Por Marcos Barreira.
O processo
de “pacificação” das favelas cariocas, iniciado em 2008 e reforçado
pouco depois com a vitória da candidatura da cidade do Rio de Janeiro
para sediar dois grandes eventos internacionais, a Copa do Mundo de 2014
e as Olimpíadas de 2016, tornou-se um consenso que unifica a política,
as empresas de mídia, a Universidade, setores privados, produtores
culturais e, é claro, a maioria dos moradores da cidade. Para
implantá-lo, o governo do estado do Rio de Janeiro tem à sua disposição
não apenas o aparato policial-militar das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs) e recursos oriundos de diversas fontes, mas conta
ainda com o apoio decisivo dos formuladores de intervenções públicas,
especialmente as de caráter “social”, que se desenvolvem a partir de
iniciativas como o programa UPP Social (coordenado pelo centro de
pesquisas e planejamento da Prefeitura) e novos cursos voltados para as
demandas específicas do mercado de segurança.
Através da
repercussão midiática, as UPPs tornam-se, para o Rio, símbolos de um
novo momento repleto de possibilidades, e o Rio, um símbolo para o País.
No plano cultural, um exemplo inequívoco dessa articulação é o filme 5x Pacificação,
de 2012, realizado por jovens cineastas moradores de favelas, que tenta
mostrar as UPPs a partir do ponto de vista de “quem vive o dia a dia
das comunidades cariocas”. O objetivo, diz um dos diretores, é “causar
uma reflexão para que todo mundo siga junto com a secretaria de
segurança”.1 Toda essa mobilização é parte de um programa de
recriação da imagem da cidade que vai muito além da “retomada de
territórios” e envolve grandes investimentos e processos de
reestruturação urbana em larga escala, que encontram sua justificativa
quase sem réplica nos “megaeventos” usados como indutores da acumulação
privada.
Do amálgama
de intervenções estatais, negócios lucrativos e formas de representação
midiática e cultural “dirigidas” resulta o desaparecimento quase total
da opinião pública independente.2 As implicações dessa nova
realidade sobre os saberes especializados e o que restou da reflexão
propiciada pela forma estética são evidentes. Por isso, entre aqueles
que abordam o processo de “pacificação” com maior distanciamento, podem
aparecer alguns posicionamentos dissonantes e até mesmo conflitos
abertos contra o “pastiche midiático”, mas em nenhum momento lhes é
permitido deixar de elogiar as ocupações militares.
A imprensa
também se encarrega de colocar dúvidas sobre aspectos parciais da
“pacificação”, de modo a não deixar dúvidas sobre o conjunto – e sobre a
sua própria atuação na cobertura dos fatos. Esse posicionamento dúbio
criou um padrão interpretativo que oscila entre a exaltação da ocupação
militar e a denúncia altaneira dos “desvios” ou imperfeições do
policiamento permanente nas favelas. Um argumento comum entre os
defensores mais discretos das práticas em curso é o de que o Estado deve
criar – ou fortalecer – uma esfera pública capaz de instaurar o diálogo
entre os diferentes “atores sociais” envolvidos nas ocupações. Para
alcançar tal meta, seria necessário investir na criação de uma polícia
“comunitária” ou “de aproximação” que garantisse o exercício pleno da
cidadania aos moradores das favelas ocupadas.
O alvo das
críticas é quase sempre o esvaziamento das iniciativas locais,
obstruídas, de uma forma ou de outra, pela “policialização” dos
conflitos sociais. Fala-se, por exemplo, de como “a estreita ligação
entre UPP Social e a unidade policial, além das fortes relações com o
setor empresarial, desenha um modelo novo de definição do social”
(FLEURY, Sonia. “Militarização do social como estratégia de integração –
o caso da UPP do Santa Marta”. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 14,
n. 30, mai./ago. 2012, pp. 194-222.). Na mesma linha de argumentação, o
sociólogo Luiz Werneck Vianna fala de uma “política social sem
política”, evidenciando, no modelo de ocupação militar, a ausência de
organizações livres da sociedade civil.3
Em outras
abordagens, fica a impressão de que a ambiguidade em questão seria menos
um produto das interpretações do que um dado estrutural do próprio caso
analisado. A imprecisão dos objetivos da política de segurança teria
produzido uma prática que não se definiu pela “guerra” ao crime ou pela
mudança da cultura policial. Em todo caso, “ao menos como projeto as
UPPs são, de fato, uma novidade muito positiva”, diz Luiz Antonio
Machado da Silva, acrescentando que “seu sucesso depende de um
acompanhamento menos eufórico, capaz de indicar os riscos de seu
desvirtuamento e gerar expectativas menos desmesuradas como as atuais,
em relação tanto a prazos e metas de „pacificação‟ quanto ao alcance do
programa” (“As várias faces das UPPs”).
Apesar desse
tipo de crítica ao tom eufórico das coberturas jornalísticas, cabe
ressaltar a mídia tem adotado uma postura idêntica à defendida pelo
professor, guardadas as diferenças de conteúdo, quando se move
alternadamente entre a ideologia da “libertação”, representada pelas
bandeiras hasteadas sobre territórios conquistados, e os discursos mais
pragmáticos, que cobram das autoridades apenas a redução imediata dos
conflitos ou a limitação da ação das quadrilhas nas favelas. Também não
se pode negligenciar o fato de que as denúncias sobre a “migração de
crime” após a ocupação das favelas, bem como sobre a atuação de grupos
milicianos nas periferias da cidade, têm surgido antes na imprensa do
que no debate universitário e têm até pautado muitas pesquisas que, no
final das contas, por modéstia metodológica, revelam-se inconclusivas.
De qualquer forma, os dois casos monstram que, em geral, as intervenções
militarizadas são contestadas em função de algo que se crê ser um
efeito secundário, mas, em última análise, elas permanecem legitimadas
graças aos resultados imediatos até aqui obtidos, ainda que as
finalidades da “pacificação” permaneçam pouco claras.
Uma atitude
inversa, que se coloca em inequívoca oposição à militarização, pode ser
observada nos comentários mais diretamente identificados com posições de
“esquerda”, que tendem a enxergar as UPPs como instrumentos de
criminalização da pobreza e ampliação das formas de controle social.
Longe de representar um “desvio” ou um efeito colateral das políticas
oficiais, a “policialização” da vida cotidiana e dos conflitos no
interior das áreas ocupadas seria a própria finalidade das operações
estatais. Na sequência de um longo histórico de controle social penal
das camadas populares, as UPPs são denunciadas como dispositivos
(no sentido foucauldiano dos mecanismos de operação material do poder)
de ocupação militar e como laboratórios de novas técnicas de
administração repressiva das populações marginalizadas. Ainda nessa
perspectiva, as UPPs se aproximariam mais de uma forma “biopolítica” de
gestão global da vida dos indivíduos, como se pode verificar nas
inúmeras proibições, regulamentações e sistemas de vigilância impostos
aos moradores, do que das experiências do chamado “policiamento
comunitário”- amiúde evocado pelos meios de comunicação para legitimar
as ocupações. Para Vera Malaguti,
o
fato das UPPs estarem restritas ao espaço de favelas, e de algumas
favelas, já seria um indício luminoso para desvendar o que o projeto
esconde: a ocupação militar e verticalizada das áreas de pobreza que se
localizam em regiões estratégicas aos eventos esportivos do capitalismo
vídeo-financeiro (…) Com isso queremos frisar que as UPPs aprofundam as desigualdades e as segregações socioespaciais no Rio de Janeiro [grifo meu] (“O Alemão é muito mais complexo”).
Com
argumentação semelhante, Joana Moncau define as UPPs como “mecanismos de
controle e condicionamento das classes populares, cuja característica
principal é a ocupação militar do território. Nesse sentido, não é
nenhuma espécie de polícia comunitária, como alguns afirmam, mas uma
clara ocupação militar” (“Unidades de polícia pacificadora, uma nova face da repressão policial no Brasil”).
Aqui, enfim, caberia retomar o problema do esvaziamento das associações
coletivas locais, porém não mais como um fenômeno secundário e quase
acidental, mas como um projeto deliberado de monopolização das
iniciativas nos territórios ocupados a fim de garantir a
“governamentalidade” dos pobres e defender interesses privados sob a
fachada da libertação dos territórios. Ainda sobre a relação entre
ocupação militar e interesses econômicos, outra abordagem chega ao ponto
de afirmar que “os espaços gigantescos de moradia dos pobres se
tornaram grandes jazidas de acumulação para o capitalismo cognitivo” (COCCO, Giuseppe. “A guerra no Rio de Janeiro: a ofensiva do capitalismo cognitivo”),
o que teria transformado as favelas em atrativos espaços de consumo
disputados por empresas privadas e grupos mafiosos (milícias). Com isso,
a militarização do espaço urbano, mais identificada com a ocupação das
Forças Armadas do que com a das UPPs – embora uma tenha aberto o caminho
para a outra – seria um elemento necessário para garantir essa “nova
fronteira” da acumulação.
Quando os
agentes do Estado ocupam indefinidamente uma favela sem que isto melhore
o acesso aos direitos dos moradores, diz Michel Misse, a
territorialização que caracterizava a atuação do tráfico de drogas é
prolongada, seja sob influência policial ou das Forças Armadas. De
acordo com Misse, as UPPs dão continuidade à lógica de operar por
territórios ao invés de romper a territorialidade e integrar os
diferentes espaços da cidade. “O desafio da permanência [das UPPs] agora
não é, como se supõe, o de „levar políticas públicas‟ para os
territórios, mas, por paradoxal que pareça, desterritorializá-los, isto
é, integrá-los como bairros normalizados à cidade” (“Os rearranjos de poder no Rio de Janeiro”). Por trás desta lógica
está a idéia autoritária de que “a comunidade pertence ao Estado”, como
mostra Marcelo Lopes de Souza, que também desenvolve sua análise a
partir do olhar sobre o território: através da “reconquista” – expressão
que evoca “fervor patriótico e fanatismo religioso” –, a pacificação
instaura um controle social cada vez maior sobre o espaço urbano. Já não
estamos falando apenas dos territórios da pobreza. A utilização das
Forças Armadas para finalidades de controle, dando suporte às UPPs nos
grandes complexos de favelas, resulta na “militarização da questão
urbana” e na domesticação dos segmentos mais mobilizados da sociedade (“A ‘reconquista do território’, ou: um novo capítulo na militarização da questão urbana”).
Também aqui, diga-se de passagem, vemos reproduzida a diferença entre a
perspectiva sociológica que capta os descaminhos de um processo
considerado, em seus aspectos gerais, como positivo ou necessário, e a
denúncia do caráter essencialmente autoritário da militarização.
Outras
análises, igualmente focadas na crítica da ideologia da “pacificação”,
têm chamado a atenção para a forma negociada das intervenções policiais.
O conjunto de acordos oficiosos entre os executores da política de
segurança do Estado e as redes do tráfico estaria reorganizando a
estrutura do crime. Mais: o poder policial-militar exercido através do
policiamento permanente teria se constituído como uma forma embrionária
de “milícia institucionalizada”, pois muitos policiais, conforme
diversas denúncias noticiadas pela imprensa, têm se beneficiado de sua
posição para criar fontes de renda ilegais ligadas ao varejo de drogas
ou aos serviços “alternativos” que proliferam nos espaços da pobreza.4
Além dos
discursos produzidos pela mídia e pelas pesquisas universitárias, outras
vozes também se fazem ouvir, manifestando perspectivas diferentes sobre
o processo de “pacificação”. Na fala das lideranças comunitárias, por
exemplo, surgem diferenças importantes em relação ao discurso dos
“especialistas”. Em primeiro lugar, a necessidade, por parte de tais
lideranças, de administrar conflitos e de representar a comunidade não
permite que as denúncias de violências e arbitrariedades sejam colocadas
em segundo plano. É grande o sentimento, entre os moradores das favelas
ocupadas, de que o policiamento permanente não muda imediatamente a
cultura e as práticas policiais no trato com os moradores. Por outro
lado, a diminuição dos conflitos e incursões policiais violentas se
reflete, na opinião majoritária dos moradores, em aprovação, e gera
expectativas favoráveis nos locais onde o programa não foi implantado.5
Assim, quanto ao posicionamento em relação às UPPs, a maioria das
lideranças adota um discurso de acomodação, que tenta colaborar e, ao
mesmo tempo, cobrar das autoridades as prometidas políticas sociais e
econômicas de “integração”.
A
necessidade de políticas públicas capazes de garantir a contrapartida
social das ocupações surge como a reivindicação principal: “nós queremos
o poder público presente, não só o braço armado do poder público”, diz
um líder comunitário do Morro da Mineira.6 Outro fator
determinante para a incorporação parcial do discurso “oficial” pelas
lideranças é a cooptação política, que ocorre não apenas por causa de
interesses individuais, mas porque as reivindicações populares tendem a
ganhar mais legitimidade junto à “opinião pública” quando não confrontam
a ideologia oficial da “pacificação”. Mesmo assim, existem aqueles que
não enxergam muitas diferenças entre as UPPs e outras experiências de
controle policial. É o caso de Rumba Gabriel, do Movimento Popular de
Favela, para quem a UPP é apenas um novo rótulo, exigido pelo momento
político atual, para mascarar velhas práticas autoritárias.7
Também aparece na fala de algumas lideranças que adotam uma posição
crítica às UPPs a tese de que o programa seria uma “fachada de
segurança” para dar uma resposta imediata aos investidores do projeto
olímpico, o que não se coaduna com as críticas que descrevem um reforço
do controle social sobre a pobreza. Além disso, é importante compreender
o conjunto das favelas ocupadas como espaços heterogêneos, nos quais
convivem diferentes camadas sociais, ou diferenças entra as “partes
altas”, menos integradas à cidade, e as “partes baixas”, entre o
comércio formal e o informal. Portanto, não se pode esperar uma reação
uniforme da população local, tendo em vista que, junto com a ocupação
policial-militar, ocorrem processos de regulamentação dos serviços e
atividades locais, além da proibição de eventos culturais responsáveis
pela geração de muitos empregos e da expressiva ampliação do fluxo de
pessoas que vêm de fora das comunidades.
Entre os
agentes do Estado, nova dualidade: nas falas dos comandantes da PM
encontramos apenas um resumo da versão doutrinária do projeto, sem que
elas difiram das formulações da secretaria de segurança. Os discursos
oficiais vão sendo elaborados de acordo com as demandas mais urgentes.
As UPPs, que eram apenas um experimento localizado, ganharam corpo e
apoio político e midiático quando começou a crescer a atenção
internacional sobre a cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, o programa
tornou-se instrumento decisivo do governo do estado na disputa política
no Rio de Janeiro. A “pacificação” da cidade foi enaltecida pela
cobertura midiática durante a ocupação das favelas do Complexo do Alemão
e da Penha, no final de 2010 (embora o episódio tenha sido
protagonizado pelas Forças Armadas, em uma operação imprevista que
resultou das intervenções da Polícia Militar em outras favelas), e as
UPPs foram apresentadas como “territórios da paz”, tornando-se uma marca
de exportação para outras cidades. Porém, o que os políticos não dizem e
a maioria dos especialistas finge não perceber pode ser constatado a
partir do ponto de vista da corporação policial, ainda que se trate
apenas de uma formulação tosca: em contraste com as declarações
oficiais, prevalece entre os policiais a idéia de que as UPPs visam
apenas à segurança da Copa e das Olimpíadas, além de se configurar como
um “programa eleitoreiro” para tranqüilizar a classe média (CANO, 2012:
8-9). Igualmente relevante é o surgimento de manifestações de clara
hostilidade ao programa por parte dos próprios policiais, como a
clivagem no interior dos batalhões entre os PMs mais antigos e os
recrutas formados para atuar nas UPPs, que não são reconhecidos pelos
primeiros como “verdadeiros policiais”. Além disso, uma pesquisa com
soldados lotados nas “unidades pacificadoras” mostra que 70% deles
prefeririam realizar outro tipo de policiamento (CANO, 2012: 8-9).
É flagrante o
contraste entre as idéias norteadoras do programa de “pacificação” e a
sua implantação, especialmente no que diz respeito à promessa de ocupar
todas as favelas cariocas. No entanto, pronunciamentos mais recentes do
secretário de segurança, José Mariano Beltrame, indicam uma espécie de
inflexão realista: “não pretendemos usar o projeto em todas as favelas, e
isso também não é o remédio definitivo para os nossos problemas”, disse
o secretário em um momento de crise gerado a partir das evidências de
que os conflitos entre traficantes prosseguiam nas periferias.8
Isso significa que, contrariando muitas expectativas, o policiamento
permanente não deve se converter em uma política de segurança para o
conjunto da cidade, só que menos por causa da carência de recursos do
que pela natureza do programa. O modelo de policiamento que vem sendo
adotado nas ocupações exige cinco vezes mais PMs por morador do que o
patrulhamento convencional e, em muitos casos, conta ainda com
instalações provisórias e condições de trabalho bastante precárias. Mas
isso não explica tudo. O fato é que as UPPs foram concebidas a partir de
uma perspectiva que vê as favelas ocupadas como espaços de ilegalidade
incrustados na cidade. As UPPs não podem se generalizar porque só são
possíveis onde existe um nítido contraste entre a favela e a cidade
formal, o que elucida a escolha das áreas centrais e dos bairros das
camadas mais abastadas (além das principais vias de acesso e circulação
da cidade) em detrimento das áreas periféricas, que contam com os
maiores índices de violência.
Esse quadro
nos coloca diante de uma dificuldade que é anterior à questão da
estratégia de segurança adotada pelo Estado e que as coberturas
jornalísticas costumam se esforçar para nos fazer esquecer: as ocupações
das favelas não foram precedidas por nenhuma reforma das instituições
policiais. Helio Luz, ex-chefe da Polícia do Rio de Janeiro entre 1995 e
1997, diz que o fato de colocarem recrutas para montar as UPPs revela o
descontrole e a corrupção nas polícias.9 Por sua vez, Luiz
Eduardo Soares, secretário de segurança pública entre 1999 e 2000, que
também considera as UPPs uma continuação dos “mutirões pela paz” e do
GPAE, afirma que as virtudes do programa “não terão futuro se as
polícias não forem profundamente transformadas” (“A crise no Rio e o pastiche midiático”).
Mas a UPP não avança nesse sentido: o treinamento diferenciado não
diminuiu a truculência e o autoritarismo, mantendo a desconfiança mútua
entre moradores e policiais. Se as operações com altos índices de
mortalidade diminuíram, a convivência forçada com um aparato repressivo
fortemente armado e que exerce um controle permanente sobre a vida
cotidiana das favelas produziu novos atritos. Desde 2009, o Estado
ampliou o número de policiais, mas a formação “diferenciada” tem
esbarrado nos problemas da urgência e da falta de recursos, o que
resulta na eliminação de critérios de seleção e na redução do tempo de
formação dos recrutas. Além disso, a relação entre “qualificação” e
“eficiência” é menos direta do que parece – e sempre se deve levar em
considerações aspectos como a definição de objetivos políticos, os
interesses materiais e as motivações individuais. Ainda sobre esse
aspecto, deve-se recordar que, em 2000, os policiais do GPAE receberam
treinamento especial, incluindo instruções sobre legislação, direitos
humanos e abordagem de pessoas. Mesmo assim, cerca de 70% dos policiais
empregados no grupamento foram transferidos por desvios de conduta.
Embora existam semelhanças entre o GPAE e as ocupações atuais, não
faltam diferenças, sobretudo na amplitude das operações e no apoio
político e midiático, ambos indissociáveis do projeto olímpico. Existe
também uma significativa diferença de concepção. Ao contrário das UPPs, o
programa anterior não previa a manutenção de grandes contingentes
policiais nos locais ocupados. Essa diferença reflete uma preocupação
maior com a redução dos índices de criminalidade violenta do que com o
controle de territórios estratégicos. De qualquer forma, o programa não
foi adiante por falta de apoio político e em função das denúncias
envolvendo um problema para o qual as UPPs também não apresentam
solução: a corrupção das polícias.
Ao descrever
esse conjunto de análises, opiniões e posicionamentos a respeito da
“pacificação”, pretendi colocar em evidência as implicações deste
processo e o amplo conjunto de questões que ele suscita. Em primeiro
lugar, interessa o modo como a problemática da segurança pública se
articula com aspectos centrais da dinâmica da cidade. Em um texto
anterior, “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”, persegui as pistas dessa articulação.10
Nele,
argumentei que a lógica da “pacificação” possui três dimensões, todas
relacionadas entre si, de modo que nenhuma delas pode ser plenamente
compreendida se isolada das demais. Em primeiro lugar, trata-se de uma imagem de segurança
a qual a cidade precisa estar associada: mesmo tendo nascido como um
experimento relativamente autônomo, o programa das UPPs só ganhou força
quando começou a fazer parte de um projeto mais abrangente de
reestruturação urbana.
Esse projeto
reproduz uma longa tradição de grandes reformas, inaugurada pela
administração de Pereira Passos, no início do século XX, que tem sua
razão de ser não na melhoria das condições de vida da população, mas na
necessidade de modificar a imagem da cidade. Como já foi dito, coube às
novas unidades de policiamento permanente diminuir o sentimento de
insegurança da população através da ocupação de pontos estratégicos da
cidade. Também a imagem do Estado e a legitimidade de suas intervenções
estavam em questão, tendo em vista os números alarmantes de supostos
confrontos letais envolvendo policiais. Com a sinalização de uma mudança
das formas de enfrentamento da criminalidade que logrou, a despeito da
manutenção de altos índices de violência, a construção de um consenso a
respeito dos seus êxitos, a cidade do Rio pôde voltar a ser um cenário
atrativo para investimentos de grande porte.
Nesse
sentido, o “ufanismo televisivo” é parte integrante e indispensável da
lógica da “pacificação”. É nesse contexto que os chamados “megaeventos”
esportivos surgem como os grandes catalisadores que devem atrair
parceiros privados e mobilizar grande parte da população local em torno
da “renovação” da cidade. Para isso, os organizadores dos eventos, que
não deixaram de inspecionar as primeiras UPPs antes que a sede dos jogos
fosse escolhida, contam com o favorecimento do poder público e com uma
série de medidas de exceção capazes de, em pouco tempo, produzir a
adequação da cidade ao projeto olímpico.
É aqui que entra o segundo aspecto da “pacificação”: as UPPs participam ativamente na consolidação de um novo modelo de cidade empreendedora.
Isso acontece em função da escolha das áreas privilegiadas, que devem
se tornar mais seguras para o conjunto de investimentos e na produção de
novas segregações socioespaciais pois, juntamente com as UPPs – e, em
parte, através delas –, a política de remoções tem ganhado novo fôlego.
Por sua vez, a valorização imobiliária decorrente não só das ocupações,
mas do conjunto de transformações urbanas atuais, não deve ser
considerada um simples epifenômeno. Através de inúmeras declarações
oficiais, podemos constatar que as áreas ocupadas são escolhidas também
em virtude das possibilidades de valorização patrimonial.
Por fim, as
UPPs têm servido para garantir, nas favelas ocupadas, a “integração” de
serviços e atividades informais a todo um conjunto de novas articulações
pela via econômica, cujos exemplos mais expressivos são um banco
popular na Cidade de Deus e a privatização dos serviços na zona
portuária sob a vigilância da UPP da Providência. Esse último dado nos
coloca diante de mais um aspecto da “pacificação”, que é o
fortalecimento do controle social já mencionado.
Cabe apenas
ressaltar que, ao contrário da visão ingênua de alguns críticos, não
estamos diante de um programa passageiro, e sim de uma forma adensada de
controle que modifica a dinâmica da cidade e altera também a relação
entre o Estado e os segmentos mais pobres da população. Por outro lado, a
cidade do Rio de Janeiro assistiu, nos últimos dez anos, à ascensão de
novas formas de regulação social armada, que tem se intensificado – e
não por acaso – nas áreas negligenciadas pelo programa de “pacificação”.
Em meio a esse processo contraditório, as periferias que atraem a
migração do tráfico, e para as quais já se disse abertamente que as UPPs
não são uma solução, continuam a ser as principais vítimas da política
extra-oficial de execuções e desaparecimentos.
As favelas
sempre constituíram relações de cooperação em seu espaço interno, a
partir das quais surgiu um discurso um tanto idealizado sobre as
“comunidades”. No plano da economia urbana, elas são parte de um
“circuito inferior” que se relaciona com o conjunto das atividades
presentes na cidade (SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos.
São Paulo: EDUSP, 2004.). Porém, no plano social, são abundantes as
medidas de urgência e de sobrevivência que, mesmo sem qualquer
perspectiva de mudança social, se caracterizam muitas vezes por não
assumirem a forma de relações mercantis. A integração das favelas
ocupadas ocorre de forma muito parcial ou seletiva. A via da
“formalização” das atividades não tem contrapartida em termos de
projetos sociais ou de organização coletiva. De um lado, ela agrava as
segregações através da elevação dos custos gerais da reprodução das
moradias e, de outro, estimula, nos espaços marginalizados, as mesmas
relações presentes no restante da cidade. Em consequência, os moradores
das chamadas “comunidades” se parecem cada vez mais com indivíduos
atomizados que podem apenas trocar serviços entre si. As poucas formas
de organização social existentes ficam comprimidas entre as pressões
econômicas e um sistema de vigilância permanente. Por isso, não é
acidental que as UPPs obstruam as iniciativas coletivas. Se o auge dos
movimentos comunitários na década de 1980 estava associado ao
reconhecimento dos direitos da população pobre, a conjuntura inaugurada
na década seguinte, que pode ser caracterizada como uma viragem política
de caráter “neoliberal”, foi dominada pelas idéias fixas do mercado e
da ordem urbana. A partir de então, a idéia de integração, antes
associada às demandas coletivas que só podiam ser atendidas através de
políticas universalistas, foi ressignificada até se tornar uma espécie
de privatização da vida cotidiana por meio do consumo individual.11
Duas questões surgem a partir desse quadro. Além da necessidade de
compreender a transformação da política de segurança em um momento
decisivo da “renovação” da imagem da cidade, surge o desafio de
articular a problemática da violência com o desenvolvimento da crise
urbana.
No que diz
respeito à relação entre violência e reestruturação urbana, podemos
dizer, muito resumidamente, que o problema principal é o tratamento
monográfico ou unilateral dispensado a temas que, pela sua própria
natureza e dinâmica, só podem ser compreendidos como partes de uma
totalidade concreta. Para um determinado “campo” de investigação teórica
que se debruça sobre a problemática da segurança, os elementos
negligenciados são a cidade e o urbano. Isso ocorre, por exemplo, quando
algumas análises apontam que a limitação, por assim dizer, espacial, do
programa das UPPs, decorre exclusivamente da falta de recursos para a
expansão e manutenção de novas unidades. O que desaparece nesse
tipo de comentário é a produção de segregações, bem como a
reconfiguração territorial do crime – quer se trate dos grupos de
traficantes que abandonam as áreas mais “nobres” da cidade, quer das
milícias, que ocupam as áreas “descuidadas” pelo Estado. Em outros
momentos, a dimensão espacial volta à cena, mas adquire um sentido mais
retórico que analítico. Assim, podemos ler que “as UPPs são uma proposta
de política de segurança pública específica para áreas da cidade que
podem ser reunidas sob o nome de territórios da pobreza”.12
Se o que está em questão é a ocupação dos
“territórios da pobreza”, como foi afirmado, então convém perguntar:
por que motivo as regiões mais pobres da cidade (sem falar nos
municípios limítrofes, ainda mais pobres e mais violentos) são,
precisamente, os locais que permanecem fora do alcance direto da
pacificação? É que o problema parece estar colocado de modo invertido.
Não se trata de ocupar os “territórios da pobreza”, mas de controlar a
massa de pessoas pobres que permanece em aglomerados de pobreza no interior ou em contato com os territórios nos quais a riqueza circula.
Em todo caso, a questão de saber por que, afinal de contas, a lógica da
“pacificação” privilegia as áreas “nobres” é respondida pelo mesmo
autor, agora não do ângulo do especialista, mas da razão cínica:
considero possível que o simples deslocamento das atividades criminais
para regiões mais recônditas da cidade, associado à discrição no uso de
armas pelos criminosos que permanecem atuando nas áreas nobres, venha a
reduzir o sentimento generalizado de medo e insegurança… (“Afinal, qual é a das UPPs?”: 3).
Outro campo
de investigação que nos interessa mais diretamente é o das pesquisas
urbanas. Também aqui se verifica o mesmo desencontro. Mesmo alguns
pesquisadores que fazem parte do debate sobre o “novo modelo de cidade”
em gestação, como Raquel Rolnik ― relatora da ONU para o direito à
moradia adequada ―, enxergam as UPPs somente como “condicionalidades”,
sem relação direta com os “megaeventos”.13 Essa questão
também foi alvo da reflexão de um Comitê Popular da Copa e das
Olimpíadas que reúne, entre outros, integrantes da Central de Movimentos
Populares, da Justiça Global, do Observatório das Metrópoles e do Fórum
Popular de Orçamento do Rio de Janeiro. O Comitê produziu o dossiê “Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro”,
com o qual compartilho uma série de pontos de vista e que tem, desde
já, o mérito de colocar em foco a relação entre as UPPs e a lógica do
empreendedorismo urbano. Para o coletivo de autores,
o
que fica claro no caso do Rio de Janeiro é que o projeto de atração de
investimentos tão propagandeado pelo poder público municipal e estadual
com a realização da Copa do Mundo de futebol de 2014 e dos Jogos
Olímpicos de 2016 tem como um componente importante a expulsão dos
pobres das áreas valorizadas ou que serão contempladas com investimentos
públicos. Outra faceta dessa política é a criação das UPPs (…) tendo em
vista que não é possível deslocar todos os pobres das áreas „nobres‟ da
cidade [grifo meu]. (DOSSIÊ, 2012: 8).
Contudo, ao
analisar mais de perto o tema da segurança pública, o dossiê afirma, em
patente contradição com o próprio diagnóstico acima, que as UPPs,
definidas como um programa “inspirado no conceito de policiamento
comunitário, que tem como estratégia a busca de uma parceria entre a
população e as instituições de segurança”, “trazem uma série de
benefícios para os moradores”, incluindo a “inserção no mercado formal” e
a “redução dos homicídios” (DOSSIÊ, 2012: 51). Na opinião dos autores,
esse conjunto de elementos positivos seria contrabalançado apenas pela
crescente especulação imobiliária nas favelas ocupadas, provocando a
expulsão dos mais pobres. Ao não enfatizar diferenciações econômicas no
interior das comunidades ocupadas – o caráter seletivo da “integração”
-, os autores em questão são levados, em outra contradição, a considerar
a mercantilização das favelas como um “benefício para os moradores”. Ao
mesmo tempo em que o Comitê denuncia a substituição de uma política de
segurança eficaz pela produção de uma “imagem de segurança” voltada para
a atração de investidores, o seu documento considera que o principal
instrumento dessa representação ideológica de uma “cidade segura” para o
capital, a UPP, é uma “importante conquista” em relação às políticas
anteriores, e termina as considerações sobre a política de segurança
cobrando a extensão do programa para o conjunto da cidade, pois “há
outras centenas de comunidades que ainda não receberam as UPPs” (DOSSIÊ,
2012: 52).14
Além disso,
o documento, que caracteriza vagamente as UPPs como “inspiradas” no
policiamento comunitário ― e, assim, coloca-se em uma posição ainda mais
frágil que a das abordagens sociológicas descritas acima ―, também as
considera como parte de um programa meramente instrumental a serviço dos
interesses envolvidos na organização dos grandes eventos: “é claro que
esse investimento em segurança faz parte de um projeto maior de
reterritorialização urbana e de controle social”, que seriam “elementos
chaves dos megaeventos”. (DOSSIÊ, 2012: 51). Aqui seria necessário
inverter o argumento e mostrar como é que grandes eventos de porte
internacional tornaram-se, especialmente a partir da experiência de
Barcelona, no início dos anos 1990, elementos importantes para a
concepção de um “projeto maior” de reestruturação urbana orientado pelos
princípios da gestão empresarial. Se a lógica da “pacificação” não pode
ser explicada a partir de uma hierarquia dedutiva que a converta em
simples instrumento de interesses econômicos, o que exige um
desvelamento das articulações entre a crise urbana e as intervenções no
âmbito da segurança, tampouco cabe atribuir a um “megaevento” a
capacidade de produzir, por si só, a reconfiguração da dinâmica
territorial da cidade. De qualquer forma, a imagem desenhada pelo dossiê
permanece, malgré lui, essencialmente correta para
caracterizar um modelo de cidade segregada que está sendo produzida aqui
e agora: Depois da Copa e das Olimpíadas, corre-se o risco de se
acordar numa cidade onde os que consomem, vivem e lucram no mercado
formal das partes mais nobres da cidade podem ter acesso quase
instantâneo à segurança, enquanto as camadas sociais menos favorecidas
vivem sob a vigilância de um regime militar altamente armado e treinado
para defender os interesses mercantis” (DOSSIÊ, 2012: 54).
Quanto à
segunda questão, cabe, antes de tudo, reconhecer que se trata de um tema
difícil, quase não abordado por aqueles que se dedicam à questão urbana
e que ultrapassa os limites destas notas. É preciso considerar que a
expansão do modelo do tráfico de drogas baseado no controle territorial
armado não é compreensível sem referência ao processo de esvaziamento
econômico da cidade a partir da segunda metade da década de 1970. 15
No caso do Rio de Janeiro, também não se pode esquecer que essa
situação de urbanização sem crescimento econômico resultou no modelo
atual de ocupação das periferias e na favelização. O que se viu a partir
de então foi não apenas o domínio territorial de partes da cidade pelas
facções de traficantes armados mas, igualmente, a proliferação dos
famigerados grupos de extermínio, que constituíam uma espantosa
“solução” privada encontrada por comerciantes e políticos locais para
suprir a ausência do aparato policial nas regiões carentes da cidade. Ao
mesmo tempo, a corrupção policial se tornava decisiva no fortalecimento
das redes do tráfico de drogas e armamentos pesados. Nas favelas, os
métodos de tortura abolidos pelos rituais punitivos modernos, que
incluem esquartejamentos e pessoas queimadas dentro de pneus, foram
reproduzidos nos “tribunais” do tráfico, em longas expiações públicas
que bem poderiam ilustrar a ostentação dos suplícios descrita por
Foucault em seu livro sobre o nascimento da prisão. Esse quadro de
barbárie que acompanha todo o período de crescimento da pobreza urbana
alimentou o que foi oportunamente classificado como uma “guerra
particular” entre traficantes e policiais, sem falar nos conflitos
permanentes entre as facções do tráfico. O Rio de Janeiro viu o antigo status
de “Cidade Maravilhosa” desaparecer em manchetes de jornais que
descreviam a cidade como um cenário de guerra e decadência econômica.
Assim, a força das armas impôs relações brutais que, de tão freqüentes,
foram naturalizadas: incursões violentas nos morros, práticas
sistemáticas de tortura nas delegacias e unidades prisionais e
faccionalização de territórios periféricos.
Nessa
atmosfera de decomposição social é que surgem as primeiras tentativas de
reversão da crise, incluindo a presença recorrente das Forças Armadas
nas ruas da cidade. Mas essa reversão, idealizada desde o início dos
anos 1990 até culminar na realização do projeto da “Cidade Olímpica”,
não ocorreu a partir de uma mudança que revertesse o quadro de pobreza e
desigualdade. Ao contrário, ela deixou os mecanismos de exclusão social
intactos. O novo urbanismo está atrelado a processos concentradores de
riqueza. Ele reduz a gestão pública à criação de contextos favoráveis
aos interesses privados e
reforça a
segurança patrimonial e a vigilância privada contra as estratégias de
sobrevivência dos pobres. Com a imagem de segurança produzida pelas UPPs
é possível voltar a fazer da cidade um lugar atrativo para
investimentos reunidos em poucas mãos, que são capazes de absorver os
segmentos mais qualificados da mão-de-obra, deixando em segundo plano os
serviços básicos e as condições materiais de reprodução da maior parte
da população. Esse padrão de investimento sem planejamento, guiado
unicamente pelos lucros da especulação sobre o preço dos terrenos,
estimulou a política de remoção dos pobres, que retornou com força nos
últimos anos. Em função do tipo de investimento recebido, a cidade do
Rio tem permanecido alheia até mesmo à redução da pobreza que se
verifica no cenário nacional com a ampliação do consumo na base da
pirâmide social. Na última década, de fato, ocorreu não só um aumento
(em termos absolutos e relativos) da favelização, o que indica uma
ampliação da pobreza, mas a cidade vem se tornando cada vez mais cara e
desigual. Não há, portanto, como falar em “novas fronteiras” para a
acumulação. Antes, o capitalismo de crédito popular e endividamento
deveria ser visto como sintoma dos limites do crescimento impostos por
uma crise estrutural que tem se mostrado irreversível. Os cenários da
“Cidade Olímpica”, da qual as UPPs são parte essencial, têm devolvido
aos “cariocas” a auto-estima, enquanto as periferias se convertem em
espaços de atuação dos poderes mafiosos. Aqui, a crise urbana torna-se
central para compreender as formas de regulação social armada e a
economia de pilhagem. A atuação dos grupos milicianos nas brechas de um
poder estatal, cuja capacidade de intervenção global é solapada devido
aos altos custos de manutenção do “aparato”, não é uma estratégia
consciente de poder, mas um momento dessa crise.16 A
crescente redução da lucratividade do tráfico, que expressa a mesma
situação do ângulo de uma economia ilegal, ampliou substancialmente o
quadro de crise ao levar as diferentes facções a práticas cada vez mais
irracionais. Se em algum momento foi possível ver a “opção pelo tráfico”
como fruto da racionalidade econômica, o morticínio verificado nos
últimos anos ― especialmente entre os jovens das favelas e periferias ―
torna ridículo esse tipo de cálculo supostamente racional, do mesmo modo
que as novas drogas baratas introduzidas já no contexto de crise não
são capazes de criar um “novo mercado” para o tráfico, podendo, apenas,
ampliar o espetáculo “pós-urbano” de desagregação social.
A “Cidade
Olímpica” torna-se cada vez mais dual: da mesma forma que a Reforma
Passos acabou com a “promiscuidade” entre camadas sociais na antiga área
central, dando origem a favelas e ocupações suburbanas irregulares, a
reestruturação pela qual a cidade vem passando nas duas últimas décadas
(e, com maior ênfase, desde o início das obras de preparação para os
eventos esportivos internacionais) ampliou as segregações e as formas
violentas de administração da pobreza. Essa estratégia urbana, comum em
metrópoles de países periféricos, faz parte de uma “economia básica de
distribuição dos espaços, que implica a construção de dois territórios
dentro de uma mesma sociedade” (MENEGAT, Marildo. “A guerra civil no
Brasil”. In: O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006, pp. 105-122.).17
A cidade que
pretendia repetir o aparente sucesso de Barcelona – que, nesse meio
tempo, se tornou mais do que duvidoso – conseguiu apenas reproduzir
algumas das lições de Medellín, cidade que inspirou uma série de
aspectos do nosso modelo de “pacificação”, desde a concepção geral das
ocupações permanentes até alguns detalhes como os teleféricos, parques
literários e acanhados projetos sociais idealizados para “disputar” os
jovens com as redes do tráfico. Mas a maior “lição”, que,
aparentemente, confirmava uma ideia repetida de forma dogmática pela
maioria dos especialistas, é que a redução da pobreza não é uma condição
para enfrentar o problema da criminalidade.
Em todo
caso, o que já acostumamos a chamar de “enfrentamento da violência” não
significa uma menor necessidade de regulação armada da sociedade e,
muito menos, uma redução substancial dos crimes violentos. Trata-se
apenas de criar um impacto positivo com o qual se espera garantir um
“salto nos negócios”. Também aqui Medellín nos oferece um exemplo: a
“pacificação”, que varreu os grupos insurgentes das favelas, conseguiu
substituir os conflitos e massacres cometidos por paramilitares por
assassinatos seletivos de lideranças comunitárias. Com a posterior
desmobilização desses grupos, o centro da cidade finalmente se tornou um
lugar mais seguro para os negócios, incluindo o boom imobiliário
financiado com o dinheiro das drogas. Enquanto isso, “milícias civis”
infiltradas por traficantes e ex-paramilitares se convertiam em grupos
legalizados de vigilância privada. Não foram poucos os que viram a
articulação entre negócios ilícitos, corrupção política e paz armada
como um bom exemplo.
Será uma nova lição de Medellín?
NOTAS
2.
Desde há muito se sabe que “todos os especialistas são
midiático-estatais, e só dessa forma são reconhecidos como
especialistas” (DEBORD, 1988: 31).
3. “Conferência: Luiz Werneck Vianna – Sociedade, Política e Direito”. Acesso em: novembro de 2012.
4. Para exemplos de interpretação que partem dessas denúncias, ver Alves e Martins (ALVES, José Cláudio. “Uma guerra pela regeografização do Rio”; MARTINS, Leonardo. “UPP: Unidade de Polícia Pacificadora ou um projeto de poder?”).
5.
Uma pesquisa da FVG realizada em 2009 avaliou a opinião de moradores
nas duas primeiras UPPs: “No mínimo 95 de cada 100 entrevistados
apoiaram a expansão dessa política para outras comunidades e 90%
desejava que a iniciativa continuasse indefinidamente em sua região”
(CANO, Ignácio (coord). “„Os Donos do Morro‟: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no Rio de Janeiro”. Relatório
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.: 6). Essa aprovação
esmagadora deve ser relativizada de duas maneiras. Primeiro, porque ela
se refere a duas UPPs que serviram de “modelo”: a do morro Dona Marta e a
da Cidade de Deus. Em outros casos, o processo de instalação das UPPs
apresenta outras características e enfrenta maiores dificuldades, além
de contar com menor apoio local. Em segundo lugar, a aprovação alta não
elimina o sentimento negativo em relação aos policiais, que é provocado
por diferentes “abusos” cometidos nas favelas ocupadas. Além disso, já
se constatou que a presença do policiamento permanente aumenta as
denúncias de pequenos crimes nas áreas ocupadas, mas inibe as denúncias
quando o alvo é a própria polícia – o que mascara as estatísticas de
corrupção e práticas violentas cometidas pelos policiais lotados nas
UPPs. Quanto ao temor de que a “pacificação” acabe após os grandes
eventos que a cidade vai sediar, ele não se deve somente à perspectiva
de interrupção dos já escassos programas sociais, mas também – e
principalmente – por causa da incerteza quanto a uma possível volta dos
traficantes armados.
7.
Entrevista ao autor realizada em outubro de 2012. Rumba destaca ainda a
continuidade entre as UPPs e o GPAE (Grupamento de Policiamento em
Áreas Especiais), criado em 1999 mas logo encerrado. Michel Misse também
descreve a estratégia do GPAE como algo muito parecido com a atual, na
qual “territórios seriam primeiramente „conquistados‟ dos traficantes e
depois „controlados‟ por forças especiais localizadas fisicamente na
área” (MISSE, 2012).
9. “Eu
não entendo por que colocam recrutas para montar UPPs. Eles dizem que,
na média, são uns 200 recrutas com um oficial. Nas 14 UPPs, dá algo em
torno de 2,8 mil recrutas, 3 mil recrutas. Então, 3 mil recrutas estão
resolvendo a situação da criminalidade no Rio? Tem um contingente de 40
mil policiais, mais 10 mil na Polícia Civil, que não resolveram o
problema da criminalidade. É isso que estão dizendo? Se é isso, estão
confirmando que o problema é corrupção” (“O Estado criou estes caras”).
10. Marcos Barreira, “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”, em Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Org. Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2013
11.
O ex-prefeito César Maia, que protestou contra a “privatização” das
ruas pelo comércio ambulante, foi um dos principais ideólogos dessa
virada que culminou no projeto da “Cidade Olímpica”. Não por acaso, os
temas da ordem urbana e da militarização da segurança também fizeram
parte da sua “agenda” desde o inicio dos anos 1990. Mas, no que diz
respeito às políticas urbanas, essa inflexão deve ser relativizada.
Fruto da conjuntura de crise estrutural, o governo de Leonel Brizola, no
início da década de 1980, já teve como característica a impossibilidade
de realizar investimentos públicos em grande escala para a reforma
urbana. Diante do problema da habitação popular, o governo foi forçado a
“conduzi-lo oficialmente nos moldes do que já vinha sendo feito espontaneamente”
pela população pobre da cidade. A atuação do governo e das
administrações municipais, consideradas as duas décadas em questão,
consistiu em aceitar, legalizar e promover algumas melhorias nas favelas
– tudo isso em meio a um “giro culturalista” que substituiu as idéias
de planejamento global da cidade pela revalorização do “espaço
comunitário” e das “soluções criativas” dos moradores das favelas. Sobre
isso ver o texto de Maurilio Lima Botelho, “Crise urbana no Rio de
Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres”, em Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Org. Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2013.
12. Luiz A. M. da Silva, “Pacificação ou controle autoritário”, entrevista.
13. “Já estão sendo aprovadas várias excepcionalidades para a Copa do Mundo”, diz Raquel Rolnik, em entrevista concedida à revista Caros Amigos de janeiro de 2011.
14.
Caso semelhante ao do Dossiê aqui analisado é o do deputado estadual
Marcelo Freixo, do PSOL, que, durante a campanha para a prefeitura,
desenvolveu um discurso bastante articulado sobre o “modelo de cidade”
baseado na lógica do mercado, mas evitou confrontar diretamente o
programa das UPPs. Foi mérito inegável de sua campanha (e de sua ação
parlamentar) deslocar o foco do debate para o que poderíamos chamar de
lado obscuro da “pacificação”, ou seja, o crescimento alarmante dos
grupos milicianos nas periferias da cidade. A dificuldade de interpretar
as UPPs como parte do “modelo de cidade” denunciado pela campanha de
Freixo não deve ser vista apenas como uma incapacidade de compreensão da
lógica da “pacificação”. Mais do que isso, ela expressa a contradição
que se verifica no interior das camadas populares, que se consideram ao
mesmo tempo “libertadas” e “oprimidas” pelo policiamento permanente. Em
todo caso, Freixo não deixou de observar, em várias intervenções, as
diferenças entre o programa das UPPs e os princípios do “policiamento
comunitário”.
15. O
que ocorreu num quadro mais abrangente de endividamento estatal e de
esgotamento dos modelos periféricos de desenvolvimento: “Planejamento
urbano, política de transporte de massa, programa habitacional,
zoneamento espacial, todos os principais pontos de uma política urbana
ampla desapareceram com a crise geral do Estado e da economia
desenvolvimentista. Foi nesse contexto que o chamado “problema favela”
explodiu, já que essas áreas de precariedade urbana e habitacional
continuaram a crescer aceleradamente, apesar de o país estar passando
por um freio demográfico, isto é, próximo da última fase da transição
populacional”, Maurilio Lima Botelho, “Crise urbana no Rio de Janeiro”,
cit.
16. As
abordagens que enxergam o desenvolvimento das milícias ou a
criminalização dos pobres como o objetivo das intervenções na segurança
pública acabam promovendo apenas uma inversão do ponto de vista segundo o
qual tais fenômenos seriam efeitos secundários das estratégias de
segurança do Estado. Com a referida inversão corre-se o risco de perder a
dimensão estrutural do problema, que se vê reduzida à intencionalidade
dos “atores sociais”. Dito de outro modo: é um tanto absurdo afirmar que
as estruturas mafiosas e a vigilância nas favelas são objetivos
inconfessos que as políticas de Estado devem “mascarar”. Mesmo quando os
agentes do Estado fabricam um inimigo como o “crime organizado” – ou
eles próprios se organizam de forma ilegal –, o fazem através de
relações de poder e interesses imediatos e não “a serviço” de um projeto
político. A ampliação dos mecanismos de controle sobre a população
pobre não é, portanto, nem um efeito secundário nem uma meta a ser
alcançada e sim um segundo aspecto, igualmente importante, das novas
formas de administração da pobreza que se impõe aos governos quando os
mecanismos de integração social perdem força. As milícias, por sua vez,
talvez sejam a expressão mais clara dessa integração “falhada”.
17. Mas
não se pode dizer que tal processo siga fielmente a uma “estratégia de
classe” ou que seja determinado pela “espacialização da dinâmica de
classes” como sustenta o autor. A segregação espacial corresponde,
antes, a uma diferenciação entre os segmentos da população que se
encontram em uma situação de maior “integração” à lógica econômica e o
segmento de “não-rentáveis”, que também podem ser definidos como uma
massa de “desclassificados”. Em outras palavras: a espacialização dos
conflitos sociais não é redutível a um conflito de classes. Além disso,
também é claro que essa diferenciação entre as elites econômicas e as
camadas médias, de um lado, e a população pobre, de outro, não exclui o
fato de que o grande volume de investimentos e obras públicas mobiliza
um contingente assalariado de baixa qualificação e mal remunerado, mas
que se torna parcialmente integrado, o que ajuda a produzir uma
diferenciação no interior das camadas populares.
***
Marcos Barreira é
psicogeógrafo, especializado em teoria situacionista e autor do artigo
“Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência
na cidade do Rio de Janeiro”
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