As greves que têm ocorrido no País desde o
começo de 2014 dividem a opinião pública. Embora asseguradas pela
Constituição, permanecem alvo de tentativas de repressão e punição
Por Anna Beatriz Anjos, fotos por Mídia NINJA
Para o Brasil, 2014 tem sido movimentado, como já era possível prever
antes mesmo do ano começar. Copa do Mundo e corrida eleitoral são os
combustíveis que alimentam essa fogueira social. Além das ruas, tomadas
por movimentos sociais desde junho de 2013, outro fator colaborou para o
ambiente de contestação que se espalhou pelo país: as greves.
Desde o início do ano, diversas categorias têm aderido a
paralisações. Dentre as que ganharam mais destaque, estão a dos garis,
no Rio de Janeiro, que durou oito dias (de 1º a 8 de março, logo após o
Carnaval); a dos policiais militares em Recife – que durou apenas 24
horas (de 14 a 15 de maio), mas terminou com 234 pessoas detidas por
furto, roubo, posse ilegal de armas e outros crimes e levou às ruas a
Força Nacional de Segurança Pública; a dos motoristas e cobradores de
ônibus em São Paulo, que cruzaram os braços entre os dias 20 e 21 de
maio; a dos metroviários, também em São Paulo, que não trabalharam por
cinco dias (de 5 a 9 de junho); e, agora, a dos motoristas e cobradores
de ônibus de Natal, que já entra no segundo dia (se iniciou na última
quinta-feira, 12).
A constante de todas estas mobilizações é que elas são iniciativas de
funcionários públicos – como é o caso da Companhia do Metropolitano de
São Paulo (Metrô) – ou de atividades terceirizadas pelos governos
municipais, no caso do transporte de ônibus. Talvez por isso, surge a
suposição de que têm motivação política – como se ocorressem
simplesmente para atingir às atuais gestões. O governador Geraldo
Alckmin (PSDB) fez uma afirmação
exatamente nesse sentido: disse que os metroviários pararam suas
atividades “nitidamente” por um “motivo político”. Relacionou a
suspensão do trabalho, ainda, à proximidade à Copa do Mundo – período
que traria maior visibilidade ao movimento.
“A gente tem que perguntar por que os metroviários, por exemplo,
estão fazendo greve nesse momento. Será que é por causa da Copa do
Mundo? Em parte, sim. Mas isso deve ser explicado também porque é a hora
do dissídio, da database. É a época do ano em que os metroviários
negociam o reajuste salarial para recompor as perdas do período”,
destaca o cientista político Pedro Fassoni Arruda, professor da
Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP).
Amparados pela lei
Desde 1988, a greve é um direito do trabalhador no Brasil, garantido pelo artigo 9º da Constituição Federal.
A lei mencionada pelo texto foi sancionada um ano depois, em 1989. De número 7.783,
ela define os direitos e deveres dos grevistas. Determina, já em seu
segundo artigo, que é “legítimo exercício do direito de greve a
suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de
prestação pessoal de serviços a empregador.”
Portanto, as paralisações, por si só, não podem ser condenadas. “A
greve é um direito e não pode ser considerada crime. O que pode
acontecer é simplesmente ela não seguir as regras previstas na
legislação. Isso a torna ilegal”, explica a advogada Fabíola Marques,
especialista em direito trabalhista.
“A greve é uma forma de solução de conflitos. Quando um grupo de
empregados, representado por um sindicato, não tem mais condições de
negociar com o empregador, ele se utiliza da greve exatamente como meio
de força para tentar uma negociação, um direito que está sendo violado
ou que ele acha que precisa ser melhorado”, explica Marques. É
exatamente isso que estipula o artigo 3º da lei, que permite a cessação
coletiva do trabalho em caso de esgotamento de recursos por via
arbitral.
São também direitos preconizados pelo texto a arrecadação de fundos
para o movimento e sua livre divulgação; a persuasão, por meios
pacíficos, de outros trabalhadores a aderirem à greve; a blindagem a
qualquer tentativa patronal de constrangimento para que os empregados
compareçam ao trabalho; a garantia de que os contratos não serão
rescindidos, durante a mobilização, e que novas contratações não serão
realizadas para substituir as antigas.
As obrigações dos grevistas começam com a designação dos serviços
considerados essenciais – aqueles cuja interrupção coloca “em perigo
iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Eles são
11, dentre os quais estão o transporte coletivo, a captação e
tratamento de esgoto e lixo, assistência médica e hospitalar e o
controle do tráfego aéreo, por exemplo.
No caso dessas atividades, a lei diz que os trabalhadores têm a
obrigação de avisar o empregador e os usuários sobre a paralisação 72
horas antes de seu início. Para os demais setores, o prazo cai para 48
horas. Ainda é preciso que estes serviços fundamentais sejam garantidos à
comunidade de alguma forma, e em comum acordo entre o patrão e os
trabalhadores – se isso não ocorrer, o Poder Público tem de assegurar
estes serviços.
Além disso, é necessário que qualquer decisão seja tomada em
assembleia realizada entre a categoria, representada ou não por
sindicato; que as manifestações dos grevistas não impeçam o acesso ao
trabalho, tampouco causem ameaça ou dano à propriedade e à pessoa; e que
a greve se encerre após acordo ou determinação da Justiça do Trabalho,
quando esta precisar intervir no processo.
Para o jurista Jorge Souto Maior, professor de direito trabalhista da
Universidade de São Paulo (USP), a própria lei vai de encontro à Carta
Magna de 1988. “Ela vem em um contexto quase desdizendo o que disse a
Constituição. Como quem diz: ‘A Constituição foi longe demais,
precisamos limitá-la’. Em muitos aspectos, essa lei é inconstitucional,
porque limita um direito de tal maneira que a própria Constituição não
limitou. E o que vale, do ponto de vista jurídico, é a Constituição, e
não a lei”, afirma.
O jurista alega, ainda, que a lei é interpretada e aplicada de
maneira equivocada. Um dos exemplos em que isso acontece, de acordo com o
advogado, é quando todos os encargos decorrentes da greve são delegados
aos trabalhadores.
“A lei diz que, havendo uma greve em atividade essencial, cabe ao
empregados e ao empregador deliberarem de comum acordo como serão
mantidos os serviços essenciais à população. A obrigação não é só dos
trabalhadores, é coletiva – deles e dos empregadores”, esclarece.
“A greve decorre da falta de acordo entre as partes, então é
responsabilidade das duas partes, não só dos trabalhadores. Estes não
podem ser punidos por estarem exercendo a greve, e não são culpados,
sozinhos, pelos efeitos prejudiciais que ela provoca – porque uma greve
necessariamente causa prejuízos”, explica Souto Maior.
A norma é empregada de forma incorreta, também, quando há a
interferência desnecessária do poder Judiciário no processo, que, exceto
em casos de ameaça à integridade da população, deve ser conduzido
somente entre empregados e empregador. “Quando o Judiciário diz aos
trabalhadores [em greve] que precisam cumprir um limite de 100% ou 70% [do serviço, em determinados horários do dia], está
inviabilizando o direito e greve e descumprindo o que diz a lei, que
não autoriza esse tipo de decisão”, considera. “Essa é uma decisão que
passa do ponto, que diz que o direito de greve não existe.”
Falta de unificação e representatividade
Na análise dos especialistas entrevistados para esta reportagem, a
greve é um mecanismo expressivo de pressão a que pode recorrer os
trabalhadores. “Ela acaba resolvendo em último caso”, indica Marques. “É
uma disputa de forças. Bem ou mal, o trabalhador e o empregador estão
em pólos diferentes. É uma luta que não acaba nunca”, avalia.
Embora garantida pela legislação e praticada por diversas categorias
no Brasil, a paralisação das atividades poderia surtir efeito ainda
maior se os sindicatos que organizam os trabalhadores agissem de maneira
mais ordenada entre si. É o que acredita o professor da PUC-SP Pedro
Arruda: “Cada categoria de trabalhador – operários da construção civil,
metalúrgicos, químicos, metroviários, professores – tem uma database em
uma determinada época do ano, nunca coincide. Se isso fosse unificado,
se todos os trabalhadores pudessem, por exemplo, fazer uma greve geral e
reivindicar coletivamente, teria muito mais força”.
O cientista político lembra as raízes dessa falta de coesão. “Isso é
uma herança da nossa estrutura sindical corporativa, que foi outorgada
pelo Getúlio Vargas na década de 40, quando foi elaborada a CLT [Consolidação das Leis de Trabalho], em 1943. Até hoje isso não se modificou. Há uma falta de unidade da classe trabalhadora”, aponta Arruda.
Ele menciona, ainda, a questão das centrais sindicais, que atuam
separadamente, cada uma com seu posicionamento político. “Há a Força
Sindical, que está mais à direita, cujas lideranças são mais
identificadas com o PSDB – o Paulinho da Força já disse que apoia o
Aécio Neves. Já a CUT [Central Única dos Trabahadores] é mais
identificada com o Partido dos Trabalhadores. Há outra central mais à
esquerda, que é a CSP-Conlutas. Existem várias centrais sindicais, o que
acaba dificultando a ação unificada dos trabalhadores. A gente poderia
até perguntar: qual foi a última vez em que foi convocada uma greve
geral no Brasil?”, questiona.
Para além de desunião, Arruda destaca a existência de sindicatos que
não representam os interesses da base. Foi o que motivou a greve dos
garis cariocas. “Ele [o Sindicato de Empregados de Empresas de Asseio e Conservação] não
se coloca a favor do trabalhador”, afirma Célio Vianna, um dos
porta-vozes do movimento. “Há anos e anos que as discussões salariais
são feitas em assembleias. Nessas assembleias, era acordada uma coisa,
mas o sindicato assinava um outro acordo que não correspondia ao desejo
da categoria”, relata.
Neste ano, a situação foi exatamente essa. Na época do dissídio –
fevereiro-, o sindicato fechou com a Companhia Municipal de Limpeza
Urbana (Comlurb) um aumento salarial de 9%. Assim, segundo a empresa, um
gari em início de carreira receberia R$R$ 874,79, mais 40% de adicional
de insalubridade, totalizando R$ 1.224,70 mensais. Mas um segmento da
categoria não ficou satisfeito com o acordo – segundo Célio, a
reivindicação era por uma base de R$1.200 mais os 40% adicionais.
Após tentativas de diálogo com o próprio sindicato, os garis, por
meio de assembleia independente, decretaram greve. A Comlurb informou
que cerca de 300 deles cruzaram os braços, mas Célio diz que
aproximadamente 6 mil aderiram ao movimento.
Durante os dias de paralisação, os garis promoveram também
manifestações nas ruas do Rio de Janeiro. Os atos ganharam repercussão
nacional e contribuíram para que, no dia 8 de março,
o prefeito Eduardo Paes (PMDB) aceitasse, por meio de audiência no
Tribunal Regional do Trabalho, conceder à categoria um reajuste de 37%,
que determina um piso salarial de R$ 1.100 – ainda menor que os R$1.200
pedidos, mas R$ 225,21 maior que o previsto pelo acordo inicial entre o
sindicato e a Prefeitura.
“Foi uma decisão boa [a greve]. Houve a unificação dos
trabalhadores, que estavam muitos distantes uns dos outros. Não
adiantava ficar de conspiração cada um em seu setor de trabalho se não
materializássemos aquilo que pensávamos. O trabalhador começou a ganhar
uma consciência política. Foi importante”, conta Vianna.
Opiniões divididas
Por mais importantes que sejam para os trabalhadores, as greves
dividem a opinião pública. Prova disso são as recentes manifestações
sobre a paralisação do Metrô de São Paulo: enquanto alguns apoiam,
outros pedem que ela acabe.
Um dos argumentos utilizados é que os metroviários já têm um bom
salário – referindo-se ao piso de R$1.323,55 da categoria. “A questão
não é essa. A questão é que eles são uma categoria e podem exigir um
aumento salarial”, destaca Fabíola Marques.
“Toda vez que tem uma greve que acaba, de alguma forma, tendo uma
repercussão sobre a população, os sentimentos se dividem. Muitas vezes, a
pessoa olha para o trabalhador que está por trás daquele serviço e se
solidariza, mas em outras, reclama porque gostaria de ser atendida,
mesmo que aquele atendimento já esteja precário no cotidiano, como é o
caso do Metrô”, pontua Altino dos Prazeres, presidente do Sindicatos dos
Metroviários de São Paulo.
Isso se estende para outros serviços considerados essenciais. Célio
Vianna enfrentou a mesma situação. “A população mais pobre, que é
maioria no Brasil, tem consciência do porquê que os trabalhadores estão
fazendo greve. Mas a classe alta, que tem acesso à mídia, tem como se
manifestar. São eles que procuram colocar a população contra a própria
população”, afirma.
Arruda concorda com Vianna em relação ao poder da mídia sobre a
questão. Para ele, a imprensa tradicional realiza a cobertura das
greves de acordo com seus posicionamentos políticos e ideológicos.
“Existe um forte bloqueio midiático. As grandes empresas de mídia,
controladas pelos mesmos barões, são partidárias. Os grandes jornais e
emissoras de TV sonegam muitas informações”, declara. Ele ainda ressalta
que a polêmica em torno dos movimentos grevistas se deve, um pouco, à
falta de consciência política e de classe.
Por vezes, as pessoas colocam seus interesses individuais acima dos
coletivos. “Existe um caráter um pouco ambíguo em tudo isso. Ao mesmo
tempo em que uma grande parcela da sociedade considera legítima a
reivindicação, porque é coletiva, ele vê o seu direito individual sendo
prejudicado”, analisa Arruda.
Mas a luta de classes é apenas um elemento do modelo capitalista.
Para Souto Maior, falta à sociedade brasileira a compreensão do todo.
“Dentro de uma lógica democrática, em um país capitalista, o conflito
entre trabalho e capital é essencial. Ele se expressa por meio de greve.
Greve faz parte da sociedade capitalista, dentro de uma lógica de
Estado de direito. Quando ela acontece, significa que a democracia está
sendo exercida. A gente precisa ver esses movimentos com menos
rejeição”, pondera.
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