Por Urariano Mota.
Neste ano em
que o Brasil, depois de 64 anos, volta a sediar e assediar a Copa do
Mundo, nada mais justo que retomar as linhas de Nelson Rodrigues, esse
amante possesso, dionisíaco, do melhor futebol. Me acompanhem por favor e
olhem se tenho razão. Em outra oportunidade, já escrevi que não
conhecia na literatura mundial alguém que fosse tão magnífico quanto
Nelson Rodrigues na crônica esportiva.
Se pensam
que me enganei, curtam e amaciem na boca feito fruta rara o que Nelson
Rodrigues escreveu sobre um jogo de Pelé, antes de começar a Copa do
Mundo de 1958. Antes. Para não dizê-lo um profeta, devo dizer: a
sensibilidade, a genial arte de um escritor descobriu e revelou um
fenômeno:
“Depois
do jogo América x Santos seria um crime não fazer de Pelé o meu
personagem da semana. Grande figura que o meu confrade Laurence chama de
‘o Domingos da Guia do ataque’. Examino a ficha de Pelé e tomo um
susto: – 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis.
Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa
ter 17 anos, jamais. Pois bem: – verdadeiro garoto, o meu personagem
anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais.
Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se ‘Imperador Jones’, se etíope.
Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em
suma: – ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de
ofuscar toda a corte em derredor.
O
que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé
leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se
sentir rei, da cabeça aos pés.
Quando
ele apanha a bola, e dribla um adversário é como quem enxota, quem
escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal
sensação de superioridade que não faz cerimônia. Já lhe perguntaram: –
‘Quem é o maior meia do mundo?’. Ele respondeu com a ênfase das certezas
eternas: – ‘Eu’. Insistiram: – ‘Qual é o maior ponta do mundo?’ E Pelé:
– ‘Eu’. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o
fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém
reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas
as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto
é, o incomparável Pelé.
Vejam
o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e
quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho,
liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar.
Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: – ‘Vá jogarbem assim no diabo que o carregue!’
De
certa feita, foi, até, desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele
recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé,
não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de
adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e
o segundo. Vem-lhe, ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta,
sensacionalmente. Numa palavra: – sem passar a ninguém e sem ajuda de
ninguém ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra.
Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para brilhar.
Não existia uma defesa. Ou por outra: – a defesa estava indefesa. E,
então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e
encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora,
para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É
preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de
otimismo que faz de Pelé o craque imbatível.
Quero
crer que a sua maior virtude seja, justamente, a imodéstia absoluta.
Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola,
que vem aos seus pés numa lambida docilidade de cadelinha.
Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete.
Na
Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os
ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de
ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente de que precisamos.
Sim, amigos: – aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos
adversários uns pernas-de-pau.
Por
que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e
outro times entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto,
olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de
humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com
Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma
dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós”.
O texto que acabam de ler é de março de 1958. Tenho diante de mim o livro O Berro Impresso das Manchetes,
que reúne as crônicas completas de Nelson Rodrigues na Manchete
Esportiva, de 1955 a 1959. A tendência, de um leitor atento, se a gente
não se cuida, é de sair grifando frases, crônicas inteiras. Se a
epifania de Pelé antes do reconhecimento universal não causar espanto,
olhem, mastiguem lento e com calma o que Nelson escreveu sobre
Garrincha:
“Nos
acrobatas chineses o que existe é o esforço, é a técnica, é o
virtuosismo, ao passo que Garrincha é puro instinto. Possui uma riqueza
instintiva que lhe dá absoluto destaque sobre os demais. Até Deus, lá do
alto, há de admirar-se e há de concluir: – ‘Esse Garrincha é o maior!’.
O ‘seu’ Mané não trata a bola a pontapés como fazem os outros. Não. Ele
cultiva a bola, como se fosse uma orquídea rara”.
Cultivar a bola como uma orquídea rara – isso já deixou de ser futebol e penetrou na delicadeza da arte, no mesmo passo em que vemos a fina e macia pétala que se toca com a percepção da vida fugaz. Mas é uma bola. É uma crônica. Nesta altura eu me sinto um escritor absolutamente desnecessário. O que disser parecerá acento circunflexo sobre o céu azul. Pode? Ser leitor dessas crônicas de Nelson Rodrigues é tão agradável, que nossa única transmissão possível é copiá-lo em trechos, porque o tempo urgente não permite a cópia inteira, o que seria um serviço de utilidade pública e educação estética. É irresistível.
Nelson
Rodrigues arranca uma graça e humor em frases que guardam sempre os
mesmos recursos, imagens, mas que ainda assim surpreendem. Ele na
crônica escrevia à semelhança de Garrincha, que driblava para um só
lado, e todos sabiam qual, mas ainda assim eram surpreendidos. Nelson
usa sempre o exagero, as expressões mais despudoradas, melodramáticas,
truques de circo na hipérbole, com o maior despudor e cinismo, mas ainda
assim o leitor era, é driblado, assim como os marcadores de Garrincha.
Que encanto! Com a diferença que a gente é driblado, mas não se frustra,
porque enche o peito de felicidade. Como aqui:
“Olhem
Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um
menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme da Brigitte Bardot,
seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: é um gênio indubitável. Digo
e repito: gênio. Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou
Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: ‘Como vai, colega?’ ”.
Sobre a lembrança de nosso grande fracasso em 1950, e aqui devemos bater mil e uma vezes três sobre a mesa, ele escreveu:
“O
uruguaio Obdulio ganhou de nosso escrete no grito e no dedo na cara.
Não me venham dizer que o escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe
entra em campo como nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino
pátrio — é como se fosse a pátria em calções e chuteiras, a dar
botinadas e a receber botinadas. Pois bem. Depois da experiência bíblica
de 50, passamos a rosnar, por todas as esquinas e por todos os botecos
do continente, o seguinte juízo final sobre nós: — ‘O brasileiro é bom
de bola, mas frouxo como homem’. É o que diziam, sim, de nós, com feroz
sarcasmo, os craques da Argentina e os craques do Uruguai. Até que vem
aquele famoso Campeonato Sul-Americano de 1959. Há o jogo Brasil x
Uruguai. E, de repente, estoura um sururu monstruoso. Brigaram até as
cadeiras. Foi uma página de Walter Scott. O próprio Chinesinho, com o
seu tamanho de anão de Velasquez, levou e deu bordoada. Lindo, lindo foi
quando Didi tomou distância, correu e saltou. Por um momento ele se
tornou leve, elástico, acrobático. E enfiou duas chuteiras em flor na
cara do inimigo. Quando parou a guerra e continuou o jogo, demos um
banho de bola. Ora, há uma nítida relação entre a passividade de 50 e a
agressividade do tal Sul-Americano. As duas coisas estão ligadas e uma
justifica a outra. Certo e brilhante confrade dizia-me ontem que
‘futebol é bola’. Não há juízo mais inexato, mais utópico, mais
irrealístico. O colega esvazia o futebol como um pneu, e repito: —
retira do futebol tudo o que ele tem de misterioso e de patético. A mais
sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num
córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural. Eu
diria ainda ao ilustre confrade o seguinte: — em futebol, o pior cego é o
que só vê a bola”.
O texto é de
18 novembro de 1963. Mas que sacada, que lance de gênio na frase “em
futebol, o pior cego é o que só vê a bola”. A hipérbole, os desavisados
pensam que é literatice ou mero recurso de linguagem. Mais de uma vez
tenho me batido contra a compreensão vulgar que vê a ficção como uma
fraude, como um recurso da mentira. Se tempo e espaço houvesse, eu seria
capaz de escrever um longo texto sobre essa frase de Nelson Rodrigues e
a pertinência, perenidade, petardo do falso exagero do maior cronista
de futebol do mundo. De passagem, anoto apenas o que Luciano do Valle, o
narrador esportivo falecido neste ano, declarou numa entrevista, que a
maior lição de futebol recebida por ele foi de um técnico, que o
aconselhou a não olhar só a bola em jogo, que se concentrasse no campo
inteiro. Essa observação de Luciano, factual, imediata, precisa ser
ampliada. Para quem escreve sobre futebol, a frase de Nelson é mais
imperiosa, quando se quer expressar o jogo com um mínimo de dignidade:
em campo existem pessoas, existe um drama humano que vai além do preparo
físico, técnico e tático.
Ou como ele
escreveu, em trecho que copio de uma crônica de 7 de abril de 1956, onde
aponta razões para a nossa queda em 1950 e 1954:
“Para
nós, o futebol não se traduz em termos técnicos e táticos, mas
puramente emocionais. Basta lembrar o que foi o jogo Brasil X Hungria,
que perdemos no Mundial da Suíça. Eu disse ‘perdemos’ e por quê? Pela
superioridade técnica dos adversários? Absolutamente. Creio mesmo que,
em técnica, brilho, agilidade mental, somos imbatíveis. Eis a verdade: –
antes do jogo com os húngaros, estávamos derrotados emocionalmente.
Repito: – fomos derrotados por uma dessas tremedeiras obtusas,
irracionais e gratuitas. Por que esse medo de bicho, esse pânico
selvagem, por quê? Ninguém saberia dizê-lo. E não era uma pane
individual: – era um afogamento coletivo. Naufragaram, ali, os
jogadores, os torcedores, o chefe da delegação, o técnico, o massagista.
Mas quem perde e ganha as partidas é a alma. Foi nossa alma que ruiu
face à Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai. E aqui
pergunto: – que entende de alma um técnico de futebol? Não é um
psicólogo, não é um psicanalista, não é nem mesmo um padre. Por exemplo:
– no jogo Brasil X Uruguai entendo que um Freud seria muito mais eficaz
na boca do túnel do que um Flávio Costa, um Zezé Moreira, um Martim
Francisco. Nos Estados Unidos, não há uma Bovary, uma Ana Karenina que
não passe, antes do adultério, no psicanalista. Pois bem: – teríamos
sido campeões do mundo, naquele momento, se o escrete houvesse
frequentado, previamente, por uns cinco anos, o seu psicanalista…. Só um
Freud explicaria a derrota do Brasil frente à Hungria, do Brasil frente
ao Uruguai e, em suma, qualquer derrota do homem brasileiro no futebol
ou fora dele”.
E aqui, numa visão rara e arguta sobre a derrota na final da Copa de 1950:
“De
uma maneira geral, a goleada não constitui um estímulo para o
brasileiro. Qualquer um de nós está sempre a um milímetro da máscara. Um
êxito, sobretudo o êxito fácil, dá ao homem brasileiro a ilusão da
invencibilidade. Por exemplo: o Mundial de 50, que perdemos aqui. E por
que perdemos? Justamente porque, na penúltima partida, derrotamos de
banho, derrotamos de lavagem a Espanha. (Brasil 6 X 1 Espanha) Se
tivéssemos vencido duramente, por um escore apertado, a partida final
viria a ser, inevitavelmente, uma apoteose. Teríamos batido a ‘Celeste’
de seis, de sete, de oito. Mas foi a goleada que quebrou a flama
brasileira, que nos matou o impulso para a batalha decisiva. Contra o
Uruguai, apresentamos um time que era uma torva e treda caricatura do
nosso futebol”.
Esperamos que as palavras finais de Nelson Rodrigues na crônica acima, antes de 1958, nos sirvam de guia nesta Copa de 2014:
“Deve
haver otimismo sim, mas sóbrio, controlado, viril. Se jogarmos
normalmente, sem o espírito do ‘já ganhou’, ou do ‘já ganhamos’,
dispostos a cavar, a suar a vitória, a Copa será nossa, podem ter a
certeza disso, meus amigos”.
***
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