A segurança está entre aquelas palavras com sentidos tão abrangentes que
nós nem prestamos mais muita atenção ao que ela significa. Erigido como
prioridade política, esse apelo à manutenção da ordem muda
constantemente seu pretexto (a subversão política, o terrorismo...), mas
nunca seu propósito: governar as populações...
Giorgio Agamben
A expressão “por razões de segurança” funciona como um argumento de
autoridade que, cortando qualquer discussão pela raiz, permite impor
perspectivas e medidas inaceitáveis sem ela. É preciso opor-lhe a
análise de um conceito de aparência banal, mas que parece ter suplantado
qualquer outra noção política: a segurança.
Poderíamos pensar que o objetivo das políticas de segurança seja
simplesmente prevenir os perigos, os problemas ou mesmo as catástrofes. A
genealogia remonta a origem do conceito ao provérbio romano “Salus
publica suprema lex” – “A salvação do povo é a lei suprema” – e, assim, a
inscreve no paradigma do estado de exceção. Pensemos nosenatus consultum ultimum e na ditadura em Roma;1 no
princípio do direito canônico, segundo o qual “necessitas legem non
habet” (“necessidade não tem lei”); nos Comitês de Salvação Pública2 durante
a Revolução Francesa; ou ainda no artigo 48 da Constituição de Weimar
(1919), fundamento jurídico do regime nacional socialista, que
igualmente mencionava a “segurança pública”.
Embora correta, essa genealogia não permite compreender os
dispositivos de segurança contemporâneos. Os procedimentos de exceção
visam uma ameaça imediata e real, que deve ser eliminada ao se suspender
por um período limitado as garantias da lei; as “razões de segurança”
de que falamos hoje constituem, ao contrário, uma técnica de governo
normal e permanente.
Mais do que no estado de exceção, Michel Foucault3 aconselha
procurar a origem da segurança contemporânea no início da economia
moderna, em François Quesnay (1694-1774) e nos fisiocratas.4 Se pouco depois do Tratado de Vestfália (1648)5 os
grandes Estados absolutistas introduziram em seus discursos a ideia de
que a soberania deveria velar pela segurança de seus súditos, foi
preciso esperar Quesnay para que a seguridade – ou melhor, a “segurança”
– se tornasse o conceito central da doutrina do governo.
Seu artigo consagrado aos “Grãos” na Enciclopédia permanece, dois
séculos e meio depois, indispensável para compreender o modo de governo
atual. Voltaire diz que, desde que esse texto surgiu, os parisienses
pararam de discutir teatro e literatura para falar de economia e
agricultura... Um dos principais problemas que os governos então
precisavam enfrentar era o da escassez de alimento e a fome. Até
Quesnay, eles tentavam preveni-los criando celeiros públicos e proibindo
a exportação de grãos. Mas essas medidas preventivas tinham efeitos
negativos sobre a produção. A ideia de Quesnay foi inverter o
procedimento: em vez de tentar prevenir a fome, era preciso deixá-la
acontecer e, pela liberação do comércio exterior e interior, governá-la
quando ocorresse. “Governar” retoma aqui seu sentido etimológico: um bom
piloto – aquele que detém o governo – não pode evitar a tempestade,
mas, se ela ocorre, ele deve ser capaz de dirigir seu barco.
É nesse sentido que devemos compreender a expressão atribuída a
Quesnay, mas que, na verdade, ele nunca escreveu: “Laisser faire,
laisser passer”. Longe de ser apenas a divisa do liberalismo econômico,
ela designa um paradigma de governo que situa a segurança – Quesnay
evoca a “segurança dos agricultores e trabalhadores” – não na prevenção
dos problemas e desastres, mas na capacidade de canalizá-los numa
direção útil.
É preciso considerar a implicação filosófica dessa inversão que
perturba a relação hierárquica tradicional entre as causas e os efeitos:
pois é vão, ou de qualquer modo custoso, governar as causas, é mais
útil e mais seguro governar os efeitos. A importância desse axioma não é
negligenciável: ele rege nossas sociedades, da economia à ecologia, da
política externa e militar às medidas internas de segurança e de
polícia. É ele também que permite compreender a convergência antes
misteriosa entre um liberalismo absoluto na economia e um controle de
segurança sem precedentes.
Tomemos dois exemplos para ilustrar essa aparente contradição.
Primeiro, o da água potável. Ainda que se saiba que esta vai logo faltar
numa grande parte do planeta, nenhum país segue uma política séria para
evitar seu desperdício. Ao contrário, vê-se se desenvolverem e se
multiplicarem, nos quatro cantos do globo, as técnicas e usinas para o
tratamento de águas poluídas – um mercado considerável no futuro.
Segundo exemplo. Consideremos no presente os dispositivos
biométricos, que são um dos aspectos mais inquietantes das tecnologias
de segurança atuais. A biometria surgiu na França na segunda metade do
século XIX. O criminologista Alphonse Bertillon (1853-1914) se apoiaria
na fotografia signalética e nas medidas antropométricas para constituir
seu “retrato falado”, que utiliza um léxico padronizado para descrever
os indivíduos numa ficha com seus sinais. Pouco depois, na Inglaterra,
um primo de Charles Darwin e grande admirador de Bertillon, Francis
Galton (1822-1911), desenvolveu a técnica das impressões digitais. Esses
dispositivos, evidentemente, não permitem prevenir os crimes, mas
perseguir criminosos reincidentes. Encontramos aqui ainda a concepção de
segurança dos fisiocratas: é apenas com o crime cometido que o Estado
pode intervir com eficácia.
Pensadas para os delinquentes recidivos e os estrangeiros, as
técnicas antropométricas permaneceram por muito tempo privilégio
exclusivo deles. Em 1943, o Congresso dos Estados Unidos recusou o
Citizen Identification Act (Ato de Identificação do Cidadão), que visava
dotar todos os cidadãos de carteiras de identidade com suas impressões
digitais. Foi apenas na segunda metade do século XX que elas se
generalizaram. Mas a última novidade aconteceu há pouco tempo. Os
scanners ópticos, que permitem revelar rapidamente as impressões
digitais e também a estrutura da íris, fizeram os dispositivos
biométricos sair das delegacias de polícia para ancorar na vida
cotidiana. Em certos países, a entrada nas cantinas escolares é
controlada por um dispositivo de leitura óptica sobre o qual a criança
pousa a mão distraidamente.
Leis mais severas que no fascismo
Preocupações se acumulam sobre os perigos de um controle absoluto e
sem limites por parte de um poder que disporia de dados biométricos e
genéticos de seus cidadãos. Com essas ferramentas, o extermínio dos
judeus (ou qualquer outro genocídio imaginável), baseado numa
documentação incomparavelmente mais eficaz, teria sido total e
extremamente rápido. Em matéria de segurança, a legislação hoje em vigor
nos países europeus é, em certos aspectos, sensivelmente mais severa do
que a dos Estados fascistas do século XX. Na Itália, um texto único das
leis sobre segurança pública (Testo Unico delle Leggi di Pubblica
Sicurezza, Tulsp) adotado em 1926 pelo regime de Benito Mussolini está,
no essencial, ainda em vigor; mas as leis contra o terrorismo votadas
durante os “anos de chumbo” (de 1968 ao início dos anos 1980)
restringiram sensivelmente as garantias nele contidas. Como a legislação
francesa contra o terrorismo é ainda mais rigorosa que sua homóloga
italiana, o resultado de uma comparação com a legislação fascista não
seria muito diferente.
A crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha uma
mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos
perguntar não apenas se as sociedades em que vivemos ainda podem ser
qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo se elas ainda
podem ser consideradas sociedades políticas.
No século V a.C., como demonstrou o historiador Christian Meier, uma
transformação do modo de conceber a política já tinha se produzido na
Grécia, por meio da politização (Politisierung)da cidadania. Uma vez que o pertencimento à cidade (a polis)
era até então definido pelo estatuto e pela condição – nobres e membros
das comunidades culturais, agricultores e comerciantes, senhores e
clientes etc. –, o exercício da cidadania política se tornou um critério
da identidade social. “Cria-se assim uma identidade política
especificamente grega, na qual a ideia de que os indivíduos devem se
conduzir como cidadãos encontra uma forma institucional”, escreve Meier.
“O pertencimento a grupos constituídos com base nas comunidades
econômicas ou religiosas foi relegado a segundo plano. À medida que os
cidadãos de uma democracia se dedicavam à vida política, eles
compreendiam a si mesmos como membros da polis. Polis epoliteia,
cidadee cidadania, se definem reciprocamente. A cidadania se torna
assim uma atividade de uma forma de vida para aqueles para quem a polis, a cidade, constituía um domínio claramente distinto de oikos, a casa. A política se tornou um espaço público livre, oposto enquanto tal ao espaço privado onde reinava a necessidade.”6 Segundo
Meier, esse processo de politização especificamente grego foi
transmitido como herança à política ocidental, na qual a cidadania
permaneceu – com altos e baixos, certamente – o fator decisivo.
É precisamente esse fator que hoje está se revertendo de modo
progressivo: trata-se de um processo de despolitização. Antes limiar da
politização ativa e irredutível, a cidadania se tornou uma condição
puramente passiva, em que a ação ou a inação, o público e o privado se
desvanecem e se confundem. O que se concretizava por uma atividade
cotidiana e uma forma de vida se limita hoje a um estatuto jurídico e ao
exercício de um direito de voto cada vez mais parecido com uma pesquisa
de opinião.
“Todo cidadão é um terrorista potencial”
Os dispositivos de segurança têm desempenhado um papel decisivo nesse
processo. A extensão progressiva a todos os cidadãos das técnicas de
identificação outrora reservadas aos criminosos inevitavelmente afeta a
identidade política. Pela primeira vez na história da humanidade, a
identidade não é mais função da “pessoa” social e de seu reconhecimento,
do “nome” e da “nominação”, mas de dados biológicos que não podem
manter nenhuma relação com o sujeito, como os rabiscos sem sentido que
meu polegar molhado de tinta deixou sobre a folha de papel ou a
inscrição de seus genes na dupla hélice do DNA. O fato mais neutro e
mais privado se torna assim o veículo de identidade social, removendo
seu caráter público.
Se critérios biológicos, que em nada dependem da minha vontade,
determinam minha identidade, então a construção de uma identidade
política se torna problemática. Que tipo de relação eu posso estabelecer
com minhas impressões digitais ou com meu código genético? O espaço da
ética e da política que estamos acostumados a conceber perde seu sentido
e exige ser repensado a partir do zero. Enquanto a cidadania grega se
definia pela oposição entre o privado e o público, a casa (sede da vida
reprodutiva) e a cidade (lugar do político), a cidadania moderna parece
evoluir numa zona de indiferenciação entre o público e o privado, ou,
para tomar emprestadas as palavras de Thomas Hobbes, entre o corpo
físico e o corpo político.
Essa indiferenciação se materializa na videovigilância das ruas em
nossas cidades. Tal dispositivo conheceu o mesmo destino que o das
impressões digitais: concebido para prisões, ele tem sido
progressivamente estendido para os lugares públicos. Um espaço
videovigiado não é mais uma ágora, não tem mais nenhuma característica
pública; é uma zona cinzenta entre o público e o privado, a prisão e o
fórum. Tal transformação tem uma multiplicidade de causas, entre as
quais o desvio do poder moderno em relação à biopolítica ocupa lugar
especial: trata-se de governar a vida biológica dos indivíduos (saúde,
fecundidade, sexualidade etc.), e não mais apenas exercer uma soberania
sobre o território. Esse deslocamento da noção de vida biológica para o
centro da vida política explica o primado da identidade física sobre a
identidade política.
Mas não podemos esquecer que o alinhamento da identidade social com a
corporal começou com a preocupação de identificar os criminosos
recidivos e os indivíduos perigosos. Portanto, não é surpreendente que
os cidadãos, tratados como criminosos, acabem por aceitar como evidente
que a relação normal entre o Estado e eles seja a suspeita, o fichamento
e o controle. O axioma tácito, que é preciso aqui arriscar a anunciar
é: “Todo cidadão – enquanto ser vivente – é um terrorista potencial”.
Mas o que é um Estado, o que é uma sociedade regida por tal axioma?
Podem ainda ser definidos como democráticos ou mesmo como políticos?
Em seus cursos no Collège de France e também em seu livro Vigiar e punir,7 Foucault
esboça uma classificação tipológica dos Estados modernos. O filósofo
mostra como o Estado do Antigo Regime, definido como um Estado
territorial ou de soberania, cuja divisa era “fazer morrer e deixar
viver”, evoluiu progressivamente para um Estado de população em que a
população demográfica substitui o povo político e para um Estado de
disciplina, cuja divisa se inverte em “fazer viver e deixar morrer”: um
Estado que se ocupa da vida dos sujeitos para produzir corpos sãos,
dóceis e disciplinados.
O Estado em que vivemos hoje na Europa não é um Estado de disciplina,
mas – segundo a expressão de Gilles Deleuze – um “Estado de controle”:
ele não tem por objetivo ordenar e disciplinar, mas gerir e controlar.
Depois da violenta repressão das manifestações contra o G8 de Gênova, em
julho de 2001, um funcionário da polícia italiana declarou que o
governo não queria que a polícia mantivesse a ordem, mas gerasse a
desordem. Por sua vez, os intelectuais norte-americanos que tentaram
refletir sobre as mudanças constitucionais induzidas pelo Patriot Act
(Lei Patriótica) e a legislação pós-11 de Setembro8 preferem falar de “Estado de segurança” (security State). Mas o que quer dizer “segurança” aqui?
Durante a Revolução Francesa, essa noção estava implicada com aquela
de polícia. A lei de 16 de março de 1791 e depois a de 11 de agosto de
1792 introduziram na legislação francesa a ideia, que teria uma longa
história na modernidade, de “polícia de segurança”. Nos debates
precedentes à adoção dessas leis, parecia claro que polícia e segurança
se definiam reciprocamente; mas os oradores – entre os quais Armand
Gensonné, Marie-Jean Hérault de Séchelles, Jacques Pierre Brissot – não
foram capazes de definir nem uma coisa nem outra. As discussões se
mantiveram essencialmente nas relações entre a polícia e a justiça.
Segundo Gensonné, trata-se de “dois poderes perfeitamente distintos e
separados”; e, portanto, enquanto o papel do Poder Judiciário é nítido, o
da polícia parece impossível de definir.
A análise do discurso dos deputados mostra que o lugar da polícia é
impossível de ser decidido, e deve continuar assim, pois se estivesse
inteiramente absorvida pela justiça a polícia não poderia mais existir. É
a famosa “margem de apreciação” que ainda hoje caracteriza a atividade
do agente de polícia: em relação à situação concreta que ameaça a
segurança pública, ele age com soberania. Fazendo assim, não decide nem
prepara – como se diz erroneamente – a decisão do juiz: toda decisão
implica causas e a polícia intervém sobre os efeitos, isto é, sobre algo
que não pode ser decidido.
Esse não decidido não se chama mais, como no século XVII, de “razão de Estado”, mas de “razões de segurança”. O security State é,
portanto, um Estado de polícia, mesmo que a definição de polícia
constitua um buraco negro na doutrina do direito público: quando no
século XVIII surgiu na França o Traité de la police, de Nicolas de La Mare, e na Alemanha a Gesamte Policey-Wissenschaft, de Johann Heinrich Gottlob von Justi, a polícia foi reduzida à sua etimologia de politeia e
tende a designar a política verdadeira, indicando o termo “política”
nessa época apenas a política externa. Von Justi nomeia assim Politik a relação de um Estado com os outros e Polizei a relação de um Estado consigo mesmo: “A polícia é a relação de força de um Estado consigo mesmo”.
Ao se colocar sob o signo da segurança, o Estado moderno deixa o domínio da política para entrar numa no man’s land em
que mal se percebem a geografia e as fronteiras e para a qual nos falta
conceituação. Esse Estado, cujo nome remete etimologicamente a uma
ausência de preocupação (securus: sine cura), nos deixa ainda
mais preocupados com os perigos a que ele expõe a democracia, já que a
via política se tornou impossível; pois democracia e vida política são –
ao menos em nossa tradição – sinônimos.
Diante de tal Estado, é preciso repensar as estratégias tradicionais
de conflito político. No paradigma securitário, todo conflito e toda
tentativa mais ou menos violenta de reverter o poder oferecem ao Estado a
oportunidade de administrar os efeitos em interesse próprio. É isso que
mostra a dialética que associa diretamente terrorismo e reação do
Estado numa espiral viciosa. A tradição política da modernidade pensou
nas transformações políticas radicais sob a forma de uma revolução que
age como o poder constituinte de uma nova ordem constituída. É preciso
abandonar esse modelo para pensar mais numa potência puramente
destituinte, que não fosse captada pelo dispositivo de segurança e
precipitada na espiral viciosa da violência. Se quisermos interromper o
desvio antidemocrático do Estado securitário, o problema das formas e
dos meios de tal potência destituinte constitui a questão política
essencial que nos fará pensar durante os próximos anos.
1 Em casos graves, a República romana
previa a possibilidade de confiar, de modo excepcional, plenos poderes a
um magistrado (o ditador).
2 Comitês que deviam proteger a República contra os perigos de invasão e da guerra civil.3 Michel Foucault, Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978)[Segurança, território e população. Curso no Collège de France (1977-1978)], Gallimard/Seuil, Paris, 2004.
4 A fisiografia baseia o desenvolvimento econômico na agricultura e defende a liberdade do comércio e da indústria.
5 O Tratado de Vestfália encerrou a Guerra dos Trinta Anos opondo o campo dos Habsburgos, apoiados pela Igreja Católica, e os Estados alemães protestantes do Sacro Império. Ele inaugura uma ordem europeia fundada nos Estados-nação.
6 Christian Meier, “Der Wandel der politisch-sozialen Begriffswelt im V Jahrhundert v.Chr.”. In: Reinhart Koselleck (org.), Historische Semantik und Begriffsgeschichte, Klett-Cotta, Stuttgart, 1979.
7 Michel Foucault, Surveiller et punir [Vigiar e punir], Gallimard, Paris, 1975.
8 Ler Chase Madar, “Recrudescimento do aparato de segurança norte-americano”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2012.
Giorgio Agamben é filósofo
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