Direito à fantasia, acumulação sem limites e desigualdade.
Como alguns dos temas estudados pelo mestre ajudariam a compreender novo
fenômeno das periferias
Por Max Gimenes,
O tema do momento são os “rolezinhos”, idas em grupo de jovens da
periferia aos shopping centers para se divertir. Todos os dias, novas
entrevistas ou artigos pipocam na internet com a opinião de todo tipo de
“especialista”. Para não falarmos dos nem sempre muito animadores
comentários de internautas comuns em portais de notícia e em redes
sociais.
Em meio à enxurrada renovada diariamente de informações e opiniões
inéditas, inescapável nestes nossos tempos de domínio da internet, um
abrigo tranquilo e fecundo para pensar de modo mais aprofundado os
assuntos do momento talvez esteja off-line: mais precisamente, no seio
das reflexões de velhos intérpretes do Brasil, que em vez do tratamento
de informações fragmentadas e imediatas pensavam a realidade brasileira
como um todo e mais a frio, o que lhes permitia atar pontas nem sempre
perceptivelmente ligadas de um desenvolvimento histórico atípico como o
nosso.
Com isso em mente, e com base em textos de autoria de um desses
intérpretes “clássicos”, ocorreu-me a ideia de arriscar – sempre muito
respeitosamente e admitindo de antemão a hipótese de equívoco e
insuficiência – o que o sociólogo e crítico literário Antonio Candido,
hoje com 95 anos, teria a dizer sobre o assunto.
Em relação a isso, uma coisa é certa: ele encararia o tema como
fenômeno cultural e o abordaria no registro dos direitos humanos, na
linha do que fez a respeito da literatura numa conferência ministrada em
1988 (“O direito à literatura”, publicada no livro Vários escritos).
Nela, entendendo a literatura de modo amplo (“todas as criações de
toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma
sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore,
lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção
escrita das grandes civilizações”), Candido postula que, por se tratar
de necessidade observada em todos os indivíduos e sociedades (apesar das
diferenças de manifestação), sua satisfação deveria ser encarada como
direito humano, a ser fixada de acordo com as condições objetivas de
cada cultura. E o que os “rolezinhos” têm a ver com isso? Muita coisa,
posto que, além de lazer, são manifestações culturais que trazem em seu
bojo criações da ordem da fantasia, das quais todos temos necessidade de
fruir, cada um escolhendo para tanto aquelas que lhe são mais
acessíveis e parecem mais lhe dizer respeito.
No entendimento de Candido, a concepção dos direitos humanos implica a
distinção entre bens compressíveis e incompressíveis, pois depende
daquilo que classificamos como bens incompressíveis, isto é, que não
podem ser negados a ninguém. Obviamente, a fixação da fronteira entre
ambas as classificações não acontece por si só, mas através de
permanente embate político entre diferentes visões de mundo. Para
aqueles que, como nosso autor, prezam por valores humanistas e de
justiça social, o pressuposto a ser adotado é claro: “reconhecer que
aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável
para o próximo” – como, em nossa cultura, frequentar espaços de uso
coletivo (o shopping, por exemplo), consumir, divertir-se.
Acontece que entre um tal pressuposto e a nossa sociedade existe
contradição. A marca de nossa cultura é a instigação ao consumismo e à
acumulação sem limites. Dito de outra maneira, o consumo não visa
satisfazer necessidades determinadas, pois a necessidade abstrata se
tornou o próprio consumo. Com isso, fica difícil manter o equilíbrio
social, pois não é cabível concretamente considerar indispensável para o
próximo algo ilimitado, até por uma elementar questão de sobrevivência
(equivaleria a uma regressão ao chamado “estado de natureza”). A
acumulação sem limites implica poder apropriar-se do que, em tese,
deveria servir para a satisfação de necessidades do outro, o que
significa que as necessidades criadas por nossa cultura não podem na
prática ser satisfeitas em todas as camadas sociais. O consumo e a
acumulação ilimitados só podem existir enquanto privilégios de uma
minoria, a qual, por essa condição privilegiada, opõe-se às demais,
exploradas, controlando-as quer pela força, quer pelas ideias. É esse o
conflito lógico de interesses armado por nossa sociedade, a tal da “luta
de classes” – que não precisa ser, para existir, um conflito aberto e
do qual as partes tenham consciência.
A realização individual, levando adiante o raciocínio proposto por
Candido, significa participar plenamente da sociedade à qual se
pertença, podendo-se satisfazer razoavelmente as necessidades tanto
materiais como simbólicas que ela propõe como possíveis e desejáveis.
Como vimos, a capacidade generalizada de consumir tudo aquilo que é
propagandeado como disponível a todos não é factível, e o mal-estar
gerado por essa frustração contamina as manifestações culturais das
camadas mais atingidas por esse desfavorecimento. Na periferia de São
Paulo, esse mal-estar parece estar na gênese desse novo estilo
“ostentação”, tão presente na moda e na música adotada e apreciada por
esses jovens.
Está certo quem diz que eles, ao menos até agora, só têm buscado “se
divertir” com seus rolês. Erra, porém, quem adota a postura
anti-intelectualista implicada em negar toda e qualquer tentativa de
teorização a respeito. Sem teoria não há interpretação de fenômenos, mas
descrição e aceitação deles como parecem ser e como se fosse natural
serem do modo como nos aparecem – um notório desperdício para uma
espécie dotada de algo a que comumente nos referimos como “razão”. A
pertinência de cada teoria aventada, aí sim, pode e deve ser avaliada
caso a caso. Aqui nos interessa testar uma leitura do fenômeno baseada
nas ideias de Candido, para ver se estas contribuem para sua
interpretação.
Seguindo com nosso autor, é possível entender as criações culturais
em geral como tentativas de organização do caos da experiência, o que,
de quebra, lança também as bases do ideal de si a ser perseguido e
eventualmente realizado por cada um. É por meio das criações culturais,
afinal, que testamos hipóteses de como a vida, social ou individual,
poderia ser, e vemos se funcionam. E também as comparamos com a
realidade vivida. É isso o que faz, por exemplo, o “funk ostentação”, ao
propor, para quem não sabe o que é isso, a hipótese de uma vida de
consumo extravagante. Tal fenômeno musical é contraditório, e
evidentemente há ressalvas estéticas a serem feitas. Uma delas é que a
forma assumida pela figuração desse mal-estar não parece em si refutar,
de nenhuma maneira, a hipótese que apresenta, reproduzindo com isso a
ideologia dominante, segundo a qual o acesso universal ao consumo
ilimitado é factível e livre de condicionantes sociais. Nessa medida,
então, funcionaria como ideologia a favor da manutenção do atual estado
de coisas, como falsificação da realidade, e não como algo revelador de
sua essência.
Para quem acompanha o ponto de vista de Candido, os “rolezinhos”
parecem então inscrever-se, na ordem social vigente, no âmbito dos
direitos. As ações dos administradores de shopping, da Justiça e da
Polícia Militar, ao tentar proibi-los, podem mostrar a esses jovens da
periferia aquilo que as criações culturais como o “funk ostentação” não
parecem até agora ter dado conta de fazer: que eles não são tão
bem-vindos quanto imaginam no mundo do consumo, cujo “templo”, não à toa
escolhido por eles como locus de diversão, são os shopping
centers. Isso pode abrir caminho à politização do conflito e a uma
eventual ação coletiva de questionamento, o que é razão de temor por uns
e de aposta para outros, a depender da visão de mundo. E no debate
público todos tentam, evidentemente, influenciar o rumo do fenômeno e
seus desdobramentos no sentido daquilo que lhes convém.
Interessante notar que, ao não se resolver bem internamente às
criações culturais lastreadas no estilo “ostentação”, a contradição já
apontada entre o sistema sócio-econômico e os desejos dessa juventude
periférica é devolvida para a realidade na forma de cobrança real desses
jovens por participação quase ilimitada no consumo, o que pode
desencadear choques e movimentos interessantes. Excelente exemplo de
entrelaçamento de manifestações culturais e conflitos sociais. Aqui,
porém, já estaríamos também recorrendo a um discípulo de Candido,
Roberto Schwarz, o que talvez seja sinal de que, ao menos por ora, é
melhor ficarmos por aqui.
Max Gimenes é estudante de Ciências Sociais na FFLCH/USP e tem
seus interesses de pesquisa voltados a investigações das relações entre
literatura e sociedade e ao pensamento social brasileiro.
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