Inauguração de presídio privado em MG sugere debate: quais os limites de expansão do capitalismo? Que Marx tem a ver com isso?
Por Daniel Bin
Em A era dos extremos, o historiador Eric Hobsbawm
observou que uma das reações dos comentadores ocidentais ao colapso do
regime soviético fora ratificar o triunfo permanente do capitalismo. Um
pouco disso e, ainda mais, o desejo de durabilidade de tal triunfo
animaram outros a proclamar que as teses expostas pela economia política
marxista estariam ultrapassadas. Contudo, essa mesma permanência do
capitalismo nos autoriza a pensar justamente o oposto. Simplificações
como as que recorrem à “queda do muro” para defender o abandono das
teses de Marx não se sustentam diante do argumento sintetizado pelo
sociólogo Michael Burawoy quando diz que “a longevidade do capitalismo
garante a longevidade do marxismo.”
Se dermos um passo adiante em relação a essa noção de permanência,
podemos lançar a hipótese de aprofundamento das relações capitalistas. O
exemplo mais completo é a ampliação da exploração do trabalho, seja
direta, no local de produção, ou indireta, por exemplo, via redução do
financiamento de políticas de bem-estar, que funcionam como salário
social e cujas reduções engendram ampliação da exploração em termos
agregados. Evidência desse conjunto de transformações é o aumento da
desigualdade no nível da economia mundial ao longo dos últimos quarenta
anos.
Mas é sobre outra figura que gostaria de chamar atenção nesse
processo de aprofundamento capitalista. Trata-se da mercadoria, objeto
que Marx tomou como ponto de partida de sua análise em O Capital.
Na primeira frase daquele livro lê-se que “a riqueza das sociedades em
que domina o modo de produção capitalista apresenta-se como uma ‘imensa
acumulação de mercadorias.’”Cabe observar que a mercadoria é ponto de
partida não apenas do estudo exposto em O Capital, mas do próprio modo de produção que lhe serviu de objeto. Ao concluir o volume I do livro com a seção intitulada A chamada acumulação primitiva, Marx tinha em mente justamente o processo por meio do qual a capacidade de trabalho fora convertida em mercadoria.
Esforço-me agora para colocar em contexto similar alguns primeiros
exemplos que, se não são da maior relevância para as estatísticas
econômicas, o são para ilustrar fenômenos outrora não tão facilmente
imagináveis com tais. Contudo, eles se tornam menos surpreendentes se
lembrarmos que este é um momento marcado por aquilo que a historiadora
Ellen Wood chama de “commodification of life”, cujo significado contextual é algo próximo de “conversão das condições de vida em mercadoria.”
Em abril passado, vimos a imagem do jogador de futebol Daniel Alves
recolhendo e comendo uma banana que fora arremessada em sua direção em
mais uma das manifestações racistas já comuns em estádios europeus. Logo
em seguida, o jogador Neymar lançou em rede social a campanha marcada
pelo insultante “somostodosmacacos.” Pouco depois, a empresa do ramo de
vestuário Huck começou a ofertar comercialmente uma camisa com aquele mesmo dizer. Aqui importa menos a alegação de
que o faturamento com a venda das camisas seria revertido para o
terceiro setor e que a empresa nada lucraria com a comercialização. Fato
é que, independente das somas movimentadas e da destinação que se lhes tenha dado, estava ali a figura da mercadoria.
Outro exemplo que segue lógica similar tem a ver com algo que parece
te virado moda, literalmente, para um certo estrato social que, de
repente, resolveu protestar contra “tudo que está aí.” Há algumas
semanas, por meio de uma estampa em camiseta, responsáveis pela marca de
roupas Ellus resolveram bradar “abaixo este Brasil atrasado.” É
possível que seu objetivo fosse também — ou principalmente — político,
mas seria temerário descartar a hipótese da motivação mercantil. Por que
não aproveitar a onda de indignação de um estrato social que é capaz de
pagar pelo protesto? Não seriam os primeiros, como pode ser visto, por
exemplo, nas camisetas “para protestar”.
Talvez os casos acima sugiram algum exagero de minha parte; por isso,
é preciso colocá-los no devido lugar em termos de importância para a
discussão do tema mercadoria. Conforme já sugeri, são casos pouco
significativos em termos do quanto mobilizaram de trabalho e capital e
do quanto adicionaram de valor à economia. Contudo, o mesmo não pode ser
dito acerca dos aspectos qualitativos da mercadoria. Talvez uma
implicação importante de movimentos como estes seja ideológica, no
sentido de empurrar os limites daquilo que pode ser considerado
socialmente aceitável como mercadoria. Não obstante, adicionemos à
discussão casos estatisticamente mais significativos.
Eventos recentes de mercantilização dos mais relevantes são as
privatizações em áreas como educação, saúde ou previdência. Estas
assumem diversas formas, mas, de um modo geral, surgem ocupando espaços
abertos pela redução calculada do financiamento estatal. Com isso,
atividades outrora concebidas como públicas passam a ser apresentadas
como potenciais áreas de exploração capitalista em larga escala. E no
momento em que parte considerável dos ativos estatais já foi alienada,
surge, como uma espécie de privatização disfarçada, a chamada parceria
público-privada. Panaceia para alegadamente imprimir eficiência aos
serviços prestados pelo Estado, ela acaba formalizando no varejo uma
associação entre o Estado moderno e o capital que existe desde o
surgimento de ambos.
Nem mesmo o monopólio do uso da força reivindicado pela conceituação
liberal de Estado escapa – o que se observa há algum tempo no
crescimento da oferta de serviços privados de “segurança.” Estes, a
despeito da dependência do sentimento disseminado de insegurança, se
apresentam como preventivos e auxiliares de tarefas das quais o Estado
alegadamente não dá conta. Num passo adiante na lógica mercantil, também
para o ato de punir, outrora visto como atribuição exclusiva do Estado,
inaugura-se aquilo que poderia ser chamado de indústria do
encarceramento. Seu exemplo mais significativo é o que ocorre nos
Estados Unidos. Na “terra dos livres”, onde vivem 5%
da população mundial, estão 25% da população carcerária do planeta, o
que apenas no ano de 2010 custou ao país cerca de 80 bilhões de dólares.
Importante notar que a população carcerária dos EUA atualmente supera 2,4
milhões de pessoas. Mais que quadruplicou desde 1980, momento que
coincide com a ascensão do pensamento conservador e da propaganda sobre
os benefícios universais do livre mercado. Qual exemplo poderia melhor
sintetizar a combinação de um conservadorismo que clama por punições
cada vez mais severas e abrangentes com um fundamentalismo que enxerga
qualquer coisa como mercadoria? Possivelmente há outros, mas fato é que,
entre meados dos anos 1990 e meados dos anos 2000, a quantidade de
prisões operadas por empresas privadas nos EUA passou de cinco a cem.
E esse mesmo tipo de mercantilização já começa a chegar ao Brasil. Em
janeiro de 2013 foi inaugurada a primeira penitenciária do país
construída sob o regime de parceria público-privada, localizada em
Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. Nas palavras
do governador do
Estado, o novo complexo prisional visa “otimizar os recursos públicos
para que a eficiência, a efetividade e a eficácia sejam vocacionados
para o sistema prisional”. Sobre este caso e suas potenciais motivações e
implicações socioeconômicas vale a leitura atenta da reportagem “Quanto
mais presos, maior o lucro”, da Agência Pública. Dali destaco o
apontamento acerca das garantias de retorno sobre o investimento privado
com o qual o governo se compromete via manutenção de uma ocupação
mínima de vagas prisionais.
Num país onde a população prisional é a quarta —
terceira se computadas as pessoas em prisão domiciliar — maior do
mundo, e onde começa a se disseminar o modelo inaugurado por Minas
Gerais, que nos últimos dez anos duplicou a
quantidade de presos, a simultaneidade de certos fenômenos não pode ser
desprezada. Somam-se a isso as crescentes pressões conservadoras pela
redução da maioridade penal e de criminalização dos movimentos sociais, o
que aponta para uma outra simultaneidade, de desocupação das ruas e de
ocupação de prisões. Prisões existentes ou prisões a construir dentro de
um novo esforço de investimentos em prédios, dispositivos de
vigilância, armamentos, alimentação, uniformes etc., estruturando-se
assim toda uma cadeia de mercadorias.
Esta análise pode parecer um tanto sombria ao apontar tendência de
aprofundamento das relações capitalistas e das desigualdades que elas
engendram. Mas um pensamento dialético nos convida a olhar para
possibilidades distintas. Com isso, retomo Marx, que pode parecer ter
ficado distante, restrito a uma citação quanto ao lugar da mercadoria em
seus métodos de explicação e de exposição do modo de produção
capitalista. Além do convite que a dialética nos faz para olhar para
reversão das possibilidades aqui apontadas, a própria existência destas e
de similares mostra, também, limites do contexto em que se desenvolvem.
Na medida que um determinado regime de acumulação começa a apresentar
dificuldades crescentes de reprodução, a busca de alternativas por parte
do capital é ela mesma sinal dos seus próprios limites. Muito do que
vemos hoje é reação justamente à exaustão do regime de acumulação que
vigorou ao longo de meados dos anos 1940 a meados dos 1970.
Concordando com o que diz David
Harvey sobre a necessidade de um projeto, para além das constatações e
dos protestos, entendo que a resistência à lógica de mercantilização é
questão a ser tratada com atenção especial nas pautas dos movimentos
progressistas. Essa luta desempenha duplo papel, sendo o mais imediato a
busca pela redução — ou pela contenção do aumento — das desigualdades
sinalizadas pela privatização e pela conversão de tudo quanto for
possível em mercadoria. O outro papel tem a ver com prazo mais longo.
Lutar contra a privatização da saúde ou da educação; lutar a favor do
passe livre no transporte público; enfim, lutar a favor do que é público — o que não se resume ao estatal — e contra a mercantilização aponta para a construção de um outro futuro.
Se o crescente processo de conversão em mercadoria tem sido mecanismo
por meio do qual o capital enfrenta suas crises, combater essa
possibilidade é combater a própria capacidade de reprodução do capital.
Se no passado os movimentos progressistas tinham nas relações de
produção o terreno primeiro de suas lutas, a ampliação desse espaço
segue necessária. O aprofundamento das relações capitalistas e das suas
crises coloca para esses mesmos movimentos um desafio que é também
oportunidade, cujo aproveitamento depende da capacidade de bloquear os
meios pelos quais o capital posterga a sua derrocada.
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