O escritor uruguaio Eduardo Galeano fala do destino dos
países latino-americanos, faz a defesa dos ideais de esquerda e decreta:
o único pecado que não deve ser cometido é o pecado contra a esperança
Por Glauco Faria e Nicolau Soares
O ano é 1996. O escritor uruguaio Eduardo Galeano estava em
um encontro em Chiapas, México, com integrantes do movimento zapatista,
entre os quais o próprio subcomandante Marcos. Em meio a conversas e
debates, algo o perturbava. Aquele não era um dia qualquer.
No entanto, o que tirava o sossego de Galeano não eram os focos de
tensão entre os rebeldes e o governo, nem algum acontecimento no cenário
político internacional, mas uma partida de futebol. Tratava-se da final
do torneio de futebol masculino nas Olimpíadas de Atlanta entre as
seleções de Argentina e Nigéria.
Como assistir o jogo em meio à extensa programação do dia? Em um
intervalo entre uma reunião e outra, o uruguaio não se conteve. Fingiu
ir ao banheiro e saiu escondido para o hotel onde estava hospedado.
Quando voltou, perguntaram-lhe: “Eduardo, onde estavas?”. Disfarçou e
deu uma desculpa qualquer. “Nunca tive coragem de admitir que fugi para
ver o jogo.”
O futebol é tema recorrente de comparações e de histórias de Galeano, que fez essa confidência à Fórum
em meio à sua participação no I Festival Latino-Americano de Música
Camponesa, realizado em Curitiba em novembro do ano passado. Na ocasião,
o escritor falou a milhares de integrantes do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST.
O uruguaio, que conseguiu tocar milhões de leitores com o clássico As Veias Abertas da América Latina,
seduz os espectadores que acompanham suas palestras. Com um português
impecável e uma serenidade inabalável, recorre a histórias e parábolas
para ilustrar suas contundentes críticas ao modelo neoliberal e aos
rumos da esquerda e dos países do continente latino-americano. Mas em
cada trecho de sua fala faz questão de deixar uma palavra de esperança e
reafirmação de valores caros aos movimentos progressistas. Durante sua
estada no evento, Fórum acompanhou os passos do
escritor e traz abaixo os principais trechos de sua entrevista
exclusiva, assim como da palestra que realizou no evento. Apesar de ser
sábado e ter jogo do Brasileiro na televisão, dessa vez, Galeano não
escapou.
Ser de esquerda
É difícil fazer um catálogo dos ideais de esquerda. Eu diria que são
os mais ligados às idéias da liberdade, da comunhão com a natureza, da
preservação da vida, não só humana, mas da vida do planeta, que é nossa
casa. E é a certeza de que fazemos parte de um arco-íris de diversas
cores e que o racismo está nos deixando cegos para essa maravilha que é a
diversidade humana e da vida no mundo. Porque o melhor do mundo é a
quantidade de mundos que ele contém. Essas seriam algumas coisas
básicas.
Ocorre hoje a ressurreição dos laços solidários, não digo mortos, mas
muito feridos, quebrados, a partir da imposição de uma escala de
valores fundada na salvação pessoal, na idéia de que o outro é um
competidor e um inimigo, não um companheiro. Que é uma ameaça e não uma
promessa. Acredito, como um homem de esquerda, que alguém sempre tem
alguma coisa para dizer que valha a pena escutar. Os trinta e poucos
anos transcorridos desde que escrevi As Veias Abertas da América Latina indicam
que alguns desses valores já não têm a força que antes tinham. Por
exemplo, nos anos 70, ninguém discutia que a pobreza era filha da
injustiça. Era a esquerda quem denunciava, mas ninguém discutia. O
centro aprovava e a direita não discutia, calava a boca. Agora, é uma
minoria que continua acreditando nisso. Para a maioria dos opinion makers, os fabricantes de opinião do mundo, a pobreza é o castigo que a ineficiência merece. Isso é uma mudança de valores radical.
Boas notícias
É muito difícil perceber que projetos e idéias são interessantes, mas
eles existem. Há casos como o plebiscito da água, que me parece uma
coisa digna de contágio, merece ser imitada por outros países. Mas não
tenho muita esperança, porque o Uruguai já fez um outro plebiscito em
1992 sobre a privatização das empresas públicas em que 72% da população
votaram contra e ninguém imitou isso, que é um exercício de democracia
elementar. Quando você está tomando uma medida que vai afetar o destino
de várias gerações, como é a privatização dos recursos essenciais de um
país, é necessário consultar à população.
Mas além dessas coisas, que são muito concretas, palpáveis, é difícil
fazer uma lista das boas notícias. Mas elas existem o tempo todo, às
vezes em uma escala local que não tem a menor repercussão, mas que é
verdadeira.
Efeito Lewinsky
O governador Requião, em um almoço, me dizia que nenhum jornal
brasileiro publicou nenhuma linha sobre o plebiscito da água que ocorreu
no Uruguai. E foi um fato muito importante, não por ter acontecido no
meu país, não vou fazer patriotadas bobas, mas porque foi o primeiro
país a fazer uma consulta pública sobre o uso de um recurso natural
perecível como é a água. Foram 65% dos uruguaios a favor de uma emenda
constitucional que garante que a água continuará sendo propriedade
pública e não um negócio privado. Isso não apareceu nos jornais, não era
notícia.
Há um controle mundial nos meios de comunicação que já é hora de ser
quebrado. Uso como exemplo o ano de 1998, quando o mundo ficou
condenado a ler, escutar e assistir, dia após dia, às notícias do
romance entre o presidente do planeta e aquela gordinha voraz, Monica
Lewinsky. Você tomava café da manhã com ela, almoçava com ela, jantava
com ela… Um ano inteiro. Um dia, estava na Europa e abri um jornal que
era pura Monica Lewinsky. E aí, perdida, havia uma notícia, na última
coluna da página sete, dizendo que as três organizações ecológicas mais
importantes do mundo haviam se juntado em Londres para divulgar um
relatório seriíssimo que revelava que, em meio século, o mundo tinha
perdido um terço de seus recursos naturais. Isso não teve a menor
importância. Um terço dos recursos é fácil de dizer, mas se você pensa
na dimensão desse crime gigantesco… O mundo tinha perdido em cinqüenta
anos um terço de seus recursos e não tinha espaço para isso no jornal,
porque estavam ocupados com a outra história.
O processo do Fórum
Percebo uma multiplicação da energia criativa na sociedade civil da
América Latina a partir do primeiro FSM, um maior dinamismo. Existe uma
contradição entre o tempo da história e o tempo da vida dos homens. Cada
pessoa quer ver os resultados das coisas, o que é compreensível, um
desejo humano. Mas a história é uma senhora que caminha devagar. É
preciso ter paciência. O resultado dessa articulação de vozes não
aparece em um ou nem mesmo em dez anos. Estão despertando energias que
pareciam estar dormindo ou até mortas.
Essa articulação é lenta, mas imprescindível para o futuro dos
movimentos sociais. Na solidão, estamos mortos. A esquerda está
tentando um caminho novo, novas experiências políticas. Essas novidades
aparecem em todos os setores, não só nas eleições. É interessante ver
que (Hugo) Chávez, demonizadíssimo por toda a grande mídia, ganha nove
eleições limpas. Estamos falando de um tirano muito especial que ganhou
nove eleições – todas mais transparentes que as dos EUA. No Uruguai, a
esquerda ganhou, mostrando que o trabalho rende frutos, não é só água
jogada no mar. Foi um trabalho iniciado em 1971, casa por casa.
O FSM e os pequenos
Com o passar do tempo, valorizo cada vez mais as pequenas escalas,
as pequenas dimensões e desconfio cada vez mais da espetacularização das
grandes notícias. Eu digo isso para revelar a grandeza escondida nas
coisas pequenas e denunciar a mesquinharia das coisas grandes. O Fórum
Social Mundial tem essa característica do espetáculo, mas é diferente,
porque é nascido da insólita e jamais vista tentativa de juntar todas
essas pequenas forças desconhecidas que existiam espalhadas. Ele tem
sido um grande passo adiante na direção correta de juntar os dispersos,
re-vincular os desvinculados, de salvar-nos da solidão. Nesse sentido,
acho que o mundo tem avançado muito, de uma maneira silenciosa, não
estrepitosa, mas certa. E que não corresponde exigir resultados
imediatos, pois são processos muito longos, complexos, que caminham
devagar e crescem desde o pé, como pedia o cantor uruguaio e meu amigo
muito querido Alfredo
Zitarosa, porque senão as coisas não duram.
Zitarosa, porque senão as coisas não duram.
O Fórum abriu um grande espaço de encontro e essa é sua importância,
ter conseguido que os dedos ganhassem consciência de que fora da mão
não servem para nada. A ida para a Índia parece ter sido uma experiência
positiva, pois abriu toda uma metade do mundo que estava meio em
sombra, não aparecia muito, e permitiu a expressão de forças que estavam
latentes. Mas não sei o que acontecerá. Em geral, não sou um bom
profeta. Sobretudo no que mais me interessa na vida, que é o futebol
(risos).
500 Anos de Solidão
A América Latina é uma região do planeta dentro da qual existem
energias de mudança muito lindas e também energias do sistema colonial
que vêm se perpetuando já há mais de cinco séculos e que são muito
poderosas. Eles têm um poder econômico e cultural imenso e boa parte do
poder político. São essas as forças que estão nos treinando desde sempre
para a certeza de nossa impotência. Para a certeza de que a realidade é
intocável, de que o que é, é porque foi e continuará sendo. De que
amanhã é outro nome de hoje. Isso é um fatalismo herdado e tem muito
tempo de vida: cinco séculos. Não é fácil lutar contra isso. Vamos
inventar a vida, vamos imaginar o futuro. Vamos cometer a loucura de
acreditar que essa terra pode ser outra. De que essa região nossa não
está condenada pelos deuses nem pelos diabos à pena perpétua de solidão e
desgraça. Mas isso não é fácil.
Elogio ou acusação
Como sempre, há essa tensão criativa entre as forças da inércia dos
sistemas tradicionais e as forças novas que surgem. O problema é que às
vezes as forças novas adotam os valores das que combatem sem perceber.
Por exemplo, toda uma escala de valores que acredita no sucesso como uma
fonte de valor. Então, essas forças de mudança começam uma corrida
louca para parecer com seu inimigo, para fazer a coisa de tal maneira
que seu inimigo lhe aplauda. Às vezes me dizem: “você é muito bom”. Mas
eu procuro ver quem é que está falando, porque, dependendo, pode ser uma
acusação gravíssima.
O pecado contra a esperança
A vitória da esquerda nas eleições uruguaias foi, para nós, um
acontecimento incrível. Parece milagre. A esquerda obteve a metade mais
um dos votos contra um monopólio compartilhado de dois partidos
tradicionais que exerciam o poder desde a fundação dos tempos, desde
Adão e Eva ou antes. Parece milagre, mas não é. É o resultado de um
trabalho paciente, feito dia após dia, porta por porta, consciência após
consciência. A vitória da Frente Ampla foi crescendo desde o pé. E foi celebrada numa noite inesquecível. Aquele domingo foi absolutamente inesquecível. Eu nunca tinha visto, sentido, vivido tanta alegria no meu país. Foi uma ressurreição da alegria, que parecia morta, mas estava apenas dormindo. Lá pelas quatro da manhã, o povo nas ruas, aquela explosão incessante das melhores coisas, um amigo me comentou: “Quero que essa noite não acabe nunca”.
consciência. A vitória da Frente Ampla foi crescendo desde o pé. E foi celebrada numa noite inesquecível. Aquele domingo foi absolutamente inesquecível. Eu nunca tinha visto, sentido, vivido tanta alegria no meu país. Foi uma ressurreição da alegria, que parecia morta, mas estava apenas dormindo. Lá pelas quatro da manhã, o povo nas ruas, aquela explosão incessante das melhores coisas, um amigo me comentou: “Quero que essa noite não acabe nunca”.
E essa frase, que é lindíssima, não se refere só à noite da
celebração, mas também a tudo que aquela noite estava encarnando,
simbolizando. O que ele queria dizer verdadeiramente, mesmo sem saber,
era: “Eu quero que essa alegria, essa esperança, não seja jamais
traída”. Porque tinha razão o meu mestre Carlo Quijano quando, há muitos
anos, comecei a fazer jornalismo ainda quase criança com ele, no
semanário Marte. Ele me dizia: “Qualquer um que lhe olhe nos olhos já vê
claramente sua vocação de pecado. Você é um pecador de nascença e eu
não tenho nada contra. Peque sim. Mas tem um pecado que não tem
redenção, que não merece perdão. É o pecado contra a esperança”. Essa é a
imensa responsabilidade da esquerda em meu país. Não trair nunca essa
boa energia de vida que foi vitoriosa nas eleições.
Uruguai hipotecado
O governo da Frente Ampla, que está nascendo agora, é o resultado do
desenvolvimento de um movimento popular que jamais falou que iria ganhar
o governo para fazer o socialismo. Seria irreal prometer isso. O que se
prometeu foram coisas mais moderadas, modestas, que são as mais ou
menos realizáveis, que eu espero que sejam realizáveis em um país
quebrado, desesperançado como é o Uruguai. A primeira prioridade é
lutar contra a pobreza. A segunda, resgatar os filhos perdidos de um
país que perdeu a população jovem, condenada ao exílio econômico,
expulsa pelo sistema de poder. E a terceira, vinculada com as outras
duas, é buscar um desenvolvimento econômico que não contradiga a
soberania nacional sobre os recursos básicos e que permita a criação de
fontes de emprego. O problema do Uruguai é que o país foi convertido
pela estrutura dominante em um banco. O banco quebrou e assim estamos. A
esquerda recebe um país hipotecado, com compromissos de dívida externa
terríveis, pesadíssimos. Esse é o drama latino-americano em geral, é
uma soberania condicionada. Você é independente até um certo ponto.
Porque depois, quem decide são os credores. É o resultado de viver em um
estado de dívida perpétua, pagando para se endividar mais e mais.
Lula
Não pretendo explicar para o brasileiro como são as coisas aqui. Não
sou de vender gelo a esquimós. Estou aqui aprendendo, perguntando. No
caso do governo Lula, há uma distância entre as expectativas e a
realidade. É um problema da esquerda no mundo, a perda de identidade.
Ela passa a não se diferenciar do que combate. Em nome do realismo, se
sacrificam alguns princípios fundamentais do movimento socialista, ou
como queira chamá-lo, já que teve muitos nomes. Lembro de ver, quando
era jovem, um filme dos irmãos Marx. Groucho estava conduzindo um trem e
não havia mais lenha. Então, ele começou a destruir os vagões com um
machado, para alimentar a caldeira. Ele conseguiu chegar até a estação,
mas apenas com a locomotiva. Chegou um trem sem trem. Esse é o perigo
que corre a esquerda. Não é inevitável, mas é um perigo.
Projeção internacional do Brasil
O que eu resgataria do governo de Lula é a projeção internacional,
essa vontade de fazer uma frente unida dos países que vivem situações
semelhantes, que têm problemas semelhantes e um destino comum a
conquistar. Que têm essa urgência imediata da restauração da dignidade
ferida na negociação financeira, comercial e cultural. Sem essa união,
não tem possibilidade. Nenhum país tem. O Brasil pode achar que tem,
pela sua dimensão imensa. Mas a situação é a mesma. Por maior que o
Brasil seja, não tem a possibilidade de se salvar na solidão. Já está na
hora do sul do mundo recuperar aquela energia perdida dos velhos
tempos, há 40, 50 anos, quando se faziam aquelas conferências do
Terceiro Mundo, que era um mundo independente dos dois blocos,
capitalista e comunista. Era a emergência de uma terceira possibilidade e
chegou a ter muita força, mas depois se perdeu na névoa do tempo. E
também os organismos que existiam
para defender o preço dos produtos básicos, que morreram todos, exceto a OPEP. Já é hora de acabar com a impunidade dos poderosos nos grandes mercados, financeiros e comerciais, e no panorama cultural mundial também. Eles são os donos de nossos sonhos, de nossas opiniões, das informações que recebemos ou não, de acordo com a vontade de quem manda. Já é hora de recuperar isso tudo.
para defender o preço dos produtos básicos, que morreram todos, exceto a OPEP. Já é hora de acabar com a impunidade dos poderosos nos grandes mercados, financeiros e comerciais, e no panorama cultural mundial também. Eles são os donos de nossos sonhos, de nossas opiniões, das informações que recebemos ou não, de acordo com a vontade de quem manda. Já é hora de recuperar isso tudo.
União é a chave
Para poder fazer frente a essa negação da esperança, é
preciso concretizar uma política conjunta do Uruguai com o Brasil e a
Argentina. Aí está a chave de tudo. Cito esses dois porque, no caso do
Uruguai, são os vizinhos mais diretos, mas deveria envolver toda a área
do cone sul. Fazer uma política conjunta do Mercosul ampliado, como for
possível. A idéia de que você pode se salvar sozinho não tem mais
nenhuma relação com a realidade dos dias de hoje. Sozinhos, estamos
fritos. A solidão nos condena ao fracasso.
Os EUA e o medo
A propósito das outras eleições, que aconteceram dois dias depois das
nossas, em um outro país, um pouco maior que o Uruguai, e que ocupa um
pouco mais de espaço na mídia universal, elas consagraram o presidente
do planeta, senhor George W. Bush. Na eleição do Uruguai, que não teve
nenhuma repercussão neste mundo que confunde a grandeza com o tamanho
grande dos países e das pessoas, foi uma vitória contra o medo. Na
campanha política, a direita tentou aterrorizar a população dizendo que a
Frente Ampla era uma conjunção de forças dirigida por tupamaros,
seqüestradores, estupradores, ladrões e assassinos. Eu vi pela televisão
o discurso final do vice-presidente do partido Colorado, que é o
partido do governo atual. Ele lançou uma terrível advertência: se a
esquerda ganhar, todos os uruguaios seriam obrigados a se vestir
iguaizinhos, como os chineses na época do Mao.
Sobre o plebiscito das águas, também uma campanha de terror,
anunciando o pior. Águas envenenadas, sujeira, cheiro fétido, o fim dos
esgotos, um panorama terrível, apocalíptico. E o pessoal não deu bola, a
população votou contra o medo. Acho que nas eleições dos EUA o medo
ganhou. Uns dias antes das eleições, as pesquisas apontavam uma
preocupante paridade entre Bush e Kerry. E aí, apareceu, não sei como,
deve ser a divina providência, esse personagem que parece tirado do
carnaval uruguaio, com aquela barba longa, que responde pelo nome de Bin
Laden. Ele aparece para assustar o mundo anunciando que vai comer todos
os nenês crus, que vai fazer todos os desastres. Dois apocalipses, três
apocalipses, quinze mil torres de Nova York. Magnificamente, Bush subiu
quatro pontos em um dia só nas pesquisas de opinião graças à ajuda
proporcionada por esse que me parece um chefe de boy-scout (escoteiro). O lema do boy-scout é always ready,
ou sempre alerta. Ele está sempre pronto. Acode cada vez que o sistema
do medo necessita do grande assustador, esse alto funcionário da
ditadura universal do medo.
O medo é importantíssimo não só porque pode eleger um presidente,
como aconteceu aí com essa extorsão contínua, essa histeria do
terrorismo que avança, das forças do mal, o Diabo que está aí perto,
cheirando a enxofre, com chifre e rabo. Mas também para o poder militar.
Que seria desta estrutura militar que hoje manda no mundo, dos 2,5
bilhões de dólares que são a cada dia destinados à indústria da morte,
às despesas militares, sem o medo? Se não houvesse pessoas ou máquinas,
como fabricar os demônios para justificar a existência da estrutura
militar? E a mesma coisa em relação à mídia. O medo vende muito bem.
Tecelão
Meu último livro se chama Bocas do Tempo e são textos curtos, num estilo levemente parecido com o do Livro dos Abraços.
São 333 histórias, mas isso não foi deliberado, foi o número que
encontrei quando fiz o índice. É um número bom, dá sorte. Mas uma
quantidade imensa de histórias ficou fora, porque quem escreve, tece. A
palavra texto vem do latim textum, que significa tecido. Ou
seja, quem escreve está tecendo, é um trabalho têxtil. Você trabalha com
fios e cores, que são as palavras, as frases, os relatos. Eles vão se
encontrando e há alguns fios que são lindíssimos, mas que não coincidem,
não combinam. Então, com dor na alma, ficam de fora.
Foram oito anos de trabalho para esse livro, umas histórias simples,
mas que de simples não tem nada. Quanto maior é a sensação que o leitor
percebe de transparência, mais complicado é o trabalho que essa aparente
simplicidade contém. Para mim, escrever é uma força enorme. E me dá uma
alegria imensa também. No fim, quando consigo sentir que essas palavras
são bastante parecidas com o desejo de dizer, fico com a certeza de que
a condição para não ser mudo é não ser surdo. Ou seja, só é capaz de
dizer quem é capaz de escutar. Sou um caçador de vozes e histórias. É a
realidade que me conta as coisas que acho que vale a pena que sejam
contagiadas.
Abraçado aos vencidos
Não sou um homem que tem ídolos, não idolatro ninguém. O mais próximo
que tenho de um ídolo é um jogador de futebol, um cara que me acompanha
quando escrevo, já que tenho um pôster dele no meu escritório. Era um
inimigo, pois jogou no Peñarol e sou torcedor do Nacional. Fui
conquistado por ele, pelo que fazia e por sua personalidade.
Seu nome era Obdulio Varela e foi o herói de um episódio que os
brasileiros chamam, com certo exagero, de “nosso Hiroshima”, a final da
Copa de 50, quando o Uruguai ganhou, contra todas as possibilidades, do
Brasil. Após a partida, os jogadores foram festejar essa
impossibilidade. Mas ele fugiu do hotel e foi beber em um boteco do Rio.
Ele me disse que o que havia nas arquibancadas era uma besta, um
monstro de 200 mil cabeças. “Eu os odiava”, contou. Depois, tomou uma,
duas, três cervejas e via as pessoas, uma a uma, tristes, chorando. E
pensou: “Como eu fiz isso com essa gente tão boa?”. E todos atribuíam a
vitória a ele, “foi o Obdulio”, diziam. Por isso o admiro, ele não se
acusou, não comemorou e passou a noite inteira abraçado aos vencidos.
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