusta e parcial ao cobrir escândalos de corrupção”, como entre 2008
e 2009, houve uma queda de 18% [ou 30% dos entrevistados] no número
daqueles que percebiam a mídia como sendo imparcial e subiu em 50% o
número daqueles que acreditavam que ela era parcial (de 26% para 39%).
Em sua opinião, a mídia costuma ser mais: | 2008 | 2009 |
Imparcial | 60% | 42% |
Parcial | 26% | 39% |
Não sabe/não respondeu | 14% | 19% |
Total | 100% | 100% |
Número de entrevistados | 2421 | 2400 |
Mídia como obstáculo
O outro capítulo do livro que enfrenta diretamente a questão da mídia
foi escrito pelo professor Juarez Guimarães, da UFMG. Propondo uma
pesquisa conceitual a partir dos dados empíricos da pesquisa CRIP/Vox
Populi, ele identifica duas linguagens distintas de diagnosticar e
combater a corrupção: numa predomina a razão liberal e na outra, a razão
republicana.
A razão liberal é amplamente hegemônica na cobertura da grande mídia e
se articula em torno de três núcleos de ideias: a corrupção dos
políticos e do Estado é cada vez maior no Brasil; a base
político-econômica dessa expansão da corrupção está no alargamento da
intervenção do Estado e de suas funções e empresas; e, a base
político-social desse fenômeno caracteriza um neopopulismo, com arranjos
corporativos escusos, formação de clientelas, arrivismos nutridos no
Erário e até, eventualmente, a formação de uma “nova classe financeira”.
Já a razão republicana, fundada no conceito de formação da República
democrática brasileira, se estrutura em torno de três blocos de ideias:
reconhece que está em curso um amplo e profundo processo de formação de
uma cultura cidadã; idem que está em movimento, ao mesmo tempo, uma
macro reestruturação dos fundamentos econômicos e sociais da sociedade
civil brasileira e um novo ciclo participativo (…) fazendo a interação
entre instituições e movimentos ou representações sociais; e ibidem que
está em processo inicial, diferenciado e desigual de formação
republicana das instituições e dos procedimentos do Estado brasileiro,
instituições exemplificadas na construção da Controladoria-Geral da
União (CGU) e suas agendas.
Para Juarez Guimarães, além da ausência de financiamento privado dos
partidos nas eleições, o grande obstáculo ao processo de formação
republicana no Brasil é o “domínio privatista e oligopolista da mídia
que desconecta os processos de formação da cultura cidadã e da opinião
pública”.
Afirma ele:
“Tratam-se de cinco fenômenos mutuamente configurados: grave redução
do pluralismo político e cultural; supervocalização de alguns interesses
privados e subvocalização de vastos setores sociais; deformação
sistemática da objetividade da notícia e, inclusive, de uma legitimação
da calúnia como instrumento de ação política; e partidarização indevida
ou não revelada de canais e de meios de comunicação que deveriam ser
públicos. É evidente que esse obstáculo à formação da opinião pública em
uma sociedade democrática de vastas população e territorialidade incide
sobre a percepção do fenômeno da corrupção, em particular devido à
nítida matriz liberal que predomina quase inteiramente na mídia
empresarial” (p. 100).
“A corrupção do espaço público”
Na mesma linha do argumento republicano de Juarez Guimarães, o
professor João Feres Júnior (IESP-UERJ), em artigo republicado no site
do CRIP-UFMG sob o sugestivo título “A grande mídia e a corrupção do espaço público“, alertou recentemente:
“Os órgãos da grande mídia continuam os mesmos, com os mesmos poucos
donos, os mesmos editores e colunistas conservadores, os mesmos
jornalistas. E esse constitui o principal problema da democracia
brasileira atual: a corrupção do espaço público. A grande mídia ainda é
responsável em boa medida pela informação da maior parte da população e,
dessa maneira, é influente na formação da opinião pública. [...] Temos
aqui uma tensão estrutural em uma sociedade que é ao mesmo tempo
democrática e capitalista. A propriedade privada dos meios de
comunicação, particularmente em seu formato oligopolizado, conduz à
usurpação do espaço público em prol dos interesses dos poucos grupos que
detém os meios. Na prática, os proprietários tem poder de veto e de
agenda sobre tudo o que é informado ao público. [...] A corrupção do
espaço público é o calcanhar de Aquiles da democracia brasileira, e esse
é um calcanhar enfraquecido, luxado, distendido. Sem um sistema de
informação plural e responsável não teremos uma formação saudável da
opinião pública. Sem uma opinião pública bem informada como poderemos
esperar o aprimoramento das instituições, o avanço das questões
normativas que se colocam constantemente perante uma sociedade
democrática (proibição do porte de armas, aborto, eutanásia, bioética
etc.) e mesmo a eleição de melhores quadros de representantes?”
Diante de todos esses dados e análises – alguns, aparentemente
contraditórios – e para além dos efeitos de curto prazo identificados
(ou não) nos processos eleitorais, é inegável que a grande mídia
desempenha um papel de longo prazo na formação da opinião pública,
incluindo, por óbvio, a percepção sobre a corrupção.
O que está de facto em jogo, no entanto, é “a corrupção do
espaço público” como obstáculo central à construção de uma democracia
republicana. Ela não será possível sem que se criem as condições
estruturais necessárias para a formação de uma opinião pública
democrática, plural e diversa. Vale dizer, para que mais vozes sejam
ouvidas e participem do espaço público através da universalização da
liberdade de expressão.
A ver.
***[Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012/2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado)
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