No
dia 11 de setembro de 1973 teve início uma das ditaduras mais brutais
da América Latina: mais de 3 mil mortos, quase 38 mil torturados e
centenas de milhares de exilados. Alguns dias após o golpe de Estado, o
diretor de cinema Bruno Muel foi ao Chile e, a seguir, revela seu
testemunho...
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por Bruno Muel |
No dia 12 de setembro de 1973, de manhã, escutei no rádio a notícia do
golpe de Estado e decidi partir para o Chile para filmar a ocasião.
Chamei Théo Robichet, com a certeza de que estaria de acordo. Théo
cuidava da captação de som, e eu, das imagens. Na época, estávamos
engajados na aventura dos grupos Medvedkine, lançada em 1967 em Besançon
por Chris Marker e que continuava em Sochaux. Entre nossos amigos,
trabalhadores da fábrica da Peugeot, como em todos os grupos militantes,
falávamos bastante do Chile. O que acontecia naquele país da América do
Sul era familiar para nós.
Chegamos a Buenos Aires e pegamos o primeiro avião para Santiago, ao
lado de opositores da Unidade Popular felizes por terem retomado o país.
Ao passar por cima da Cordilheira dos Andes nevada, eles brindaram com
champanhe e cantorias.
No papel timbrado de uma televisão anglo-saxônica, escrevemos uma bela
acreditação. Felizmente, o serviço de imprensa do Exército chileno era
novo naquela função e nos entregou uma credencial de imprensa sem fazer
nenhuma pergunta.
Tínhamos apenas alguns números de telefone, entre eles o de Pierre Kalfon, correspondente do Le Monde em Santiago, o de um jovem advogado chileno de cujo nome não me lembro e o de uma francesa expatriada.
Os militares guardavam a saída de Santiago e patrulhavam a cidade. Se a
ordem havia sido “restabelecida”, o ambiente era pesado. A cidade foi
submetida a um toque de recolher integral, e do pôr do sol até o
amanhecer ficávamos confinados no vasto hotel onde jornalistas do mundo
inteiro se tornavam cada vez mais numerosos.
Para filmar aqueles que aceitavam testemunhar, precisávamos nos
deslocar discretamente e dissimular nosso material em mochilas de
viagem. Foi dessa forma que nosso amigo advogado nos levou a um imóvel
de escritórios abandonados onde encontramos duas jovens brasileiras. A
única luz era a fresta de uma janela, sentei-me no chão. Observando os
belos rostos pelo visor de minha câmera e escutando o que diziam,
senti-me afundando naquela luz tênue com o peso de suas palavras.
Aquelas e aqueles que corriam o risco de falar com o rosto descoberto
tinham uma mensagem para passar, e as palavras vinham à boca com a força
da necessidade: não eram entrevistas, e sim declarações. À noite,
confinados no hotel, não comentávamos o que havia acontecido durante o
dia, não podíamos falar no assunto. Tratava-se, também em nossa cabeça,
de um blecaute.
Ao cabo de dez dias, tornou-se mais difícil sair às ruas. Com cada vez
mais frequência, os militares nos paravam, pediam nossos documentos,
olhavam com desconfiança nossa ridícula credencial de imprensa. Uma
manhã, após a entrevista com dois estudantes da Universidade Técnica no
minúsculo pátio de uma casa, eu disse a Théo: “Acho que estamos
arriscando nosso filme, é tempo de partir”.
Na véspera, tínhamos filmado Pablo Neruda e não fazíamos ideia de que
assistiríamos à primeira manifestação pública de oposição aos militares
golpistas. Meia hora antes da cerimônia, esperávamos diante do cemitério
quando dois caminhões repletos de soldados armados passaram pelo meio
das pessoas que começavam a se aproximar; foram embora em seguida, e a
multidão aumentou. Mas todos se perguntavam se aqueles soldados não
voltariam para atirar. A presença de inúmeras câmeras e diplomatas
estrangeiros sem dúvida ajudou a convencê-los de que não era uma boa
ideia. E, debaixo dessa massa humana que havia cantado a Internacional,
dentre as tumbas brotavam trechos de poemas de Neruda, declamados em
coro.
Em nossa última noite no Chile, aqueles que se arriscaram a nos guiar
pela cidade organizaram uma pequena festa de despedida – apesar do toque
de recolher. E decidiram que, em vez de ser uma festinha, o evento
duraria a noite inteira. Cada um levaria algo para comer ou beber, e
novamente nos vimos dentro de um imóvel deserto, com todos os
escritórios trancados. Alguém levou um toca-discos e escutamos Victor
Jara1 e outros cantores cujas canções acompanhavam a Unidade
Popular. Aqueles que os militares se preparavam para proibir de se
apresentar.
Pouco antes do fim do toque de recolher, um tremor de terra virou copos
e garrafas. Algumas louças se quebraram, portas bateram, nosso
equilíbrio tornou-se instável. Não foi um tremor forte, os chilenos
estão habituados. Mas descemos em fila indiana ziguezagueante e abrimos a
pesada porta envidraçada que dava para a rua. Um espetáculo estranho
nos esperava. Os poucos moradores do bairro tinham saído às ruas, como
nós, de pijama ou um casaco colocado às pressas, e os próprios soldados,
que tinham ordens de atirar em tudo o que se movesse, estavam às voltas
na luz tênue do amanhecer.
No aeroporto de Santiago, cruzamos a imigração, registramos as caixas
de materiais, as caixas de rolos de película e a trilha sonora de nossas
últimas filmagens – tínhamos confiado nossas primeiras bobinas aos
pilotos da Air France. Esperávamos na sala de embarque quando meu nome
foi chamado no alto-falante. E fui atender ao chamado, um pouco
inseguro. Fiquei ainda mais inseguro quando vi nossas caixas e películas
amontoadas atrás do balcão, ao lado do qual três oficiais do Exército
chileno montavam guarda. Sem nem sequer conferir minha credencial de
imprensa, o superior perguntou seca e gravemente o que havíamos visto no
Chile. Balbuciei que encontramos as ruas de Santiago muito calmas...
Bruno Muel
Diretor de Septembre Chilien [Setembro Chileno] (1973).Ilustração: Lollo 1 Cantor e compositor comunista, apoiador do governo de Salvador Allende. Foi torturado e assassinado alguns dias após o golpe de Estado. |
Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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quarta-feira, 11 de setembro de 2013
HÁ 40 ANOS, O GOLPE CONTRA ALLENDE
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