Cesar Mangolin
O
empenho pessoal em determinadas tarefas, ou na busca de certos
objetivos, cumpre um papel fundamental. No geral, uma dada dose de
esforço, disciplina e planejamento é requisito inquestionável para que
sejam alcançados os resultados propostos. Disso não há dúvida. De resto,
a casualidade costuma cumprir também um papel importante.
O
problema começa quando pretendemos afirmar que tudo depende apenas do
esforço e da dedicação pessoal, como anunciam aos quatro ventos os
manuais de autoajuda, os apologetas da ordem burguesa, a maioria dos
professores e os desinformados.
Somente
em igualdade de condições é possível exigir ou explicar pelo empenho
pessoal o resultado de qualquer coisa. É exatamente aí que a ideologia
jurídica (não a estrutura jurídico-política) cumpre seu papel nefasto,
ao apresentar todos os que vivem em dado país ou região como uma reunião
de indivíduos (cidadãos!), livres (juridicamente) e iguais
(formalmente).
Estes
três elementos formam a tríade que serve de base à ideologia do mérito
pessoal. Foi o pensamento liberal quem deu forma a essa ideologia, que
marca todas as formações sociais capitalistas e auxilia sua reprodução.
Em
outros modos de produção divididos em classes (como, por exemplo, o
escravismo e o feudalismo), havia estatutos diferenciados para os
desiguais, ou seja, tratavam desigualmente os desiguais: os que
trabalham e os que não trabalham e vivem da exploração do trabalho
alheio. Esse tratamento desigual demarcava ao mesmo tempo as classes
sociais fundamentais daquelas formações sociais e escancarava as
relações de exploração do homem pelo homem.
Nas
formações sociais capitalistas, o trabalho assalariado e a extração da
mais-valia nos setores produtivos e a exploração do trabalho no demais
setores exigem o trabalhador “livre” juridicamente. Somente livre e
expropriado dos meios de produção é que o trabalhador pode se apresentar
voluntariamente ao capitalista para vender sua capacidade de trabalho
em troca de um tanto de equivalente universal (dinheiro), com o qual
pode comprar os gêneros necessários para manter e reproduzir a vida.
Assentado em dois pilares (o contrato e a propriedade privada), o
direito burguês vai tratar igualmente os desiguais e, para tanto, a
desigualdade não pode aparecer como ocorre concretamente na forma das
classes sociais. Voltando à tríade que serve de base à ideologia do
mérito pessoal anunciada acima, a percepção das classes é escondida na
figura da população, como soma de indivíduos portadores de direitos
individuais, que são iguais formalmente, apenas perante a lei (não se
trata de igualdade socioeconômica) e livres juridicamente. Livres e
iguais perante a lei para fazer de suas vidas o que bem quiserem, ou
seja, nasce daí a ideia de que nessas condições vivemos em uma sociedade
aberta, que permite a mobilidade social, uma vez que todos são
“sujeitos” da própria vida.
Vivendo
as relações concretas como exploradores e explorados, portanto, como
classes distintas, a ideologia deturpa a realidade e cumpre o papel de
dar sentido ao vivido num plano em que as relações são apreendidas como a
ação de indivíduos na luta pelos ideais de sucesso construídos
socialmente, que passam, necessariamente, pela aquisição de bens
materiais e algum grau de distinção individual. A vida vai aparecer como
uma grande diversidade de relações similares às relações mercantis
(fonte das ideologias próprias das formações capitalistas, nas quais
indivíduos iguais, livres e proprietários privados de algo estabelecem
trocas), que são assimiladas e traduzidas para um discurso específico
por diversas instituições (os aparelhos ideológicos) que cercam por
todos os lados a existência e lhe dá sentido: o próprio Estado, as
igrejas, os meios de comunicação, o núcleo familiar, a escola…
Embora a
vida seja assim representada e ganha sentido, as relações sociais
concretas da ordem capitalista não passa por nenhuma mutação: continua a
ser um modo de produção baseado na exploração do homem pelo homem,
portanto, dividido em classes sociais distintas e gerador, por suas
próprias contradições, de inumeráveis misérias pelo mundo afora.
É a
ideologia, portanto, não as relações sociais concretas, quem dá origem à
ideologia do mérito pessoal e à defesa da meritocracia, elementos
poderosos, como já dito, para a reprodução da ordem capitalista. O poder
da ideologia do mérito pessoal não é o de fornecer o argumento que
justifica a situação dos que alcançam os tais ideais de sucesso. O poder
dessa ideologia é o de fazer com que os que não o alcançam atribuam a
si mesmos ou a questões secundárias os motivos de seu fracasso, gerando
resignação.
O
argumento em favor da meritocracia vai pelo mesmo caminho: serve para
justificar, pelo suposto empenho ou qualidades individuais, a manutenção
de determinados setores em posições já consolidadas: as classes em seus
mesmos lugares, os setores médios em seus espaços próprios…
A
mobilidade social apenas ocorre como exceção, embora seja anunciada como
regra. São muito reduzidos os casos dos que saem da condição de
trabalhadores assalariados e migram ao grande capital pelo mundo afora.
Poucos também os que alcançam as condições de vida dos setores médios
mais abastados, que se replicam e vivem do temor da proletarização e do
sonho do aburguesamento.
Mas,
apesar da ideologia, a realidade não pode ser apenas negada. A
constatação da imensa maioria empobrecida das formações sociais
capitalistas salta aos olhos de qualquer um. Para dar conta do contraste
entre a ideologia e a realidade que teima em demonstrar que há algo
errado encontramos saídas… ideológicas, ou melhor, por dentro da
ideologia, que é inconsciente, ou seja, quem está dentro dela não sabe
que está, portanto, trata a deturpação da realidade como sendo a própria
realidade concreta.
A
partir de dentro da ideologia, a constatação das desigualdades sociais
vai levar, portanto, à consciência de que não podemos operar com a
meritocracia, a não ser que tenhamos um instrumento de equalização de
oportunidades individuais. Nas formações sociais capitalistas esse
instrumento privilegiado é a educação formal. Supostamente, garantindo
que todos passem pelos níveis da educação formal, colocaremos todos os
indivíduos em igualdade de condições para disputar as oportunidades da
vida, servindo, a partir daí, o esforço pessoal como a régua que mede e
valida os resultados individuais e a certificação escolar como o que
justifica e delimita a entrada em determinados postos de trabalho.
Três
discursos próprios e a partir de dentro da ideologia derivam daí:
primeiro, o discurso, mais próprio dos setores médios, que justificam
suas posições pela certificação escolar e o empenho pessoal; segundo,
aquele discurso que valoriza o acesso à educação formal como condição
para um mundo melhor e o fim da miséria, que afeta quase toda a
população, inclusive setores da esquerda, que além de ser falso, é um
discurso liberal; por fim, o discurso que justifica a situação de
miséria das massas porque não estudaram, porque não quiseram ou porque
não tiveram acesso às escolas.
No
Brasil, a meritocracia e a certificação escolar têm data: foi com a
entrada do grande capital monopolista na década de 1950 e a partir das
novas exigências para acesso às burocracias privada e pública, com a
adoção de processos seletivos e concursos, respectivamente. É por essa
razão que os setores médios são os que fazem mais uso da meritocracia e
mais valorizam a certificação escolar: é a prova de seus esforços e a
justificativa, diante da burguesia, de que podem e devem ocupar
determinados postos. Até então, salvo exceções quase sempre formais, o
acesso ao serviço público, inclusive às cátedras vitalícias das
universidades, era feito por indicação. Os chamados canais tradicionais
de manutenção e ascensão das camadas médias se dava por essas
indicações, pelas empresas e negócios familiares, pelo trabalho autônomo
de profissionais liberais. A certificação escolar não era uma
necessidade. Tanto que até 1970 a maioria das vagas nas universidades
brasileiras era ofertada por universidades públicas e gratuitas. Foi
somente após o início da transformação monopolista do capitalismo
brasileiro (que se completou com a ditadura militar) e da entrada das
multinacionais que isso começou a mudar: as empresas familiares faliram
aos montes, os profissionais liberais eram absorvidos pelas empresas
privadas, o serviço público passou a adotar os concursos públicos… Isso
tudo exigia, como pré-requisito (como ocorre hoje) um determinado nível
de certificação escolar. Quebrados os canais tradicionais de manutenção e
ascensão das camadas médias, seus filhos foram impelidos para a
universidade atrás da certificação escolar, que não tinha capacidade
para acolhê-los naquele número. É esse movimento que vai gerar a massa
do movimento estudantil dos anos 1960, até que a Reforma Universitária
da ditadura (de novembro de 1968) e o AI-5 (de dezembro do mesmo ano)
resolvessem o problema.
A lei
5.540 de 28 de novembro de 1968, a chamada lei da Reforma Universitária,
em pleno governo de Costa e Silva, adotou várias medidas que eram
reivindicadas pelo movimento (extinção da cátedra vitalícia, organização
por departamentos etc.) e anunciava a expansão universitária, de
preferência, por universidades públicas. A expansão vai ocorrer, na
verdade, através da multiplicação de instituições isoladas de ensino
superior privadas, que passarão a oferecer um número cada vez maior de
vagas e retirar das ruas a massa do movimento estudantil e aplacar os
ânimos dos setores médios, que tendiam a passar ao campo da oposição ao
regime, depois de lhe ter servido de base. A vanguarda mais politizada
do movimento estudantil, que forneceu boa parte dos quadros das
organizações de esquerda que resistiram à ditadura, foi calada pelo AI-5
(de 13 de dezembro de 1968, 15 dias após a lei 5.540…) e parte dela
trucidada nos porões da ditadura, nas sessões de tortura, na prisão e
passou a figurar na lista dos mortos e desaparecidos1…
Retornando ao nosso tema central, depois desse breve, mas necessário,
recurso à história, podemos concluir que a meritocracia e a ideologia do
mérito pessoal cumprem, como toda a estrutura ideológica, apenas um
papel fundamental de auxiliar a reprodução do modo de produção
capitalista, não permitindo que as razões reais e concretas das nossas
desigualdades sociais apareçam de forma clara e transparente. Igualmente
o discurso liberal, que gira em torno da educação formal, como
instrumento fundamental de equalização de oportunidades, que é replicado
por tantas mentes progressistas e até bem intencionadas. A história,
porém, não é feita de atos de vontade, muito menos de boa intenção. Como
dizia Althusser, a escola aparece hoje como algo inquestionável, como
uma instituição fundamental e benfeitora, assim como a igreja católica
aparecia na idade média. No resultado, cumprem, de fato, papéis
políticos semelhantes…
Não é
preciso ser um estudioso do tema para perceber que o que impele às
faculdades os filhos dos setores médios e dos trabalhadores às
faculdades nos centros urbanos do Brasil é a necessidade do diploma, não
a da construção do conhecimento. A diferença está no destino desses
setores distintos: há um processo de elitização de determinados cursos e
universidades na medida em que a certificação escolar vai se tornando
requisito para o emprego e na medida em que as universidades e
faculdades privadas, movidas já por um empresariado voltado à educação,
ampliam a oferta de vagas para setores médios menos abastados e para
setores mais empobrecidos da população.
O
aumento da oferta da população com certificação do ensino superior vai
gerar, de um lado, uma desvalorização dos salários desses profissionais
e, de outro, o fenômeno da sobrecertificação2:
havendo grande oferta de diplomados, as empresas passam a elevar os
requisitos de certificação escolar para funções antes ocupadas por gente
com apenas algum nível de conclusão da educação básica; isso faz com
que o acesso ao ensino superior se torne uma necessidade, dado que o
diploma é a condição para o emprego, mesmo nos escalões mais baixos dos
setores público e privado. No lado oposto, a defesa de uma certa reserva
de mercado vai provocar a elitização mencionada acima: cursos muito
caros (mesmo em universidades públicas por causa dos livros, materiais
etc.), em tempo integral, com baixa oferta de vagas e processos
seletivos e notas de corte altíssimas.
É com
resignação (resultado da ideologia) que as famílias mais empobrecidas
aceitarão os cursos mais baratos e “populares” ofertados pelas
universidades privadas e os mais “populares” das universidades públicas,
que têm maior facilidade de acesso.
Do
outro lado, é com obstinada resistência que os setores médios mais
abastados defenderão determinados cursos do acesso dos trabalhadores e,
para isso, utilizarão do discurso do mérito pessoal, da defesa
intransigente da meritocracia, como condição não de sua ascensão, mas de
sua manutenção como setor médio abastado, supostamente legitimado pelo
esforço pessoal e pelo investimento familiar na educação em escolas
privadas bastante caras e voltadas a esse público. Parece convencer
muita gente esse argumento, que vai fazer a crítica da educação básica
pública, de má “qualidade”, como forma de pulverizar as
responsabilidades.
O
Estado, por sua parte, para poder manter sua posição (também ideológica)
de uma instituição imparcial e que zela pelo bem comum, vai fazer
concessões aos trabalhadores e aos setores médios menos abastados na
medida em que alcançam capacidade de organização: bolsas e programas de
financiamento para os mais pobres destinados, prioritariamente, às
instituições privadas, como o Prouni e o Fies. Também o faz através da
adoção de políticas afirmativas voltadas a determinados setores. Entra
em cena a polêmica das cotas sociais e as cotas étnicas.
Não há
dúvida de que, no que se refere à educação formal de nível superior, a
pressão pelas cotas parte de setores médios menos abastados, muito mais
que dos trabalhadores manuais. Nas periferias das grandes cidades
brasileiras é fácil perceber que esse tema das cotas não comove muita
gente, nem mesmo é bandeira de luta de alguns movimentos, como parte do
movimento negro que se origina das lutas populares e não de estratos
médios. Alguns chegam a combater a política de cotas, fazendo um
discurso semelhante aos dos setores médios abastados ou apenas afirmando
que, diante dos problemas enfrentados para a manutenção da vida nesses
bolsões de pobreza, o acesso ao ensino superior não é um tema relevante.
Duas
coisas ainda merecem ser mencionadas neste breve texto e que nos colocam
a favor da política de cotas: primeiro, a importância da política de
cotas; segundo, o papel que ela cumpre na luta de classes. Vejamos.
Primeiro, as cotas, sejam elas sociais ou étnicas, não resolvem o
problema da pobreza, muito menos do racismo ou da discriminação racial,
mas cumprem dois importantes papéis. De um lado, as cotas permitem dar
acesso a espaços e a profissões negados a uma população que foi excluída
historicamente e isso tem um peso importante, inclusive para quebrar o
discurso meritocrático, na medida em que essa população não acessa como
regra a universidade pública pelos canais tradicionais, construídos para
os filhos dos setores médios mais abastados. Pesquisas recentes têm
demonstrado que o desempenho dos que entram pelas cotas tem sido igual e
as vezes superior ao dos demais estudantes. Por outro lado, não há
dúvida que a polêmica que gira nos últimos anos em torno das cotas tem
reabilitado e escancarado o debate sobre o racismo e a discriminação
étnica no Brasil, debate este abafado ao longo da República pelo mito da
democracia racial.
Em
segundo lugar, devemos destacar que a educação formal (as escolas, as
universidades, os currículos, os professores etc.) é um instrumento
poderoso de inculcação ideológica, mas é também espaço da luta de
classes, como todos os espaços sociais, porque é permeado por
contradições que, ainda que negadas ideologicamente, existem
concretamente. Nesse sentido, a defesa da política de cotas, somada a
outros elementos, atua nessas contradições, as aguça e ajuda a
escancarar as causas reais das desigualdades num país como o Brasil.
Novamente é preciso dizer que não defendemos aqui que as cotas resolvem
esses problemas. Mas é necessário reconhecer que abrem espaço para que
possamos desmistificar e colocar às claras os limites da meritocracia e
da ideologia do mérito pessoal, conjunto que ao mesmo tempo esconde e
justifica as desigualdades sociais e a exploração de classe.
1Para uma análise mais pormenorizada desse processo ver: MANGOLIN, Cesar. Ensino
superior e sociedade brasileira: Análise histórica e sociológica dos
determinantes da expansão do ensino superior no Brasil (décadas de
1960/70). Dissertação (Mestrado em Educação). UMESP, São Bernardo do Campo, 2008. Disponível em: http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/mangolin-ensino-superior-e-sociedade-brasileira-dissertacao-de-mestrado-2007.pdf
2Tratei
melhor o tema, inclusive agregando o elemento da exclusão prorrogada no
artigo no qual propus o conceito de “sobrecertificação” no lugar de
“sobrequalificação”. Ver: MANGOLIN, Cesar. Sobrecertificação e expansão: o ensino superior brasileiro e a exclusão prorrogada de Pierre Bourdieu. In: Educere et Educare. Vol.6, nº 12 (jul/dez) 2011. pp. 133-147. Unoeste/ Cascavel. Disponível em: http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/mangolin-sobrecertificac3a7c3a3o-e-expansc3a3o-o-ensino-superior-brasileiro-e-a-exclusc3a3o-prorrogada-de-pierre-bourdieu.pdf
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