Meninos
e meninas têm as mãos queimadas por ácido e perdem digitais na
quebra da castanha de caju. Mesmo após denúncias, problema persiste
no Rio Grande do Norte.
Enviado
a João Câmara (RN) - Olhe
a ponta do seu dedo. Repare no conjunto minúsculo de linhas que
formam sua identidade. Essa combinação é única, um padrão só
seu, que não se repete. As crianças que trabalham na quebra da
castanha do caju em João Câmara, no interior do Rio Grande do
Norte, não têm digitais. A pele das mãos é fininha e a ponta dos
dedos, que costumam segurar as castanhas a serem quebradas, é lisa,
sem as ranhuras que ficam marcadas a tinta nos documentos de
identidade.
O
óleo presente na casca da castanha de caju é ácido. Mais conhecido
como LCC (Líquido da Castanha de Caju), esse líquido melado que
gruda na pele e é difícil de tirar tem em sua composição ácido
anacárdico, que corrói a pele, provoca irritações e queimaduras
químicas. No vilarejo Amarelão, na zona rural de João Câmara, as
castanhas são torradas – além de corroer a pele, o óleo é
inflamável – e quebradas em um sistema de produção que envolve
famílias inteiras, incluindo as crianças.
Com
a pele cada vez mais lisa, as pontas dos dedos perdem as digitais, e
as linhas e traços de identidade se esfacelam (clique nas fotos
para ampliar)
O
óleo é pegajoso. Basta pegar uma castanha e quebrá-la para ficar
com a pele manchada por alguns dias. Nem todas as crianças e os
adultos que trabalham no processo sabem que o óleo é ácido. Muitos
acham que a mão fica assim machucada por conta da água sanitária
utilizada para tirar o preto encardido da mão depois de horas
seguidas manuseando e quebrando as castanhas torradas. “Se fosse
assim, as pessoas que usam água sanitária para limpeza estariam
roubadas! É o óleo LCC que tem uma ação irritante, ele é
cáustico, produz lesões e chega a retirar as digitais”, explica o
médico Salim Amed Ali, autor de diferentes estudos sobre doenças
ocupacionais para a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança
e Medicina do Trabalho (Fundacentro), do Ministério do Trabalho e
Emprego. A perda da identidade não é permanente. Com o tempo, as
digitais voltam se a pessoa se afastar da atividade.
Sobrevivência
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação. “A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação. “A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.
Um
menino e uma adolescente se revezando ao redor da mesa. A garota é
quem cuida do fogo, alimenta a lata improvisada com cascas de
castanha e controla as labaredas espirrando água com uma garrafinha.
A fumaça sobe e cobre seu rosto. Um cachorro dorme perto do fogo.
Eles estão nessa atividade desde a madrugada, começaram às 3
horas. É preciso começar cedo, no sol do sertão nordestino, não
dá para continuar com o calor de meio-dia.
Os
trabalhos começam cedo, devido ao calor do sertão nordestino; ao
meio-dia, o sol é muito forte para prosseguir
O
garoto tem 13 anos e, assim como a irmã, cursou até a quarta série
do ensino fundamental mas tem dificuldades para ler e escrever.
Largou a escola na quinta série porque teria de viajar uma hora de
ônibus para ir até uma que atende alunos mais velhos, localizada na
área urbana de João Câmara – trabalhar e estudar ao mesmo tempo
já é difícil quando a escola é perto; quando não há escolas
perto, impossível. Ele quebra as castanhas com agilidade, seus dedos
fininhos seguram, selecionam e escapam das pancadas duras.
São
poucas as palavras, ambos trabalham em silêncio e as respostas são
curtas. Na mesa vizinha, os mais velhos reclamam da falta de água –
a que a prefeitura tem entregue para abastecer as cisternas do bairro
é salobra. “Dá dor de barriga e aí a gente tem de comprar água
de garrafa, vê se pode”, conta uma mulher de 63 anos, que já
passou fome e acha melhor que as crianças trabalhem com castanhas do
que colhendo algodão ou roçando pasto para o gado, atividades que
exerceu quando criança.
Meninas,
meninos, pais, mães e famílias inteiras se misturam para organizar
a produção das castanhas
Em outra unidade de
produção, uma família adapta o ritmo à existência de um
recém-nascido. Uma adolescente, também de 15 anos, se reveza com o
marido de 18 anos e sai, de tempos em tempos, para amamentar o bebê.
“Eu lavo as mãos bem antes de pegá-lo, para não sujá-lo”,
conta a mãe, antes de fazer uma pausa às 4 horas. O trabalho
costuma ir até as 11 horas e, à tarde, todos trabalham tirando a
pele fininha.
O
emprego de crianças na quebra da castanha de caju está incluído na
lista de piores formas de trabalho infantil, ao lado de atividades
como beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar. A
situação a que estão submetidas as crianças de João Câmara (RN)
não chega a ser novidade. A auditora fiscal do trabalho Marinalva
Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do
Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, tem
realizado sucessivas ações de fiscalização, denunciado a situação
e cobrado soluções. “Não dá para aceitar que as crianças
continuem nessa situação, mas não basta reprimir, é preciso
oferecer alternativas”.
A
representante do poder público reconhece o problema na região, mas
admite: “não conseguimos avançar”
Além
de identificar as crianças e reunir informações para relatório a
ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade, ela também tem procurado
cobrar providências por parte da prefeitura sobre a situação das
famílias. Os programas sociais são considerados insuficientes pelos
moradores, que reclamam da atuação do poder público. “Sabemos do
que está acontecendo, mas até agora não conseguimos avançar”,
admite Maria Redivan Rodrigues, secretária de Assistência Social e
primeira-dama de João Câmara, que promete solucionar o problema em
um ano, até setembro de 2014. O Brasil se comprometeu
a erradicar
as piores formas de trabalho infantil até 2015,
mas, mesmo com denúncias, situações com a de João Câmara
persistem.
Em
24 de fevereiro de 2012, o promotor Roger de Melo Rodrigues, do
Ministério Público Estadual, abriu o Inquérito Civil nº
06.2012.00003777-7 após denúncias. “Ele disse que ia processar as
famílias, tentou proibir as pessoas de trabalhar, deixou todo mundo
apavorado. Foi muito ruim”, diz Ivoneide Campos, presidente da
Associação Comunitária do Amarelão. “A fumaça faz mal, a gente
sabe, mas as famílias não querem mudar o método com que sempre
trabalharam. E não adianta forçar, tem de transformar em querer,
ajudar na busca de alternativas”, defende.
Procurado
para comentar a reclamação, o promotor negou, em nota, que sua
atuação tem sido meramente repressiva. Ele diz que “os problemas
relacionados à queima de castanha, tais como impacto ambiental,
danos à saúde dos moradores e trabalho infantil, não têm passado
desapercebidos do Ministério Público Estadual” e que “em
vez de buscar a repressão de delitos relacionados ao caso, esta
Promotoria tem priorizado o diálogo com a respectiva comunidade, já
havendo sido realizadas duas reuniões no local com todos os
interessados e representantes de órgãos municipais, estaduais e
federais, objetivando a construção de um consenso para solucionar o
caso”.
O
promotor reclama, porém, que embora “busque uma resposta adequada
e legítima aos problemas, tem enfrentado alguma resistência
relacionada ao costume já enraizado, da parte de algumas famílias
locais, de proceder à queima de castanhas ao alvedrio dos
respectivos danos decorrentes, o que não impedirá uma atuação
isenta e efetiva para a resolução do caso”.
Potiguar
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.
Assim
que as castanhas estão torradas, as mãos se levantam; pancadas
quebram uma noz, depois outra e outra, e outra
O
óleo se esparrama em torno das unhas, pela ponta dos dedos e,
quando se vê, as mãos inteiras já estão cheias de ácido
“Tentamos
identificar quem lucra com isso, mas é um sistema muito primitivo.
As indústrias organizaram a produção e estão processando
diretamente as castanhas, não identificamos nenhuma envolvida. Os
intermediários são pequenos comerciantes que adquirem o produto
diretamente com as famílias”, explica o auditor fiscal José
Roberto Moreira da Silva.
Criatividade
na busca por soluções para as famílias não falta. Nilson Caetano
Bezerra, do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança
e de Proteção ao Adolescente Trabalhador Aprendiz, por exemplo,
sonha em fazer parcerias com as empresas de produção de energia
eólica, que fazem multiplicar o número de torres de geração na
região, para empregar adolescentes como aprendizes. E em
providenciar máquinas para que os adultos não tenham de manusear as
castanhas torradas. Experiências com mecanização já aconteceram,
mas o descasque manual ainda é o preferido porque a taxa de
desperdício é menor.
Mesmo
que já exista formas de produção mecanizadas, ainda há
preferência pelas técnicas manuais, que seriam mais produtivas
Em
fevereiro, o juiz Arnaldo José Duarte do Amaral, titular da 9ª Vara
do Trabalho de João Pessoa, visitou a comunidade e também encontrou
as crianças trabalhando na produção de castanhas. Ele escreveu
um artigo sobre
a questão e, desde então, tenta articular soluções e envolver
mais interessados em resolver o problema. “Quando estive lá como
juiz, me perguntavam se ia prender alguém. Não é esse o papel do
judiciário, o objetivo não é prender ninguém, é achar solução”,
diz, defendendo a formação de cooperativas e mecanismos de economia
solidária como o melhor caminho para erradicar o trabalho infantil e
melhorar a condição de trabalho dos adultos. “A gente tenta
corrigir essas questões há séculos, sem sucesso. Não bastam ações
repressivas, que vão além de tentar punir.”
*
Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica
Vivo, e publicada também no site Promenino,
que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
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