Casas de madeirite. Grupos de
trabalho, mutirões e assembleias. Como lutam e vivem 30 mil pessoas que
ocuparam terreno gigante em S.Paulo
Reportagem de Isabel Harari e Roberto Oliveira, da Agência Vaidapé | Fotos: Victor Santos
Clodoaldo Santos Costa acorda todos os dias às 7h e sai para buscar
água para a cozinha coletiva do G3, maior grupo, com mais de mil
barracos, da ocupação Vila Nova Palestina. Sem isso, não há café da
manhã. Quando ele volta com o primeiro dos quase 20 galões que carrega
às costas todo dia, as cozinheiras já o esperam, limpando e organizando o
refeitório, prontas para colocar a água no fogo e preparar o café que,
com bolachas e o pão com manteiga doado por um padeiro da vizinhança,
ajudam a acordar e sustentar os trabalhadores que saem à labuta diária.
“Aqui se aprende a lutar por nós e pelos outros também”, afirma
Clodoaldo, que há mais de dez anos vive de aluguel e aprendeu com seu
cunhado que é possível conquistar a casa própria através dos movimentos
sociais. “Aqui não tem vitória sem luta”, ele garante. Clodoaldo deixou
mulher e filhos para viver na ocupação, em busca da casa própria. Com
frequência, a família o visita e participa das atividades do
acampamento.
Enquanto isso, nos demais setores da ocupação, a cena se repete – os
galões de água se amontoando ao lado das cozinhas. Pois além do café tem
a louça e as demais refeições do dia, que está só começando na Nova
Palestina. Antes de partirem para trabalhar ou estudar (há muitas
crianças em todos os grupos da ocupação), os moradores assinam a lista
de presença diária – método utilizado pelo MTST para controlar a
frequência em suas ocupações.
Porém, muita gente permanece na Nova Palestina. Porque não faltam
tarefas e atividades cotidianas na pequena cidade. Quem fica na ocupação
dá conta dos chamados mutirões: de limpeza, infraestrutura, água,
segurança, alimentação. Tudo funciona coletivamente, através de
setoriais que cumprem diferentes papéis no acampamento. “Fazemos tudo
aqui por mutirão, hoje [5/2] vamos fazer a troca da rede elétrica da
ocupação”, diz Dorgival Duarte, do G5, que morava de aluguel no Jardim
São Luiz, zona sul, até que o proprietário decidiu vender o imóvel e ele
ficou desabrigado. Ele explica que não é permitido ter pontos de luz
nos barracos dos acampados, pelo perigo de causar incêndios nas lonas de
plástico. Assim, foram construidas verdadeiras ruas e avenidas na Nova
Palestina, margeadas por postes de luz.
Além da água que cada setor tem que
se organizar para buscar pela manhã, há tarefas como a manutenção das
lonas e madeirites e a coleta do lixo – que os moradores levam para a
rua Clamecy, ao lado do barranco em que se construiu a Nova Palestina,
para que haja a coleta pelo caminhão da Prefeitura uma vez por semana.
Fato que implica num cheiro forte na entrada do terreno e, pior, na
multiplicação dos riscos para a saúde dos acampados. Apesar da
coordenação da ocupação ter requerido à administração municipal uma
caçamba de lixo para que esta situação seja amenizada, o pedido ainda
não foi atendido.
Meio-dia. O sol forte está a pino sobre a Nova Palestina quando
se ouve gritos por toda parte: “Olha o almoço no G3″; “saindo almoço no
G5″; “olha o rango no G20″. E as pessoas, escondidas debaixo de alguma
réstia de sombra, começam a aparecer, uma a uma, em suas respectivas
cozinhas coletivas. As filas vão se formando no momento mais aguardado
desde o café da manhã. O almoço quase sempre é composto por feijão,
arroz, legumes, como batata ou cenoura, e um pedaço de carne – vermelha
ou branca, como as tilápias que os acampados pescam com rede no açude
que fica a poucos metros em declive no fundo do terreno.
Se possível, há ainda um copo de refrigerante para cada pessoa;
quando não, a água gelada mata a sede e o calor do mesmo jeito. Os
mantimentos e utensílios são doados pelos próprios moradores ou por
pessoas solidárias ao movimento. Às vezes, também há doações de mercados
e centros de distribuição de alimentos. Aos poucos, o amontoado de
pessoas dá lugar a uma pilha de pratos e talheres sujos, e o silêncio
vai tomando conta de cada grupo da ocupação, como numa sesta coletiva.
O silêncio se rompe, porém, com o corre-corre das crianças – umas
chegando, outras saindo para a escola. E muitas brincando, de pega-pega,
futebol, pular corda, no terrão descampado no centro do terreno da
ocupação. “Nós estamos construindo uma brinquedoteca para as crianças
aqui no G5, para elas não ficarem debaixo do sol forte e terem um lugar
pra brincar”, diz Edilaine Ferreira, uma das coordenadoras do Grupo 5
da ocupação, que morava de favor do Jardim Aracati, quando o
proprietário pediu de volta o terreno e ela ficou sem um teto. Edilaine
tem quatro filhos e conta que uma das maiores dificuldades na Nova
Palestina é conseguir matricular as crianças em escolas públicas.
Vídeo por João Miranda e Vinícius Pereira
Em sua maioria, elas permanecem nos colégios que estudavam antes da
ocupação: o Jardim Aracati, Jardim dos Reis e Capela IV, a cerca de 30,
40 minutos do acampamento. Não é possível realizar a matrícula em
escolas mais próximas à Nova Palestina, pois os acampados não possuem
comprovante de residência. Só nesse grupo, são em torno de 250 crianças.
Quem também ajuda a coordenar o G5 é “Dona Mônica”, como é
respeitosamente chamada. Ela está no acampamento “desde as 11h45 do dia
29 de novembro do ano passado”, quando o Movimento dos Trabalhadores
Sem-Teto (MTST) ocupou o terreno de quase 1 milhão de metros quadrados
ao lado da rua Clamecy, numa perpendicular da estrada do M’boi Mirim,
sentido represa do Guarapiranga, na região do Jardim Ângela.
A Vila Nova Palestina, conforme batismo na primeira assembleia, conta
hoje com oito mil famílias, cerca de 30 mil pessoas e é dividida em 21
grupos, os conhecidos “gês”. Cada grupo tem uma média de cinco
coordenadores, que ajudam a organizar as tarefas do cotidiano: fazer a
lista de presença, a coleta do lixo, a busca d’água, a manutenção da
infraestrutura, mobilizar as pessoas para as assembleias e,
principalmente, resolver os conflitos existentes em toda família –
normalmente briga de casais e desavenças entre crianças. “A gente
encontra aqui uma nova família e vive a realidade de outras pessoas. Às
vezes pensamos que nosso sofrimento é maior que o dos outros, mas
sempre tem gente sofrendo mais que a gente”, diz ela, explicando que a
ocupação é uma grande escola de vida.
O MTST reivindica que a prefeitura revogue o Decreto de Interesse
Social lançado na gestão Kassab, que determina a construção de um parque
na região e assegura apenas 10% de área edificada. Jussara Basso,
militante do MTST, aponta para o Parque Ecológico do Guarapiranga,
distante apenas 50 metros da ocupação, fato que evidencia a
arbitrariedade da medida. A luta é pela mudança do tipo de zoneamento
para uma ZEIS-4 (Zona Especial de Interesse Social 4), em que 30% da
área possa ser habitada.
Os proprietários do terreno, Nelson Luz Roschel e Roberto Roschel
afirmaram em nota no dia 13 de janeiro que concordam em dialogar com o
movimento e entregar o terreno para os moradores caso a Prefeitura mude o
zoneamento. A secretaria de Direitos Humanos preparava-se para realizar
uma primeira reunião com os movimentos de luta por moradia na
quinta-feira, dia 13 de fevereiro.
Assim como possuir pontos de luz nos barracos, também é proibido
construí-los em alvenaria, pois o objetivo da ocupação é conquistar
moradia digna para todas as pessoas, e não se transformar em mais uma
favela de São Paulo. Assim, na Nova Palestina as construções são de
madeirite. “A ideia não é permanecer dessa forma. Não sabemos quanto
tempo vamos ficar aqui, pode ser até o Plano Diretor ser votado, ou
daqui a seis meses, é uma incerteza…”, aponta Jussara.
Além disso, também não é permitido o consumo de drogas na ocupação, à
exceção do cigarro e de “uma cervejinha ou outra no final de semana”. A
água, por sua vez, é levada através de uma mangueira às cozinhas
coletivas até o G8, mas já há um plano de extensão do sistema até o G16.
Enquanto isso não acontece, os moradores dos demais grupos vão buscando
galões dia após dia para satisfazer tanto as necessidades individuais
como coletivas de seus respectivos grupos.
Do ponto de vista cultural, acontecem algumas atividades para
integração e diversão dos moradores da pequena cidade. De vez em quando,
bingos e gincanas são organizados e a rádio, que fica em frente ao
terrão onde são realizadas as assembleias, está sempre ligada, tocando
música e disponível para divulgar qualquer informação que transcenda os
grupos.
As assembleias, aliás, costumavam acontecer todo dia. Mas agora são
realizadas em dias intercalados, sempre às 19h, quando a grande maioria
dos moradores empregados chega do trabalho. Nelas, discute-se o
cotidiano da Nova Palestina e questões políticas, como atos e reuniões
de negociação, por exemplo, e também é passada uma lista de presença –
que se soma à lista do dia a dia e à dos protestos para controlar a
frequência dos acampados nas atividades da Nova Palestina. Segundo o
MTST, quanto maior a presença das pessoas no conjunto de atividades,
melhor a colocação delas nas listas para conseguir moradia via programas
habitacionais, como o Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal, ou o
CDHU, estadual.
Após a assembleia, o jantar é servido às 20h. Depois de se
alimentarem, os moradores assistem TV ou conversam em pequenas rodas.
Então, começa a última atividade do dia (e uma das mais importantes): a
trilha, uma espécie de ronda no acampamento para garantir a segurança
dos moradores durante a noite. “A gente não é polícia, só organizamos as
trilhas para garantir tranquilidade das pessoas dormirem”, afirma
Dorgival, que faz parte da setorial de autodefesa. Segundo ele, cerca de
40, 50 pessoas se dividem em trilhas que vagam, umas, nos grupos e,
outras, em toda a ocupação – sempre divididos em quatro ou cinco
pessoas.
Além de Dorgival, muitas outras pessoas que passam o dia no
acampamento se dispõem a fazer as trilhas. Entre elas, está Clodoaldo
Santos Costa, coordenador do G3 que, após longas caminhadas, vai dormir
às 3h. Afinal, às 7h ele precisa estar em pé – vai buscar galões de água
para fazer o café, que sustentará os moradores da Vila Nova Palestina
em mais um dia de luta, dentro e fora da ocupação.
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