Parte da população está convencida que a rede de saúde
privada oferece atendimento de melhor qualidade – em termos de acesso,
qualidade e conforto. Estimulado pela imprensa, este senso comum é
enganoso
Por Lilian Terra, no Outras Palavras
Nos últimos dez anos, o número de brasileiros que paga regularmente
planos particulares de Saúde cresceu de 34,5 para 47,8 milhões. Este
movimento tem sido apoiado por políticas governamentais. O Estado isenta
a medicina privada de impostos, permite que seus usuários deduzam do
Imposto de Renda parte das mensalidades que pagam e determina que o SUS
realize, sem receber remuneração, os procedimentos médicos complexos e
caros de que precisam os clientes dos planos de saúde.
A migração é estimulada, também, por preconceitos. Parte da população
está convencida que a rede de saúde privada oferece atendimento de
melhor qualidade – em termos de acesso, qualidade e conforto. Estimulado
pela imprensa, este senso comum é enganoso. Para compreender por quê,
vale analisar com algum detalhe as diferenças entre os dois sistemas.
Uma das grandes vantagens de um sistema público de saúde é o fato de
ele ser responsável também pela vigilância sanitária. Isso fica muito
claro quando analisamos um fato simples, mas com o qual ninguém se
preocupa, ao fazer um seguro de saúde. O SUS tem obrigação de
acompanhar, por meio de estatísticas, a evolução da assistência à saúde
dos brasileiros e os impactos sobre os índices de adoecimento e
mortalidade. Se o atendimento é ruim e medidas corretivas não são
adotadas, isso se refletirá em números, aparecerá para a população,
provocará pressões sociais em favor de mudanças.
A vigilância que está sob responsabilidade do SUS é exercida de forma
capilarizada e hierárquica. Cada serviço de saúde, desde a pequena
unidade básica da periferia até o hospital universitário, deve prestar
contas de seus atendimentos e fazer auditorias internas, com a própria
equipe de atendimento, para avaliar se tudo que é possível e necessário
está sendo feito, para prover um serviço de qualidade. Os dados são
coletados pelo município e pela União. Os sistemas de atenção mais
complexa, geralmente a cargo dos estados, devem fazer o mesmo.
A transmissão das informações nem sempre ocorre na prática de forma
efetiva, mas o ministério da Saúde tem aumentado a cobrança dos
relatórios, como pré-requisito para o repasse financeiro. Organismos
internacionais, como Organização Mundial de Saúde (OMS) e ONGs, por sua
vez, estão sempre atentos a índices de qualidade dos serviços de saúde,
tais como mortalidade infantil, mortalidade materna e mortes por causas
evitáveis. Além de repercutirem internamente, estes dados são vistos
como importantes para a própria imagem internacional do país.
A população também cobra melhores serviços de saúde, mas de maneira
difusa e até pouco produtiva, exatamente por não conhecer os melhores
canais para fazê-lo. São medidas eficazes participar dos Conselhos
Municipais de Saúde – que geralmente têm reuniões mensais – cobrar
diretamente o coordenador da unidade onde se é atendido ou fazer
reclamações e sugestões à ouvidoria da secretaria de Saúde do município.
Outra vantagem do sistema público de saúde é trabalhar como um só
corpo: toda a rede é responsável pelo atendimento a cada paciente. Isso
implica criação de novos métodos, em geral ausentes na rede privada –
entre eles, grupos de educação em saúde. Nestes os pacientes recebem
informações acerca de sua doença, do tratamento, das medidas não
medicamentosas que devem seguir e do autocuidado, além de compartilhar
experiências sobre problemas de saúde e familiares.
No SUS, existem também os atendimentos multiprofissionais, raros fora
da rede pública. Neles, profissionais de diversas áreas examinam, com
diferentes olhares, um indivíduo e sua patologia. As discussões entre
eles refinam o tratamento, corrigem possíveis erros individuais e
melhoram a abordagem do doente.
Já como uma forma de vigilância interna, em alguns locais os
pacientes são convocados a comparecer à unidade quando a equipe de saúde
percebe descontinuidade no seguimento ou descompensação do quadro de
saúde. Faltam equipes e estrutura para que esse processo ocorra em todo o
país, mas o fato de funcionar em locais onde o Programa de Saúde da
Família está implantado e ativo demonstra que o atendimento integral é
possível e benéfico, quando há investimento adequado.
Rede privada. Já a rede privada de saúde, como
qualquer sistema empresarial, é voltada ao lucro. Não há vigilância
epidemiológica e mesmo algumas doenças de notificação compulsória ao
ministério da Saúde deixam de ser comunicadas. As consultas quase sempre
são rápidas e envolvem um único profissional. Informações sobre
patologia e autocuidado devem ser pesquisadas pelo paciente ou
discutidas na sala de espera. O atendimento não é otimizado por equipes
médicas: é responsabilidade exclusiva do médico atendente, de quem
depende sua qualidade. Como não há cobrança institucional, torce-se para
que este profissional mantenha-se atualizado.
O preço da consulta varia muito, e o senso comum acredita que os
melhores médicos não atendem pacientes com plano de saúde, mas somente
os que pagam do próprio bolso. E caro, pois o tempo médico tem o valor
de sua cara e dedicada formação. Planos de saúde mais acessíveis (mas
caros ainda assim) não podem pagar por esses médicos. O sistema fica
ainda mais prejudicado pela qualidade dos profissionais.
Essa é a razão pela qual, em sistemas privados, as pessoas queixam-se
muito comumente da rapidez da consulta, desatenção do profissional,
dificuldade de seguimento e ausência de informações sobre a doença.
Pagam caro para ter acesso ao sistema, sem saber que os médicos que os
atendem não recebem por aquela consulta sequer um oitavo do valor da
mensalidade do plano. Médico e paciente estão insatisfeitos.
A grande vantagem do sistema privado sobre o público é o acesso à
medicina complementar. Exames laboratoriais ou de imagem são agendados
sempre com maior facilidade. Os procedimentos são mais rápidos. As filas
de espera, infinitamente menores. Mas isso se dá porque a quantidade de
pessoas atendidas na rede privada é muito menor, por ser menor o número
de indivíduos que podem pagar por saúde. Mas mesmo essa celeridade vem
se reduzindo, na medida em que mais famílias têm acesso a convênios.
O fato de ainda ficarem a cargo do SUS procedimentos mais caros, como
tratamentos oncológicos e transplantes, não cobertos pelos planos de
saúde, também contribui para a realidade do sistema privado de hoje.
Isso ficou muito claro na pesquisa suplementar de saúde incluída na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD, IBGE) de 1998. Dois
terços das internações hospitalares do ano anterior haviam ocorrido pelo
SUS, ainda que 6,3% destes pacientes tenham declarado possuir plano de
saúde. Esse dado não voltou a ser pesquisado na PNAD de 2008, embora
tenha havido, desde então, aumento expressivo do número de brasileiros
cobertos pela medicina privada.
Estima-se que cerca de 25,9% da população esteja hoje nestas
condições. Isso faz com que 56% do custo da saúde recaia sobre as
famílias, e engorde os lucros dos convênios, segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), de 2011. O gasto público recuou para apenas 44%
do total. Pior: dele, cerca de 30%, vão para os planos de saúde, mais
uma vez privilegiados em detrimento do SUS. Na Inglaterra e Suécia, que
também têm sistemas de Saúde públicos e universais, o percentual das
despesas custeadas pelo Estado é, respectivamente, de 84% e 81%.
Ainda assim, não se ouve muita reclamação a respeito. A transição
para um sistema privado de saúde é vista como um ganho tanto pelo
governo quanto pela população. Pelas autoridades, porque permitirá
reduzir ainda mais o percentual do PIB gasto com saúde. Pela população,
porque esta acredita que ter plano de saúde significa melhorar de vida.
Essa transição parece próxima e tem despertado interesse de investidores
internacionais, como demonstra a recente compra da operadora Amil pela
americana United Health.
Contudo, a lógica do lucro não se aplica à saúde. No ano passado,
segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS), foram registradas 75.916
reclamações contra planos de saúde, sendo 75,7% delas relacionadas a
negação de cobertura. Além disso, para cortar custos, muitas operadoras
impedem que o médico decida sobre procedimentos mais caros, limitando a
qualidade da atenção; reduzem o valor por consulta repassado ao médico;
não cobrem retornos; e invalidam procedimentos sem justificativa
aparente, deixando o profissional em prejuízo.
Fica claro, portanto, que a eventual opção pela saúde privada será
prejudicial à população, mesmo aqueles que já são usuários deste
sistema. A escolha definitiva pela saúde pública precisa ser feita, com
financiamento governamental de no mínimo 10% do PIB, de modo que
possamos alcançar o nível de desenvolvimento e qualidade de vida que
almejamos.
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