Quarenta anos depois da ascensão de
Pinochet, ex-amigas de infância disputam, em polos opostos, presidência
do Chile. Que isso significa?
Por Inês Castilho
Diante daquelas tremendas coincidências que fazem pensar na vida como
imitação da arte, o ator, crítico e roteirista Jean-Claude Bernardet
costuma observar que a vida é má roteirista. Isso é o que provavelmente
diria sobre a história de duas mulheres que se enfrentam nas eleições de
17 de novembro à presidência do Chile – relatada por Eric Nepomuceno em Carta Maior.
Michelle Bachelet e Evelyn Matthei se conheceram em 1958, com 6 e 4
anos de idade. As famílias tornaram-se grandes amigas quando os pais,
capitães da Força Aérea, moraram na base de Quintero, em Antofagasta,
com outros 60 oficiais, quase inteiramente isolados da população civil.
Foi uma longa amizade, enraizada pelo plantio de três árvores na casa
onde mora, ainda hoje, uma delas.
A escola marca a primeira diferença. Evelyn vai estudar numa escola
alemã, agraciada por uma bolsa, e Michelle ingressa na escola pública.
Mais tarde, a escolha política dos pais viria a selar seus destinos: nas
eleições de 1970, Alberto Bachelet vota em Salvador Allende,
socialista, e Fernando Matthei em Jorge Alessandri, conservador. A
amizade, contudo, mantém-se ainda intocada – conta Nepomuceno.
O sangrento golpe militar de 1973 traria a cisão definitiva. Naquele
11 de setembro – o nosso, latino-americano – a família Matthei está
vivendo em Londres, para onde fora enviada no governo Allende. Já
Bachelet incorporara-se ao governo, prestando serviço no Ministério da
Defesa.
Leal a Allende, Alberto Bachelet é preso e torturado. Depois de uma
sessão de tortura, sofre uma parada cardíaca e morre. Sua morte, em
março de 1974, acontece nos porões da Academia de Guerra Aérea – que
Fernando Matthei, já de volta ao Chile, dirige.
À morte de Alberto Bachelet segue-se a detenção, tortura e prisão,
por um ano, de sua viúva e filha. As duas vão depois para o exílio, de
onde só voltariam em 1979, com o aval de Matthei – então membro da Junta
Militar, que manteve o país sob uma ditadura selvagem durante 17 anos.
No Chile, Michele conclui o curso de medicina iniciado na Alemanha e
logo começa a militar no Partido Socialista, clandestinamente. Evelyn,
já formada economista, trabalha como executiva na empresa com um
empresário bem sucedido graças ao bom relacionamento com a ditadura –
Sebastián Piñera.
Em 1990, Evelyn Matthei é eleita deputada pelo partido Renovação
Nacional, de direita. Ocupa depois o Senado, por duas legislaturas. Dez
anos mais tarde, Michelle Bachelet é nomeada ministra da Saúde, e em
seguida da Defesa, de Ricardo Lagos, pela Conciertación de Partidos por
la Democracia – aliança entre centro e esquerda fundada em 1988.
Em 2006 Michele é eleita presidente – a primeira mulher presidente –
ainda pela Conciertación. Chega ao fim do mandato com alto nível de
aprovação, mas a constituição chilena não prevê reeleição. É chamada a
dirigir a UNASUR (União das Nações Sul-americanas) e depois a ONU
Mulher. Já Evelyn se torna em 2011 ministra do Trabalho de Piñera, cujo
governo sucedeu o de Bachelet.
Em campos políticos opostos, Michelle e Evelyn disputam agora a
presidência do país. Michelle pela Nova Maioria, aliança que inclui os
quatro partidos da Conciertación e outros mais à esquerda. Evelyn,
representando a coalizão de direita União Democrata Independente (UDI) e
assumindo-se pinochetista. As eleições coincidem com a investigação do
possível envolvimento do militar reformado Fernando Matthei na morte de
Alberto Bachelet, em processo de autoria da Associação de Familiares de
Executados Políticos. Ele nega a culpa. Michelle não o acusa.
Um ponto do programa de governo das duas mulheres simboliza bem o
confronto: Michelle fala em aumentar os impostos das corporações para
financiar o ensino universitário gratuito – reivindicado pelos
estudantes chilenos. Já Evelyn se diz contrária à universidade pública.
Depois de quatro décadas – em 11 de setembro o golpe completa 40 anos
– Michelle e Evelyn se tornam os personagens principais de um acerto de
contas da História do Chile e da América Latina. De fato. Uma ficção
sobre o caminho daquelas duas meninas loiras – e da tragédia humana e
histórica que viriam a protagonizar – soaria provavelmente inverossímil.
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