Talvez ela tenha nos livrado do extremismo classe-média e xenófobo que atormenta os Estados Unidos e muitos países europeus
Periodicamente, o processo civilizatório sofre soluços de insensatez,
tempos bicudos em que falham as ferramentas institucionais de mediação,
os avanços são esquecidos, a radicalização campeia e o jogo político se
torna selvagem.
O que ocorre hoje nos Estados Unidos é ilustrativo de como se formam
essas ondas e os riscos que trazem quando não são moderadas pelo sistema
político institucional. Na semana passada, o presidente Barack Obama
deu entrevista angustiada, acusando parlamentares republicanos de terem
perdido o controle do Tea Party.
É pedagógico analisar o fenômeno norte-americano, sua reprodução no
Brasil e entender como, em alguns momentos – como foi na Europa dos anos
20 e 30 – as circunstâncias podem levar a sistemas autoritários. E
como, em um país de tradição golpista como o Brasil – como prova a
história no século 20 – impediu-se que o vezo autoritário se impusesse
sobre o sistema democrático.
Os grandes momentos de inclusão
O ponto inicial desses terremotos são os grandes momentos de inclusão da história.
Especialmente nos regimes democráticos, a civilização se forma a
partir de processos gradativos de inclusão social e política. Foi assim
na abolição da escravatura, nas lutas feministas e nos grandes
movimentos migratórios, do campo para as cidades ou entre países.
Cada luta é um parto.
Depois dela, o renascimento do país em um nível
superior. Durante, criam-se momentos propícios para o exercício da
intolerância, influenciando especialmente a classe média estabelecida, o
chamado cidadão-massa, alienado em relação à política e às próprias
organizações do seu meio.
É ele que se sente ameaçado no seu emprego ou no seu status, nas
suas convicções, em um quadro em que o ritmo das mudanças torna a vida
imprevisível.
Nas últimas décadas aceleraram-se os grandes fluxos migratórios
mundiais, de latinos e orientais em direção aos países centrais, houve a
ascensão das massas miseráveis nos países-baleia e uma crise sistêmica
que corroeu as bases ideológicas do neoliberalismo.
Na Europa e Estados Unidos aumentou a intolerância em relação aos
imigrantes, especialmente depois que a desindustrialização interna e a
bolha imobiliária empobreceram a classe média. No Brasil, a resistência
em relação à chamada nova classe C.
Esses movimentos são potencializados pelas novas formas de
comunicação, pelas redes sociais, permitindo pela primeira vez, em
muitos países, manifestações políticas que geraram inúmeras
“primaveras”. Mas também a difusão de preconceitos e intolerância.
Mas, principalmente, pela exacerbação da velha mídia, do velho conceito de mass midia, vivendo seus estertores.
O mercado das ideias
O conceito de “opinião pública” é central nas modernas democracias.
São os ventos da opinião pública que elegem políticos e consagram meios
de comunicação de massa, movimentam o mercado de consumo e o show bizz,
vendem eletroeletrônicos e sonhos. E esse jogo é exercitado no chamado
“mercado das ideias”, com características comuns a outros mercados e
algumas características próprias essenciais – como o fato de intervir
nas relações psicossociais e políticas de um país.
É um mecanismo complexo. Na parte superior, há os grandes
intelectuais, humanistas, políticos, lideranças sociais construtores da
civilização, tentando consolidar princípios de justiça social, de
mediação política, permitindo os avanços sem a perda de controle.
No meio, um conjunto de instituições fazendo a mediação: os três poderes, os partidos políticos, sindicatos, associações etc.
Na base, setores organizados, como grupos, ONGs, associações em
geral. Mas também o homem-massa em estado bruto, movendo-se por
instintos primários da generosidade ao ódio, da solidariedade à
intolerância, sempre procurando cavalgar as ondas para não se abater
pela solidão atávica das democracias e do mercado. As ondas podem levar
tanto a uma campanha beneficente mas, muito mais, a linchamentos
públicos.
O desafio surge nos grandes curtos circuitos históricos, nos momentos
de crise que torna o mercado de ideias tão instável que rompe os liames
entre a massa e os organismos de mediação. Cria-se o ambiente propício
ao estouro de manadas, do qual se aproveitam os agentes oportunistas.
Foi o que vem ocorrendo nos últimos anos ao redor do mundo.
A crise de 2008 e o período que a precedeu transformaram em pó não
apenas ativos financeiros mas bandeiras partidárias globais.
Apresentou-se a desregulamentação total como panaceia para todos os
problemas. Desde que o Estado saísse de todas as áreas, inclusive das
redes de apoio social aos menos favorecidos e de garantias básicas aos
cidadãos, haveria uma era de ouro de aumento generalizado do bem estar.
A crise de 2008 mostrou uma pesada conta paga e uma nova conta
apresentada – nova dose de sacrifício para permitir aos países sair da
crise.
É nesse quadro que aparecem os agentes oportunistas, dentre dois
protagonistas relevantes do mercado de ideias: os políticos e a mídia de
massa.
Agente oportunista 1 – o político
Nos Estados Unidos, a reação da massa foi o Tea Party e o discurso
anti-árabes e anti-imigrantes. No Brasil, movimentos difusos de
radicalização, fundados no anti-petismo, no anti-nordestinos, no
anti-pobres em geral. Em ambos os casos, essa intolerância inicial não
era organizada, mas disseminada por pequenos grupos que refletiam
sentimentos comuns à classe média.
No início, a radicalização das ideias fica fora do arco de propostas
dos partidos – mesmo dos mais conservadores. As propostas radicais
ocupam espaço no vácuo das ideias dos partidos.
Nos Estados Unidos resultou no fenômeno Sarah Pallin – a ignorante
governadora do Alaska que se tornou candidata a vice-presidente. No
Brasil, na transmutação de José Serra, tido até então como um
intelectual na política.
Serra nunca foi grande intelectual nem grande político. Mas era um
dos melhores intelectuais dentre os políticos; e um dos melhores
políticos dentre os intelectuais. E exemplo acabado de como as
circunstâncias moldam as lideranças políticas.
Nos anos 90 apresentava-se como “desenvolvimentista” e liberal,
embora não comprovasse com ações concretas. Nos anos 2000 mostrou-se
como o gerente, embora nunca tenha sido grande gestor. No final da
década, como o profeta dos velhos tempos, ameaçando com o fogo do
inferno os ímpios e os imorais, embora nunca tenha sido probo nem
conservador. Quando precisou, posou de intelectual; quando foi
necessário, envergou o anti-intelectualismo mais atroz
Superou suas limitações políticas e intelectuais com duas
características próprias: um feeling superior para captar os grandes
movimentos de manada; a uma ambição ampla o suficiente para se adaptar a
qualquer tempo, sem se balizar por coerência, princípios, ideias.
Em um país sem tradição de Tea Party ocupou o espaço vago a ponto de se tornar candidato a presidente em duas eleições.
Mas, para isso, foi essencial a aliança com outros agentes
oportunistas no campo da velha mídia, especialmente com Roberto Civita,
como se verá a seguir, que talvez tenha sido o verdadeiro criador do
“novo-velho Serra”. Desse casamento emerge um exemplo extraordinário – e
assustador – das estratégias midiáticas em tempos de instabilidade..
Agente oportunista 2 – a mídia de massa
Na mídia de massa, o processo é o mesmo dos políticos.
Ela estará
sempre ligada nas grandes ondas.
Pode ser uma Copa do Mundo, um
linchamento de suspeito, uma campanha pelo impeachment, uma guerra do
Iraque, uma Escola Base. O veículo que consegue manobrar essas ondas,
ganha um poder adicional.
Nos Estados Unidos, a onda conservadora foi cavalgada pela FoxNews,
de Rupert Murdoch, empenhado em enfrentar as gigantes que surgiam no
bojo das inovações tecnológicas, ameaçando o reinado dos grupos
tradicionais de mídia.
Incorporou a linguagem do Tea Party e abriu mercado para o colunismo
de esgoto, de uma agressividade quase pornográfica. Foi um estilo
vitorioso, que chegou a ameaçar a eleição de Obama.
No Brasil, esse movimento foi importado pela Veja. E aí entra o fator Roberto Civita.
Desde a histórica revista Realidade, Civita tornou-se um
grande especialista em entender os movimentos da mídia norte-americana e
transportá-los para o Brasil. No final dos anos 60 percebeu o estilo do
jornalismo-produto das revistas semanais, concebeu a revista Veja e a entregou ao grande nome que surgia na época, Mino Carta.
Mais tarde, esse padrão do “jornalismo produto” (em que as notícias
são quase como “roteirizadas” antecipadamente) serviu de inspiração para
a revolução da Folha nos anos 80.
Nos anos 70, Octávio Frias foi buscar o diferencial na imprensa alternativa da época, especialmente no Pasquim. Dos anos 80 em diante, a inspiração jornalística (não necessariamente política) veio da Veja.
Civita foi o primeiro a perceber a essência do movimento de
radicalização de Murdoch e sua nova linguagem. E transportá-las para o
Brasil.
O primeiro colunista a exprimir esse novo estilo, radical, agressivo,
foi o finado Tales Alvarenga – que, na época, tinha coluna na Veja e
o cargo de diretor responsável. Da noite para o dia nasceu um Tales de
linguagem agressiva, que nunca havia se manifestado ao longo de sua
carreira.
O primeiro grande teste foi a campanha contra o desarmamento, pesada,
conservadora, mas que encontrou um eco extraordinário em segmentos da
classe média.
Ali foi o ponto de partida. Pela primeira vez, desde a
redemocratização, emergia das trevas o pensamento mais conservador e
anacrônico e tinha uma enorme aceitação junto ao cidadão-massa.
Depois de Tales, a mão previsível do mercado criou uma legião de
gladiadores.
Em determinado momento, foi um estilo tão forte que
contaminou o próprio noticiário. Desde os anos 50 não se teve um
noticiário tão editorializado como nesses últimos anos.
E foi nessa emulação do modelo norte-americano, que Civita
imaginou-se Murdock e pensou em Serra como Sara Pallin, a mídia como
partido político e, sendo bem sucedidos, Serra, presidente, preservando a
sobrevivência dos grupos de mídia nacionais contra a invasão dos novos
gigantes da mídia 0 Facebook e Google.
É esse o modelo esquemático que norteou a ação da mídia de 2005 para cá e explica a parceria Veja-Serra.
Os anticorpos institucionais
Caso essa parceria tivesse sido bem sucedida, teria mergulhado o país
em uma noite de São Bartolomeu porque, do mesmo lado, os dois maiores
poderes da República: a Presidência da República e mídia, em um pacto
de guerra de extermínio a toda forma de pensamento dissidente, de
desarme do sistema de freios e contrapesos.
Em 2010 escrevi no fragor da batalha, e repito agora: as eleições de
2010 ainda serão tratadas pela historiografia como um marco, que impediu
a invasão persa sobre a recém criada democracia brasileira.
Aos poucos, o organismo institucional vai recobrando a racionalidade,
seja no STF (Supremo Tribunal Federal), na Pocuradoria Geral da
República, seja nos partidos políticos de ambos os lados, com a adesão
cada vez maior de personalidades de princípios democráticos sabendo que a
política – não os coliseus – é o campo para o debate de ideias e de
divergências.
A estabilidade política, não só agora, como ao longo desses 25 anos,
deve-se à Constituição Federal, que permitiu o feito extraordinário de
um país historicamente sujeito a golpes de Estado consolidar os
princípios democráticos, em meio a tormentas e terremotos ocasionais.
Não fosse a Constituição,no final do ano passado um grupo de
alucinados do STF teria invadido o Congresso e empalmado o poder.
Ao
detalhar de modo claro a independência entre os poderes, a Constituição
reduziu a margem de arbítrio na interpretação do texto constitucional,
permitindo a reafirmação da legalidade.
O país deve gratidão eterna aos homens que, 25 anos, desenharam nossa
Constituição.
Especialmente ao grande comandante Ulisses Guimarães.
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