Crise aumenta procura por bombas, “tasers” e outros artefatos
para repressão a protestos. Brasil é um dos grandes fornecedores
internacionais
Por Tomaz Amorim Izabel*, no blog do Negro Belchior
“Veio uma viatura com dois policiais. Nós fomos até a sala e chamamos
o aluno para sair, tentando não chamar a atenção dos colegas. Mas ele
não se retirou. Então o policial entrou e chamou o rapaz também. Aí ele
estourou, ficou agressivo e assustado. Negou-se a sair, chutou carteiras
e ficou bem violento. Os colegas ficaram muito assustados. Foi aí que o
policial usou a arma teaser para tentar controlar o garoto. (…)
Muitos colegas saíram da sala, quiseram ir embora, estavam chorando.
Liberamos estes adolescentes. Outros foram contra a polícia e se
revoltaram. Duas meninas foram levadas por desacato”. Este relato foi
feito no dia 19 de agosto por um diretor de colégio público, em
Florianópolis, ao presenciar um aluno do 1ª série do Ensino Médio ser
atingido por choque de arma elétrica acionada por um Policial Militar
dentro da sala de aula. A história surpreende por uma série de fatores: a
violência dentro da escola, a reação traumática dos funcionários e
alunos após a ação e o tipo da tecnologia utilizada. As armas elétricas
saltam dos filmes americanos para a realidade das polícias em diversos
estados no Brasil. Elas também serão amplamente utilizadas na segurança
dos megaeventos futuros no Brasil, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.
Junto com as armas “teser”, o mundo vê um crescimento na produção e
comercialização das chamadas armas não letais. O Brasil tem papel
fundamental neste crescimento, já que não é apenas grande consumidor,
mas um dos seus principais produtores. Com a crise econômica mundial
muitas indústrias retrocederam. Não foi o caso da indústria destas
armas. Os cortes públicos que devastaram as áreas sociais em diversos
países, não chegaram à área de segurança e “contenção de protestos”.
Pelo contrário, com o aumento da insatisfação popular e das
manifestações, cresceu a indústria da repressão “não letal”. A população
acaba pagando com o dinheiro dos impostos pela própria repressão
policial que irá sofrer. Na Espanha, por exemplo, o orçamento de
equipamentos “antidistúrbio” subiu de 173 mil euros, em 2012, para mais
de 3 milhões, em 2013. No Oriente Médio, de acordo com reportagem da BBC,
desde 2010 “o mercado de segurança interna teve um aumento de 18% em
seu valor, chegando próximo aos 6 bilhões de euros (R$ 17,4 bilhões) em
2012”.
O que se torna claro com estes números é que a crise não inibe o
capital, pelo contrário, pode se tornar, muitas vezes, o surgimento de
um novo nicho de mercado, até então pouco explorado. Uma das empresas no
mundo que mais lucrou com as crises, econômicas e políticas, no cenário
internacional, foi a brasileira Condor S. A. Indústria Química. Em
2011, ela surgiu em uma polêmica na
mídia por fornecer equipamento não letal que levou a morte de um bebê
de cinco dias no Bahrein (país árabe, então em intensa crise política),
vítima de bombas de gás lacrimogêneo atiradas por forças do governo
contra manifestantes. Mais recentemente, ativistas e militantes dos
direitos humanos no Brasil receberam com surpresa as imagens que
mostravam o selo “Made in Brazil” nas centenas de bombas de gás, usadas
quase que indiscriminadamente, nos protestos turcos que tiveram como
estopim a destruição do Parque Taksim Gezi, em Istambul. Bruno Fonseca e
Natalia Viana, em reportagem para a Pública,
exploram as relações entre a indústria, o governo brasileiro e nossa
possível responsabilidade em relação ao mau uso destas armas no
exterior. Os jornalistas mostram, por exemplo, como o Itamaraty se diz
de mãos atadas, enquanto a Apex (Agência Brasileira de Promoção de
Exportações e Investimentos) fomenta a exportação destas armas e havia,
meses antes dos protestos, incentivado a participação da própria Condor
S. A. em uma feira de armas justamente na Turquia. Dentro do Brasil
mesmo, no entanto, parece haver pouco questionamento sobre o uso
legítimo ou ilegítimo deste tipo de armas. O nome da Condor esteve
recentemente em diversos jornais que anunciaram a compra emergencial de
bombas de gás lacrimogêneo pelo governo do Estado do Rio de Janeiro para
contenção dos protestos. A compra emergencial, que abre mão da
necessidade de licitação, foi de aproximadamente 2000 bombas pelo preço
de R$1,6 milhão. A matemática simples mostra que o cabo, que porventura
lança as bombas, gasta o mesmo dinheiro público que seu salário ao
lançar a terceira bomba. Uma bomba e meia já pagaria o salário de um
soldado da PM do Rio. Estas bombas, apesar de caras, muitas vezes são
utilizadas fora das especificações para as quais foram produzidas. O
Ministério Público do Rio de Janeiro, por exemplo, denunciou o uso de
bombas com o prazo de validade vencido – de risco desconhecido para a
população – e de bombas proibidas pela legislação brasileira, como foi o
caso destas 2000 que teriam sido fabricadas com o dobro da concentração
de gás lacrimogêneo. Estas bombas seriam destinadas a Angola. (Em quais
situações seriam utilizadas? Os angolanos por acaso têm maior
resistência ao gás?).
De acordo com o Portal da Transparência da Copa 2014,
a União comprou da Condor S.A., única empresa no Brasil a produzir
bombas de gás e armamento não letal em grande escala, R$50 milhões em
Armamentos Menos Letais a serem destinados aos Estados-sede dos jogos da
Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e Grandes
Eventos. Entre estes armamentos encontram-se itens como spray de
pimenta, granada lacrimogênea, granada de efeito moral, granada de luz e
som, balas de borracha e “armas de lançamento de dardos energizados”
(os teasers do começo desta reportagem). Este valor milionário,
por si só, contradiz a afirmação da presente Dilma Rousseff em seu
pronunciamento em rede nacional de que o governo brasileiro não estaria
utilizando dinheiro público na realização dos megaeventos.
O site da Condor encontra-se
estranhamente “Em manutenção” desde pelo menos 27 de junho deste ano.
Haverá alguma relação com o fato da empresa produzir o equipamento que
serviu em todo o país para a repressão das mobilizações sociais? Não
deveria, já que o discurso da empresa, em relação a seu produto, é
positivo até orgulhoso. A Condor afirmou em seu site, por exemplo, que o
armamento não letal seria uma maneira de reduzir a altíssima
mortalidade no Brasil. Segue um exemplo histórico, retirado de uma
versão anterior do site: “O caso de Eldorado dos Carajás pode ser citado
como um exemplo de situação na qual as armas não letais poderiam ter
evitado a tragédia. Granadas lacrimogêneas, sprays de pimenta, munições
de impacto controlado ou granadas de efeito moral, teriam permitido
controlar a ação agressiva dos manifestantes sem causar morte ou lesão
permanente”.
Este argumento parece encontrar ouvidos no governo estadual do Rio de
Janeiro, já que dois órgãos públicos, a FAPERJ e a Finep, têm investido
verba pública na pesquisa de tecnologia a ser utilizada pela Condor.
Utilizado como base determinações das Nações Unidas direcionadas à
redução da letalidade das forças de segurança públicas e com vistas à
utilização de equipamento pelas UPPS, a FAPERJ, em boletim próprio de
2010, propagandeia seu patrício justamente da Spark, a arma elétrica
incapacitante, cuja utilização por policiais militares de Santa Catarina
foi descrita no início deste texto. Segundo Pedro Luiz Schneider,
diretor de Tecnologia da Condor, a participação do Centro Federal de
Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet/RJ) no projeto foi
essencial para o desenvolvimento dessa arma. “Com o apoio da FAPERJ, foi
possível criar no Cefet/RJ um laboratório bem equipado para desenvolver
a tecnologia necessária para fabricação do armamento”. O patrocínio
público de tecnologias para a Condor não se limita à Spark. A FAPERJ
também patrocina uma planta piloto para produção de CS
(ortoclorobenzalmalonitrilo), matéria-prima para a fabricação de
granadas lacrimogêneas.
O círculo da produção de armas não letais no Brasil tem um
fechamento, portanto, irônico. O contribuinte carioca que saiu às ruas
para protestar e que se deparou com um arsenal de bombas de gás
compradas com verba pública, ficaria ainda mais surpreso ao saber que
além de pagar as bombas e o salário do policial, ele também pagou pela
pesquisa das armas. A verba da FAPERJ, que em 2007 equivalia a 2% da receita tributária líquida do estado do Rio de Janeiro, aproximadamente
R$200 milhões, é em parte repassada à pesquisa para uma empresa privada
que depois vende o produto pesquisado para o próprio estado que o
financiou. A situação é ainda mais surpreende em relação às armas Spark.
De acordo com a PM de Santa Catarina,
uma verba de R$ 42.190 foi utilizada para a compra de 17 exemplares da
pistola. Dividindo chega-se ao preço médio de surpreendentes R$2.482 por
arma. Um estado brasileiro paga pela pesquisa de um produto de patente
privada que é posteriormente vendido a outro. Sem dúvida que uma
oportunidade de negócios assim é única. Carlos Frederico Queiroz de
Aguiar, vice-presidente da Condor, vice-presidente da Associação
Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança e diretor
da FIESP, explicar em um texto intitulado “Invasões Bárbaras – O Brasil virou uma espécie de Eldorado mundial” que
o investimento federal através da Estratégia Nacional de Defesa será de
US$247 bilhões até 2030. Uma oportunidade única no cenário mundial que,
de acordo com o empresário, deveria privilegiar a indústria nacional.
Ainda sobre a FAPERJ, Schneider lembra: “O apoio da Fundação tem sido
fundamental para o crescimento de nossa empresa e consequentemente para a
modernização da política de segurança em nosso estado e em todo o
País”.
Se é verdade que a mortalidade no Brasil, principalmente a
relacionada à violência policial, tem níveis comparados ao de guerra
civil, será que a solução é investir em outros tipos de arma? Será que
Amarildo teria reaparecido caso tivesse tomado “apenas” um choque, como o
jovem em Florianópolis? O problema da violência, no Brasil e no mundo,
se resume à falta de tecnologia apropriada, à necessidade de alguma
idéia salvadora que solucione este problema misterioso?
A cena que abriu esta reportagem indica que não. O mau treinamento e
salário dos policiais brasileiros, a estrutura e ideologia militar da
polícia e a discrepância social brasileira, que aumenta regularmente as
fileiras de jovens violentos, geram um ciclo diabólico: a precariedade
das condições sociais levam ao crime que é combatido com excesso de
violência que leva ao aumento da precariedade. Permite-se que esta
maquinaria precária continue a funcionar pelo fato simples de que ela
produz lucro, tanto para o crime, quanto para a indústria privada de
armas. A fonte do problema, conhecida de todos, mas não endereçada, por
falta de interesse econômico e político, é esta discrepância social que
retira o sujeito dos serviços públicos básicos, como educação e saúde, e
o lança em uma barbárie privada na qual ele não tem a menor chance de
obter sucesso. A atenção e o investimento públicos que deveriam ser
lançados a este estado evidente das coisas prefere se concentrar
nas belas palavras da empresa privada de armas, fingindo acreditar que a
solução para a alta mortalidade no Brasil se reduz à troca de algumas
balas de chumbo por balas de borracha. Os protestos recentes mostraram
que com a força certa uma bomba de gás ou uma bala de borracha pode ser
fatal – como para a gari belenense Cleonice Vieira de Moraes, para o
olho da jornalista Giuliana Vallone, para uma perna, para o direito de
se manifestar, por fim, para a crença jovem de que a transformação das
coisas no Brasil é possível através da participação política nas ruas e
nos plenários.
O povo brasileiro, que tanto se orgulha de sua hospitalidade e
pacifismo, estará consciente deste novo papel protagonista nas
repressões a levantes populares mundo afora? Estará ele satisfeito pelo
dinheiro de seus impostos ser usado não para transformar o estado
calamitoso de nossa população, mas para patrocinar a indústria privada
deste tipo de tecnologia? Os protestos não foram, sobretudo, pelo mau
uso do dinheiro público e pela melhorias dos serviços básicos como
transporte, saúde e educação?
O armamento não letal não implica na diminuição da letalidade ou da
violência, apenas aumenta a capacidade e versatilidade da repressão
governamental. Onde não cabia, devido ao pudor internacional, o
assassinato, cabe a desorientação, o cegamento, a repressão controlada,
progressiva e ampliada. O caso da expulsão violenta de quase dez mil
pessoas do Pinheirinho pela ação conjunta de polícias não nos mostrou
que o terror e a vergonha pela ação do estado não se limitam ao número
de mortos? Os protestos recentes não mostram o mesmo? Ao contrário da
falsa solução no slogan da Condor “Atire e deixe viver” (uma versão
adaptada do “Estupra, mas não mata” de Paulo Maluf), o problema está
justamente em justamente “atirar”, seja lá o que for, naquele que
precisa que o “deixem” viver, que precisa ter permissão para exercer o
mínimo de sua dignidade humana. Nosso momento exige justamente o
contrário: um “viver” pleno, com direitos, para todos, principalmente
para aqueles até então sem nada, um viver liberto do condicionamento do
tiro ou da permissão da polícia e do estado. É por isso, e não por
maneiras mais sofisticadas de repressão, que devemos lutar.
* Tomaz Amorim Izabel é professor e mestre em Teoria Literária pela Unicamp. Mantém uma conta no Twitter, @tommyamorim, e um blog literário: tomazizabel.blogspot.com
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