“Quando encontrei uma arcada dentária de criança fiquei
assustada. Pensei em uma chacina, que alguém havia matado a própria
família”
Por Flávia Villela
Empresária do ramo da dedetização, Ana Maria de la Merced Guimarães,
nunca imaginou que a compra do imóvel na rua Pedro Ernesto, nº 36, no
bairro da Gamboa, zona portuária do Rio, mudaria radicalmente sua vida, a
de seu marido, Petruccio, e das três filhas. Em 1996, durante uma
reforma, a família descobriu ossadas debaixo da casa. A princípio,
desconfiou que fossem de cachorros, até encontrarem várias arcadas
dentárias humanas.
“Quando encontrei uma arcada dentária de criança fiquei assustada.
Pensei em uma chacina, que alguém havia matado a própria família. Pensei
o pior. Liguei para minha advogada, que ligou para um delegado. Depois,
com a cabeça fria, lembramos que a Gamboa é uma região histórica”,
contou.
A casa de Merced e dezenas de outras casas do bairro haviam sido
construídas por cima de um cemitério de escravos do século 17. Após
pesquisas e estudos dos artefatos, descobriu-se que a maioria dos mortos
enterrados eram crianças e pré-adolescentes. Por esse motivo, o
cemitério ficou conhecido como Pretos Novos (criado em 1769 e extinto em
1830). Lá foram enterrados, em covas coletivas, escravos que não
resistiam à longa viagem nos navios negreiros vindos da África.
“Este cemitério era conhecido por poucos, esquecido por todos. Um
passado funesto, mas importantíssimo para a nossa cidade. Isto
representa o Holocausto negro. Aqui embaixo estão enterradas milhares de
pessoas. A maioria pré-adolescente. Isto aqui representa um crime
contra a humanidade e não pode ser esquecido”, declarou Merced. Além das
ossadas, também foram encontradas cerâmicas e conchas.
A notícia sobre a existência de um cemitério de escravos acabou
atraindo visitantes do Brasil e de outros países interessados em saber
mais sobre a história envolvendo as mortes e o local. “Passamos a abrir a
casa para pesquisadores, estudantes, jornalistas, uma média de dez a 15
pessoas por mês”. Novos amigos surgiram, assim como a admiração pelos
artefatos e pela história.
Em 2005, ela e o marido compraram mais dois terrenos na mesma rua, um
deles se tornou a sede do Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos
Novos, fundado naquele ano por Merced, amigos e estudiosos do tema.
Dezessete anos depois, Merced e o marido são responsáveis pela
manutenção e promoção do instituto, que é também uma galeria de arte e
um museu memorial.
Em 2011, mais uma surpresa: na busca por mapear o cemitério, arqueólogos descobriram um sambaqui,
sítio pré-histórico formado pelo acúmulo de conchas, moluscos, ossos
humanos e animais de mais de 3 mil anos e vestígios do primeiro encontro
entre indígenas Tupinambás e portugueses que aqui chegaram pela
primeira vez.
A dedicação à causa custou à família sacrifícios que emocionam Merced
até hoje. “Fomos proibidos de fazer a obra e, em 1998, tivemos que sair
correndo da casa, que ameaçava desabar por causa das escavações e das
chuvas. Minhas filhas, na época adolescentes, tiveram que morar em um
abrigo na nossa empresa até 2001”, contou entre lágrimas. “Isso ficou
nas nossas mãos sem ninguém assumir esta responsabilidade”.
Hoje, o local também conta com um núcleo de pesquisa e oficinas de
história sobre os pretos novos. Em 2012, mais de mil pessoas
participaram das atividades promovidas pelo núcleo. A Companhia de
Desenvolvimento Urbano e Portuário da prefeitura contribui com um
pequeno aporte para cobrir os gastos com conta de luz, água e limpeza. A
maior parte das receitas vem de doações e do bolso da família. A
manutenção das janelas arqueológicas e produção de folhetos explicativos
também são de responsabilidade da prefeitura, mas quem cuida e mantém
aberto o lugar é Merced e o marido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário