por Demetrio Cherobini |
A literatura pode ser meio de compreensão e de crítica radical da
realidade que nos rodeia. É o que atesta o excelente livro de Michael
Löwy, Franz Kafka: sonhador insubmisso, que analisa aspectos importantes do pensamento e da obra do grande escritor tcheco e universal.
Löwy procede, desde o início, a uma abordagem ousada: busca
compreender as formas dos romances escritos por Kafka em conexão com a
visão de mundo significativa do autor, forjada na sua vivência diária,
na interiorização das relações estabelecidas com a realidade
circundante, no seu distanciamento crítico e na afinidade com certos
grupos humanos, sempre situados na posição de párias ou de submetidos às
engrenagens massacrantes dos poderes estabelecidos.
Interessa ao sociólogo brasileiro, sobretudo, desvendar como alguns
dos inúmeros conflitos sociais e humanos se sedimentam, mimeticamente,
em construções literárias, por meio da escrita de Kafka. Nesse percurso,
Löwy demonstra com maestria “a paixão antiautoritária que atravessa
como uma corrente elétrica” as obras do escritor tcheco (p. 12).
São escrutinados, nesse movimento, tanto os escritos do autor quanto
seu contexto histórico-político. Através do estudo de textos literários,
historiográficos, cartas, diários, ensaios críticos, relatos de amigos e
biografias escritas por companheiros muito próximos, Löwy reconstrói os
elementos determinantes da composição das lentes pelas quais Kafka via e
se apropriava do mundo.
Descobre aí elementos significativos, entre outros: a simpatia pelo
movimento socialista libertário (anarquista), com o qual o escritor
manteve contato durante alguns anos – e que, ao que tudo indica, deixou
marcas indeléveis na sua subjetividade: “sua visão do capitalismo como
sistema hierarquizado de dominação aproxima-se do anarquismo, por sua
insistência no caráter autoritário do sistema” (p. 28); os conflitos que
Kafka sempre manteve com o pai, rico comerciante, caracterizado por ele
como “tirano” e “autocrata”, e cujo ferrenho autoritarismo serviu para
despertar no jovem escritor uma afinidade espontânea com os “de baixo”, a
ponto de se sentir pertencente àquilo que denominou de “o partido dos
empregados” (p. 63) ; o judaísmo, que lhe deu a consciência de como certos indivíduos podem ser isolados e desprezados – ou meramente tolerados – pelos grandes grupos sociais humanos, e que em Kafka se converteu num tipo de religiosidade sui generis, não fixada a símbolos exteriores, e sim cristalizada numa disposição interior baseada na recusa do mundo e que toma a liberdade como fim supremo .
Essas experiências estão na base da formação da sensibilidade do
autor tcheco. Ao longo de sua vida, vincularam-se às características da
forma de seus romances, nos quais se destacam, frequentemente, “atitudes
arbitrárias sem justificação alguma (moral, racional, humana);
exigências desmesuradas e absurdas com relação ao herói-vítima;
injustiça (a culpabilidade é, falsamente, considerada evidente, patente,
indubitável); punição totalmente desproporcional ao ‘erro’ (inexistente
ou trivial)” (p. 73), entre outras. Tais elementos são costurados na
narrativa de Kafka de modo que o produto de sua composição se apresente
como crítica impiedosa de uma sociedade comandada pela lógica da
reificação e submissa às estruturas hierárquicas e burocráticas de
poder.
Mas não se trata aqui de fazer com que a literatura se rebaixe à
posição de mera serva de uma ideologia ou de uma doutrina qualquer, e
sim de negar radicalmente esta realidade brutal em que nos encontramos com o arsenal que lhe é próprio: “a ironia, o humor, esse humor negro que, segundo André Breton, é ‘uma revolta superior do espírito’” (p. 57) – e que, segundo Löwy, permitiram ao autor de O processo “explodir o cânone da literatura realista” (p. 195).
Junto com o cânone da literatura realista, também voam pelos ares a
presumida respeitabilidade impessoal em que se arvoram as burocracias, a
aura mística de sacralidade em que se envolvem os diversos tipos de
hierarquias sociais e políticas, o pretenso sentido que reveste e
justifica a submissão voluntária das pessoas às múltiplas estruturas de
poder existentes. Numa palavra: algo de muito inerente e central
pertencente ao atual modo com que produzimos e reproduzimos nossa vida
em sociedade.
Vemos, assim, que, desvinculado de qualquer organização e sem nenhum registro partidário, Kafka permanece ainda um militante, mesmo que de uma estranha e solitária forma de militância: aquela que, no campo da literatura, permanece vigilante e sonhadora, porque radicalmente insubmissa em relação às determinações autoritárias do mundo circundante.
Os construtores de um mundo novo, no futuro, saberão acolher e ser generosos com uma literatura feita nesses moldes?
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Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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sábado, 1 de fevereiro de 2014
Franz Kafka: crítico do poder, da burocracia e da reificação
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