Por Grégoire Chamayou, do Le Monde Diplomatique, edição francesa | Tradução: Antonio Martins para o Outras Palavras
“Para mim, o robô é nossa resposta ao atentado suicida”
Bart Everett1
Dois relatórios muito tardios – um da Anistia Internacional, outro da Human Rights Watch
– focaram, esta semana, uma das marcas da degradação política de nossos
tempos: os drones, aviões sem pilotos usados pelo governo dos EUA para
assassinar supostos terroristas. Os documentos revelaram algo alarmante.
Até mesmo a alegação capenga, segundo a qual os mortos são
criminosos (como se isso tornasse aceitável executá-los…), é falsa. Já
se sabia que parte das vítimas é assassinada por adotar “atitude
suspeita”; e que os EUA efetuam, às vezes, um segundo disparo
– voltado contra a população local, quando ousa socorrer eventuais
sobreviventes ou participa do funeral dos mortos. Mas isso não é tudo.
O relatório da Anistia narra, com riqueza de detalhes, episódios
grotescos e até o momento inexplicáveis, sabendo-se da altíssima
precisão das câmeras e do equipamento de disparo dos drones. Em 2012, na
zona fronteiriça entre Paquistão e Afeganistão, dois mísseis
disparados em sequência mataram Mamana Bibi, esposa de um diretor de
escola aposentado, e feriram seis de seus netos. Na localidade de Zowi
Sidgi, situada na mesma região, dezoito homens e adolescentes (alguns
com 14 anos) sucumbiram
a um único disparo, enquanto conversavam numa sombra. Ao todo, em menos
de dez anos, os drones já mataram entre 2 mil e 4,7 mil pessoas,
segundo uma terceira organização ocidental: o Bureau de Jornalismo Investigativo. É um número cerca de quinze vezes maior que o total de mortes provocadas pela ditadura brasileira, em duas décadas…
O motor político que impulsiona esses assassinatos é conhecido. Desde a edição do Patriot Act,
pouco após os atentados de 11 de Setembro de 2001, os EUA tornaram-se,
em parte, um Estado policial. É esta lei – sancionada por George Bush e
mantida no governo de Barack Obama – que abre espaço, entre outros
atentados ao Direito internacional, à espionagem de chefes de Estado de
outros países; á detenção de prisioneiros sem qualquer perspectiva de
julgamento; ou à liquidação de seres humanos considerados “combatentes
inimigos”. Mas quais as causas culturais e psicológicas da indiferença
da opinião pública ocidental, diante destes atentados?
No texto a seguir, o filósofo francês Grégoire Chamayou
parte em busca de respostas. Ele inspira-se em Walter Benjamin. Já nos
anos 1930, o filósofo alemão preocupava-se com as máquinas de matar à
distância. Via-as como símbolo máximo do que chamou de “segunda técnica”
– a que aparta ao extremo o ser humano das consequências de seus atos.
Ao seguir as pegadas de Benjamin, Chamayou toca
numa ferida extremamente incômoda. Ele compara a atitude de repulsa do
Ocidente em relação aos homens-bombas islâmicos (ou aos matadores de
aluguel, para ficar num exemplo mais próximo) com nossa dificuldade de
sentir empatia pelas vítimas dos drones. Que ocorreu: teremos assimilado
a ideia de que são mais “limpos” e menos repugnantes os assassinatos à
distância – em que os matadores estão livres de qualquer contato com
suas vítimas, além de permancer anônimos? Este alheamento será ainda
maior pelo fato de os mortos estarem imersos em culturas distintas da
nossa, viverem em regiões remotas, não serem notícia nos jornais? Nosso
apreço ético pela vida humana estará se reduzindo a uma espécie da
amor-próprio, que já não atribui humanidade ao “Outro”? Fique com o
texto perturbador de Chamayou… (A.M.)
–
O filósofo Walter Benjamin refletiu sobre os drones, os aviões radiocomandados que os pensadores militares imaginavam já em meados dos anos 1930. Eles permitiram-lhe ilustrar a diferença entre o que chamava de “primeira técnica”, que remonta à arte pré-histórica, e a “segunda técnica”, característica da indústria moderna. O que as distinguia, a seus olhos, não era tanto o arcaismo ou inferioridade de uma em relação à outra – mas uma “diferença de tendência”. “A primeira compromete o ser humano, tanto quanto possível; a segunda, o menos possível. O cúmulo da primeira, se ousamos dizer, é o sacrifício humano; o da segunda seria o avião sem piloto, dirigido à distância por ondas hertzianas2”.
O filósofo Walter Benjamin refletiu sobre os drones, os aviões radiocomandados que os pensadores militares imaginavam já em meados dos anos 1930. Eles permitiram-lhe ilustrar a diferença entre o que chamava de “primeira técnica”, que remonta à arte pré-histórica, e a “segunda técnica”, característica da indústria moderna. O que as distinguia, a seus olhos, não era tanto o arcaismo ou inferioridade de uma em relação à outra – mas uma “diferença de tendência”. “A primeira compromete o ser humano, tanto quanto possível; a segunda, o menos possível. O cúmulo da primeira, se ousamos dizer, é o sacrifício humano; o da segunda seria o avião sem piloto, dirigido à distância por ondas hertzianas2”.
De um lado, as técnicas do sacrifício; de outro, as do
jogo. De um lado, o compromisso total; do outro o descompromisso total.
De um lado, a singularidade de um ato vivo; de outro, a
reprodutibilidade indefinida de um gesto mecânico. “De uma vez por todas
– foi a divisa da primeira técnica (seja por meio do erro irreparável,
seja do sacrifício da vida eternamente exemplar). Uma vez apenas não é
nada – é a divisa da segunda técnica (cujo objetivo é repetir à exaustão
suas experiências3”.
De um lado, o kamikaze, autor do atentado-suicida, que se precipita de
uma vez por todas, numa única explosão; do outro, o drone, que lança
seus mísseis repetidamente, como se fosse um gesto banal.
Enquanto o gesto kamikaze implica a fusão completa do
corpo do combatente e sua arma, o drone assegura a separação radical.
Kamikaze: meu corpo é uma arma. Drone: minha arma é sem corpo. O
primeiro implica a morte do agente. O segundo a exclui de modo absoluto.
Os kamikazes são os homens da morte certa. Os pilotos de drones são os
da morte impossível. Neste sentido, eles representam dois polos opostos
sobre o espectro da exposição à morte. Entre ambos, há os combatentes
clássicos, os homens que arriscam a morte.
Fala-se de atentados suicidas, mas, qual seria seu
antônimo? Não existe expressão específica para designar os que podem
matar por explosão sem jamais exporem suas vidas. Não apenas não lhes é
necessário morrer para matar; sobretudo, é impossível, para eles, serem
mortos, ao matar.
Sacrifício ou preservação de si
Ao contrário do esquema evolucionista, que Benjamin
sugere, na verdade, apenas para melhor subvertê-lo, kamikaze e drone,
arma de sacrifício e arma de autopreservação, não se sucederam de modo
cronologiamente linear, um substituindo o outro, como a história à
pré-história. Eles emergiram de modo conjunto, como duas táticas opostas
que historicamente se contrapõem.
Em meados dos anos 1930, Vladimir Zworykin, um
engenheiro da Radio Corporation of America (RCA), inquietou-se ao
extremo quando leu um artigo sobre o exército japonês. Os nipônicos,
soube ele, haviam começado a formar esquadrões de pilotos para
aviões-suicidas. Bem antes da trágica surpresa de Pearl Harbour,
Zworykin havia compreendido a amplitude da ameaça. “A eficácia deste
método, é claro, ainda precisa ser demonstrada, mas se um treinamento
psicológico das tropas neste nível fosse possível, este exército seria
uma dos mais perigosos. Como dificilmente podemos esperar que algo
semelhante seja introduzido em nosso país, devemos recorrer a nossa
superioridade técnica para resolver o problema”4.
Na época, já existiam, nos Estados Unidos, protótipos de “aviões
radiocontrolados” que podiam servir de torpedos aéreos. Mas havia um
problema: estes engenhos telecomandados eram cegos: eles “perdem
eficácia assim que se rompe o contato visual com a base que os dirige.
Os japoneses, ao que parece, encontraram uma solução para este
problema”. Sua solução era o kamikaze: como o piloto tem olhos, e está
preparado para morrer, ele pode guiar a máquina até o fim, rumo ao alvo.
Mas Zworykin também era, na RCA, um dos pioneiros da
televisão. E a solução estava ali. “Um meio possível de obter
praticamente os mesmos resultados do piloto-suicida consiste em equipar o
torpedo radiocontrolado com um olho elétrico5.
O operador estaria, então, em condições de enxergar o alvo até o fim e
de guiar visualmente a arma, por comando de rádio, até o ponto de
impacto.
Não deixar na cabine do avião nada além da retina
elétrica do piloto, seu corpo recuado em outro lugar, fora do alcance
das defesas antiaéreas inimigas. A partir deste princípio, o da
acoplagem entre a televisão e o avião telecomandado, Zworykin descobriu a
fórmula que iria se converter, bem mais tarde, em smart bomb (“bomba inteligente”) e, ao mesmo tempo, drone armado.
O texto de Zworykin é notável porque concebe o ancestral
do drone – já numa das primeiras formulações teóricas – como o
anti-kamikiaze. Não apenas do ponto de vista lógico (o da definição) mas
também, e sobretudo, no plano tático: é a arma-resposta, tanto como
antídoto quanto como estrela gêmea. Drone e kamikaze constituem duas
opções práticas opostas, para resolver um único problema, o de dirigir a
bomba até seu alvo. O que os japoneses acreditaram realizar por meio da
superioridade de sua moral de sacrifício, os norte-americanos obterão
pela supremacia de sua tecnologia material. O que os primeiros esperavam
alcançar pela via do treinamento psicológico, será efetuado pelos
segundos por procedimentos de pura técnica. A gênese conceitual do drone
se dá numa economia ético-técnica da vida e da morte em que o poder
tecnológico assume o lugar de uma forma de sacrifício inexigível. De uma
lado, combatentes valorosos, prontos a sacrificar-se pela causa; de
outro, máquinas-fantasmas.
O antagonismo entre kamikaze e telecomando está vivo
hoje. Atentados-suicidas contra atentados-fantasmas. A polaridade é, em
primeiro lugar, econômica. Ela opõe os que possuem o capital e a
teconologia aos que só têm seu corpo como arma de combate. A estes dois
sistemas materiais e táticos correspondem dois sistemas éticos – ética
do sacrifício heróico de um lado; ética da preservação vital, do outro.
Drone e kamikaze contrapõem-se como dois padrões opostos
da sensibilidade moral. Dois ethos que se enfrentam num espelho em que
cada um é, ao mesmo tempo, antítese e pesadelo do outro. O que está em
jogo nesta diferença, ao menos na superfície aparente, é uma certa
concepção das relações diante da morte – a sua e a de outros –, do
sacrifício ou da preservação de si, do perigo e da coragem, da
vulnerabilidade e da destrutividade. Duas economias políticas e afetivas
da relação com a morte – uma em que alguém a inflige, outra em que
alguém se expõe a ela. Mas também duas concepções opostas do horror,
duas visões do horror.
Richard Cohen, editorialista do Washington Post,
expôs seu ponto de vista. “Os combatentes talibans vão além de não
apreciar a vida, eles a desperdiçam gratuitamente em atentados suicidas.
É difícil imaginar um kamikaze americano6.
Ele insiste: “Não existe um kamikaze americano. Nós não exaltamos os
autores de atentados-suicidas, nós não apresentamos seus filhos diante
das câmeras de TV para que outras crianças as invejem. Para nós, isso é
incômodo; provoca calafrios. É repugnante”. E acrescenta, complacente:
“Mas talvez tenhamos nos apegado demais à vida7”.
“Incomodar”, “provocar calafrios”, “repugnar” é,
portanto, morrer na luta e glorificar-se por isso. O velho ídolo do
sacrifício gerreiro, que cai de seu pedestal e é imediatamente saqueado
pelo inimigo, converte-se no pior dos frustrados, no cúmulo do horror
moral. O sacrifício, incompreensível e ignóbil, é automaticamente
interpretado como desprezo à vida – sem levar em conta que ele talvez
implique, mais que isso, desprezo à morte. E se opõe a ele uma ética de
suposto amor à vida – da qual o drone é, sem dúvida, a expressão
acabada.
Firula final, concede-se que “nós” prezamos tanto a vida
que às vezes nos apegamos a ela de modo excessivo. Um amor demais, que
seria desculpável se tanta autocomplacência não fizesse suspeitar de
amor próprio. Porque, ao contrário do que o autor sustenta, são as
“nossas” vidas – e não “a” vida em geral que amamos. Se um
kamikaze norte-americano é inconcebível, lugar-nenhum no mapa do
pensável, é porque seria um oxímoro. A vida, aqui, não saberia negar a
si mesma. E com razão: ela só nega a dos outros.
Quem é covarde?
Interrogado por um jornalista interessado em saber se é
“verdade que os palestinos não se preocupam com a vida humana, nem
sequer a dos mais próximos”, Eyad El-Sarraj, diretor do programa de
saúde mental de Gaza, deu a seguinte resposta: “Como você pode acreditar
em sua própria humanidade, se não acredita na humanidade do inimigo8”?
Horror por horror, por que matar sem se expor a perder a
vida seria menos horrível que fazê-lo compartilhando a mesma sorte das
vítimas? Em quê uma arma que permite matar sem perigo algum seria menos
repugnante que o oposto? A acadêmica britânica Jacqueline Rose,
espantada pelo fato de que “despejar bombas de fragmentação é
considerado pelos governantes ocidentais menos repugnante e, além disso,
moralmente superior”, interroga-se: “A razão pela qual morrer com sua
vítima deve ser considerado um pecado maior que poupar a própria vida ao
matar não está clara”9.
Hugh Gusterson acrescenta: “um antropólogo que viesse de Marte poderia
notar que muitos, no Oriente Médio, ressentem-se dos ataques de drones
norte-americanos exatamente como Richard Cohen [o editorialista do Washington Post]
diante dos atentados suicidas. Os ataques de drones são vistos
amplamente como covardes, porque seus pilotos matam gente em terra a
partir do espaço seguro de um casulo climatizado em Nevada, sem o menor
risco de ser morto por aqueles que ataca10.”
O antropólogo Talal Asad sugere que o horror suscitado
pelos atentados suicidas nas sociedades ocidentais repousa no fato de
que o autor do crime, por meio de seu gesto, interdita a priori qualquer
mecanismo de justiça retributiva. Ao morrer com sua vítima, ao coagular
num único ato crime e castigo, ele torna a punição impossível e
desativa o recurso fundamental de uma justiça pensada a partir de lógica
penal. Ele não poderá jamais “pagar por aquilo que fez”.
O horror suscitado pela ideia de morte provocada por
máquinas sem piloto tem, é claro, algo de similar. “O operador do
drone”, prossegue Gusterson, “é igualmente uma imagem-espelho do
atentado suicida no sentido em que também se afasta, mesmo em direação
oposta, de nossa imagem paradigmática do combate.”
2Walter Benjamin, A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, 1955, disponível na internet.
6Richard Cohen, “Obama needs more than personality to win in Afghanistan”, The Washington Post, 6/10/2009.
7Richard Cohen, “Is the Afghanistan surge worth the lives that will be lost?”, The Washington Post, 8/12/2009.
9Ibidem
10Hugh Gusterson, “An American suicide bomber?”, Bulletin of the Atomic Scientists, 20/1/2010.
10Hugh Gusterson, “An American suicide bomber?”, Bulletin of the Atomic Scientists, 20/1/2010.
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