Esta é uma fábula contemporânea, escrita em tempos que alguns animais aprenderam, de fato, a falar.
Na natureza,
a diferença que separa ou distingue os répteis de um ser humano, como
Ernesto “Che” Guevara, por exemplo, é preenchida pela existência de
vários outros seres, alguns deles até próximos a seres humanos como o
“Che”, por exemplo, ou a ele comparáveis. A reflexão esdrúxula,
alegórica e à primeira vista desprovida de algum sentido lógico, eu a
faço por não ter conseguido entender até agora o significado da
candidatura do cidadão José Serra à prefeitura da cidade de São Paulo.
Continua sem sentido? Já me explico. O fato tem lá suas tintas
surrealistas, o que me libera também para um comentário de igual teor.
Sei que
muitos de nós, por esse ou aquele motivo, nos perguntamos o que viemos
fazer nesse mundo, procuramos encontrar um sentido para as nossas vidas,
de onde viemos e para onde vamos e coisas do gênero, consoante nossas
crenças, nossos valores culturais, nossas reflexões mais íntimas e mesmo
as nossas inseguranças. Afinal, sou um homem ou sou um rato? Alguém no
passado já se questionou a respeito… Confesso que não padeço dessa
angústia, não por virtude – não me entendam mal – mas pelo fato
primordial de ser ateu. Não sofro diante dos mistérios insondáveis da
vida, das grandes questões metafísicas.
O cidadão
José Serra, contudo, formado politicamente nos quadros da Ação Popular,
organização católica de esquerda bastante ativa nos anos 60, ocasião –
inclusive – em que chegou à presidência da UNE, talvez tenha introjetado
a noção de que tinha uma missão a cumprir enquanto vivesse. Um
relevante papel político a desempenhar em nome da sua gente, quem sabe?
Todos nós temos o direito aos sonhos, quaisquer que sejam eles… E aqui,
rendo-me ao lugar comum já tantas vezes por mim ouvido, o de que muitos
cidadãos sonham em um dia se tornarem presidentes da república em seus
países. Sonho carregado de responsabilidades e que, quanto a mim, se
aproxima mais de um Guevara, de um Ghandi ou de um Mandela, na minha
modesta e ingênua maneira de encarar o mundo. Muito mais do que se
aproximaria de um réptil, é claro. Confesso, aliás, que ainda não li
nada a respeito sobre o sonho dos répteis…
E pelos
vistos, o cidadão José Serra levou esse desejo ao pé da letra e, diga-se
de passagem, com denodado estoicismo. Deve ter encontrado à sua volta e
dentro de si motivos para isso, e com certeza nobres. Mas como há um
ritual a seguir nessa difícil trajetória, pois poucos são aqueles que
conseguem chegar à presidência de uma nação sem um mínimo de experiência
política, o nosso cidadão percorreu aos solavancos tal ritual e, na
caminhada, parece ter descoberto que, muito além das responsabilidades
inerentes ao cargo almejado e antes mesmo de atingi-lo, poderia
desfrutar de inúmeras benesses que a sua não tão vã filosofia havia
imaginado.
Foi
deputado, senador, ministro de estado, prefeito, governador e,
curiosamente, não deixou nenhuma marca, nenhum registro ou realização
digna de menção para a coletividade em nenhum dos cargos ocupados, por
mais que ele próprio, seus apaniguados, o partido a que pertence e a
imprensa que o prestigia e o sustenta politicamente façam grandes
esforços para encontrar alguma coisa do gênero. Alguma ideia, algum
pensamento original. E olha que não faltou oportunidade para tal. Mas a
sua grande missão, o alvo final (a não ser que sua melagonomania não
tenha ainda sido devidamente avaliada e/ou analisada) seria mesmo a
presidência da república. Aliás, “o mais preparado” para o cargo, como
gosta de dizer aos quatro ventos…
Segundo os autores das antigas tragédias gregas (Édipo Rei,
de Sófocles, continua sendo uma obra prima há mais de 2500 anos), a
obsessão de um personagem na perseguição de um objetivo leva-o àquilo a
que se chama sua “falha trágica”, um ato que o condena a algum tipo de
punição. O cidadão José Serra, embora não seja nenhum herói trágico
grego (e muito menos brasileiro), na sua caminhada obsessiva rumo ao
palácio do Planalto já cometeu não uma, mas várias falhas trágicas. A
maior delas, além daquela – segundo o livro A Privataria Tucana,
do jornalista Amaury Ribeiro Jr. – de amealhar pelos mais variados
“artifícios legais” milhões de dólares do patrimônio público brasileiro,
a maior delas, repito, foi prometer que cumpriria o seu mandato de
prefeito em São Paulo (até com um “papelzinho qualquer” assinado,
segundo ele mesmo) e não cumprir com a própria palavra. Ou não chegar
também ao final do mandato como governador do estado.
O cidadão
José Serra foi queimando etapas e até agora colhendo derrotas no seu
principal objetivo. De repente, pelos mais variados motivos e meios o
Brasil, e mais particularmente o Estado de São Paulo e sua capital,
começaram a ter notícias e a perceberem quem é de fato o cidadão José
Serra. Um homem despreparado, obcecado e sem ideias próprias. Arrogante,
destemperado, vingativo. Apresenta, inclusive, certo ar de autismo,
pois sua obsessão não deixa que ouça os que estão ao seu lado e muito
menos, é lógico, os que lhe criticam sem ou mesmo com razão.
Impôs-se
candidato de última hora dentro do seu partido, quando as prévias já
estavam marcadas e alguns pretendentes à prefeitura de São Paulo também
já haviam se manifestado. Atropelou a todos em três semanas, e o partido
engoliu, como tem sempre engolido, o seu jeito incivilizado de fazer
política. Qual seria o segredo desse cidadão? Fragilidade ideológica de
outros membros do PSDB? Chantagem? Telhados de vidro à sua volta?
“Fadiga de material”, segundo as palavras do sociólogo de textos
ininteligíveis? Perfil ditatorial que tanto interessa à oligarquia
nacional no seu atual momento de desalento político e sustentado por
interesses antinacionais de um capitalismo neoliberal esgotado, mas
necessitado de porta vozes com algum potencial eleitoral, mesmo que em
total declínio? Ou tudo isso junto? Por isso, a cada dia que passa,
entendo menos a candidatura do cidadão José Serra à prefeitura de São
Paulo.
Há já alguns
anos, ainda adolescente, em Belo Horizonte, minha cidade natal, tive a
oportunidade e a sorte de descobrir, com outros jovens estudantes e
colegas, que o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, de passagem
pela capital mineira, iriam jantar num tradicional restaurante de carnes
exóticas, o Tavares, e para lá muitos de nós nos dirigimos. Era o ano
de 1961. As teses existencialistas fascinavam boa parte da minha geração
e repercutiam principalmente nos mais jovens. Levei comigo um livro
escrito por ele, da sua trilogia ‘Os Caminhos da Liberdade’ e consegui o
meu autógrafo, que durante anos pude exibir com orgulho. Os jornais,
que deram grande destaque à visita, publicaram entrevistas e opiniões do
casal francês mais famoso do pós-guerra.
Numa dessas
entrevistas, e repetindo o que já havia dito a jornais em outras partes
do mundo, Sartre afirmava depois de uma visita a Cuba, cuja revolução
socialista triunfara dois anos antes, que Ernesto Guevara era,
provavelmente, o homem mais íntegro e digno que conhecera até então.
Para aqueles que conhecem a biografia do “Che”, eram justas e
apropriadas as palavras do filósofo francês. Ou também as palavras de
Nelson Mandela: “Guevara é uma inspiração para todos aqueles que amam a
liberdade no mundo!”
Penso que
boa parte dessa dignidade se devia ao fato de que Guevara não tinha a
obsessão pelo poder. Ao contrário, após ser ministro do governo cubano
quando da vitória da revolução, o “Che” apresentou-se várias vezes para
outros combates pelo mundo, dando sua vida por uma causa que considerava
justa, sendo assassinado nas selvas da Bolívia. Nenhum sentido de
heroísmo, é bom salientar, mas o destemor sincero em lutar pelos mais
pobres e desvalidos.
Outro
filósofo, esse brasileiro, e em tempos bem mais recentes, o professor
Paulo Arantes, fez sobre o cidadão José Serra a seguinte pergunta: “O
que será que pensa esse rapaz?”
Já decidido a
encerrar o artigo por aqui, dei-me conta de que um leitor mais atento
poderia indagar: mas e os répteis? De fato, eu não poderia terminar a
fábula sem, pelo menos enaltecer, algumas qualidades dos répteis, como a
peçonha das serpentes que serve de matéria prima para o próprio
antídoto contra as suas picadas. Ou a incrível qualidade de
transformação de um camaleão diante das adversidades enfrentadas na
natureza, ou ainda – mesmo com toda campanha pela preservação das
espécies – poder admirar as bolsas e sapatos conseguidos de crocodilos e
jacarés desavisados.
Peço, então, licença ao professor Paulo Arantes e pergunto aqui sobre os répteis: o que será que eles pensam?
***
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968.
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